José Ribamar Sanches Prazeres
Há poucos meses, a mídia divulgou em cadeia nacional a histórica decisão do egrégio Supremo Tribunal Federal (STF), que alterou o já cristalizado entendimento acerca da competência por prerrogativa de função daquela corte, em julgamento de ocupantes de cargos públicos e de mandatários , quando estes não mais estejam exercendo as suas nobilíssimas funções.
Com isso, a corte maior do nosso país, alterou radicalmente o entendimento esposado na súmula n º 394/STF, que vigia há quase meio século, cuja dicção é : ” Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.
Tal modificação partiu da tese esboçada no lúcido voto do eminente ministro SIDNEY SANCHES, que, após detida meditação sobre a matéria, como sempre o fez nos seus julgamentos, foi amplamente acompanhado, frise-se, à unanimidade, pelos demais membros integrantes do excelso pretório brasileiro.
Na realidade, a nosso ver, a decisão pautou-se, além do aspecto jurídico, também, em aspecto de natureza político e econômico, pois sabe-se das imensas dificuldades enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal, com assaques constantes e irresponsáveis de alguns dos membros do Poder Legislativo, bem como dos empecilhos impostos pelo apertado e já reduzido orçamento do Poder Judiciário.
Outro dado importante reside, como é público e notório, na pletora de litígios que desembocam naquela corte, contribuindo maciçamente na morosidade da prestação jurisdicional, impossibilitando ainda um trabalho tranqüilo, sereno, com meditações profundas e escorreitas conclusões, típicas das decisões proferidas, geralmente em temas altamente complexos, pelos onze (11) abnegados Ministros.
Editada a súmula em 03 de abril de 1 964, ela fixava a competência do STF por prerrogativa de função, quando o indiciado, acusado ou réu, praticasse o crime durante o desempenho do cargo, função ou mandato, garantindo-lhe o foro especial, independentemente se viesse, a posteriori, a ser cassado, renunciasse ou mesmo após com o término do mandato.
De acordo com o novo entendimento encetado pelo STF, a competência por prerrogativa de função somente ocorrerá na hipótese do indiciado, acusado ou réu ainda se encontrar, quer no curso do inquérito, quer do processo, em pleno exercício do cargo ou mandato, portanto, única “conditio sine qua non”, para garantir o foro especial.
Daí conclui-se que o excelso pretório produziu interpretação restritiva quanto a norma insculpida no art. 102, inciso I, alínea “b”, da Magna Carta, pois esta estabelece que : “nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice – Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador – Geral da República;”, posto que assim excluiu definitivamente a possibilidade desse ditame atingir seu alcance às pessoas não mais exercentes de mandato, cargo ou função.
Agora, passa-se à primeira instância a competência para processar e julgar aqueles que não mais exercem cargos ou mandatos, ficando essa atribuição sob a responsabilidade dos juizes monocráticos, alterando significativamente o que vinha ocorrendo durante quase trinta e cinco anos no Brasil.
Assim, só para melhor exemplificar, tenha-se em mente a hipótese de ex-presidente da República, ex – deputados federais, ex – senadores, ex-ministros ou até mesmo de ex – ocupantes de cargos públicos (de autarquias ou empresas públicas, na área federal), que vierem a praticar delitos, estes serão processados e julgados pelos juizes federais; ao passo que em se tratando de ex – autoridades estaduais e municipais competirá o julgamento aos juizes de direito.
É claro que ninguém desconhece a verdadeira dimensão da competência estabelecida constitucionalmente do foro por prerrogativa de função, cujo verdadeiro objetivo subsiste em face do exercício da relevante função ou cargo público, longe de qualquer discriminação quanto ao princípio isonômico de que todos são iguais perante a lei, consagrado na Magna Carta.
Aliás, com invulgar sapiência, pondera sobre o assunto o eminente e festejado TOURINHO FILHO, quando diz que “poderia parecer, à primeira vista, que esse tratamento especial conflitaria com o princípio de que todos são iguais perante a lei, inserto no limiar do capítulo destinado aos direitos individuais (Magna Carta, art. 5 º), e, ao mesmo tempo, entraria em choque com aquele outro que proíbe o foro privilegiado. (…) O que a Constituição veda e proíbe, como conseqüência do princípio de que todos são iguais perante a lei, é o foro privilegiado e não o foro especial em atenção à relevância, à majestade, à importância do cargo ou função que essa ou aquela pessoa desempenhe. (….) O privilégio decorre de benefício à pessoa, ao passo que a prerrogativa envolve a função” (in PROCESSO PENAL, 12 ª edição, São Paulo, Saraiva, 1 990, V. 2, p. 109).
Nesse sentido, posicionou-se a esteira pensamental do julgamento, para modificar a competência até então reinante na corte, pois como bem disse o relator no bojo do seu voto : “a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce. Menos ainda quem deixa de exercê-lo”, uma vez que “as prerrogativas de foro, pelo privilégio, que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex – exercentes de tais cargos ou mandatos”.
Por outro lado, Impõe-se indagar dos efeitos desse novel entendimento, no que tange aos processos em andamentos, vale dizer ainda não transitados em julgados, uma vez que os processos findos não possuem mais condições de serem atingidos pelos efeitos dessa decisão.
Tal questão, não passou, também, despercebida pelo nobre relator, Ministro SIDNEY SANCHES, que, com aguda acuidade, na parte final do voto espancou dúvidas possíveis de serem argüidas, quando asseverou, destacando : ” com a ressalva de que continuam válidos todos os atos praticados e decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, com base na Súmula 394″. (grifo consta no original)
Ora, quis o relator, de forma clara, cristalina e meridiana, que a medida de cancelamento da súmula tivesse seus efeitos “ex nunc”, isto é, a partir de então, destarte, mantendo subsistentes todos os atos válidos praticados e decisões proferidas , porventura, com fundamento na súmula citada, medida de extrema proficiência, extirpando definitivamente quaisquer tergiversações interpretativas.
Desse modo, os inquéritos ou processos instaurados, pendentes ainda de julgamento, deverão baixar à instância de primeiro grau, pois ,como já se ressaltou, modificou-se o juízo natural para o processamento e julgamento, significando uma maior celeridade nos pronunciamentos jurisdicionais, uma vez que a apuração dos fatos tidos por delituosos, não serão mais submetidas a julgamento pelos Tribunais Superiores, com sede em Brasília, ou pelos Tribunais Regionais, localizados nas capitais.
Parece-nos, diante dessa decisão histórica, verdadeiro “leading case”, que um grande avanço jurisprudencial se operou, alterando a competência do STF, dada essa nova exegese do Ministro SIDNEY SANCHES, pois, com certeza, contribuirá para agilizar a coleta de provas, tornando mais célere, eficaz e eficiente o processo penal, propiciando o aumento da credibilidade do Poder Judiciário Brasileiro, tão combalido nos dias atuais……
José Ribamar Sanches Prazeres é Promotor de Justiça da Capital, Ex – Professor do CEUMA, Assessor da Corregedoria Geral do Ministério Público e Professor de Direito Constitucional da Escola Superior do Ministério Público.