Marta B.T. Zanchi
Advogada
Mestranda em Direito Público
O tema que já me atraía, tornou-se – a partir de um acórdão prolatado por uma das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – o motivo deste arrazoado. A questão resume-se no seguinte: primeiro, é pressuposto e, ao mesmo tempo decorrência, do Estado Democrático de Direito a liberdade de imprensa e, por conseguinte, de opinião; segundo, esta liberdade deve ser balizada conforme o catálogo constitucional, ou seja, conforme o direito que o indivíduo possui de proteger sua intimidade, sua privacidade e, sobretudo, sua honra. Assim, quais os reais limites da imprensa? Como apurar, relatar e opinar livremente sobre fatos sem correr os riscos de ver-se processado e condenado por delito tipificado na Lei de Imprensa.
Em linhas gerais, escrevo a idéia central do acórdão supra referido de forma fictícia, com o intuito manter absolutamente incólume a identidade das partes envolvidas e o próprio fato ocorrido: determinado jornalista imputou fato ofensivo à reputação de um cidadão, satisfatoriamente conceituada pela jurisprudência como sendo ‘a imputação de acontecimento ou conduta concreta e precisa que, sem chegar a caracteriza o delito, ofende a reputação e o bom nome do atingido, expondo-o à reprovação ético-social’ (IACRIM- SP- AC, Rel. Azevedo Franceschini – JUTACRIM 26/287).
Com a ofensa tornada pública por meios de comunicação de grande prestígio, viu-se o elemento subjetivo do delito – o dolo – perfectibilizado. Ou seja, um cidadão foi gravemente atingido em sua honra através da imprensa sem que o jornalista responsável pela notícia possuísse qualquer prova da veracidade das informações noticiadas. Aliás, obteve tais informações por meio de uma simples carta, cujo autor pedira para não ter seu nome divulgado, e o jornalista, mesmo sem verificar a lisura da fonte e dos fatos, entendeu por divulgar a notícia.
Destarte, evidente que, se o jornalista não teve a direta intenção de difamar, indiretamente assumiu o risco de produzir o resultado típico, devendo, como foi o caso, responder nos termos da lei. A sentença condenatória foi confirmada em 2° grau.
Violência contra a liberdade de imprensa?
Para iniciar a abordagem crítica sobre o tema, julgo importante transcrever trecho da entrevista de Francisco Campos, comentando o regime da censura prévia da imprensa expresso na Constituição Federal de 1937, dada ao Correio da Manhã, em 3 de março de 1945.
Lembra-se que o entrevistado foi ministro de governo durante o Estado Novo, momento de extremo controle sobre a imprensa, surgindo sua manifestação nesse jornal como verdadeira retratação:
“…O regime de censura prévia é, precisamente, o regime da suspensão da liberdade. Não se concebe regime democrático ou representativo em que não haja liberdade de opinião. A liberdade de opinião é da substância do regime democrático. De nada vale prescrever na Constituição que os órgãos supremos do Estado serão eleitos por sufrágio direto se ao mesmo tempo e no mesmo documento se proscreve a liberdade de opinião, sujeitando a expressão do pensamento à censura prévia do governo.
Reconhecemos que a questão da imprensa é uma das mais graves e das mais delicadas que as condições do mundo moderno criaram no domínio político e social. A imprensa de grande tiragem, a imensa difusão de papel impresso, dentre massas cada vez mais densas e excitáveis, constituem um dos problemas que desafiam a inteligência e a competência dos governos. Será, porém que a supressão da liberdade constitui a solução adequada para o problema?
Se constitui, então, não se poderá conciliar a solução com os postulados do regime democrático e representativo. Neste caso, o único regime possível será o das ditaduras. Não acreditamos, porém, que assim seja. É possível regular a imprensa mediante uma lei adequada que lhe deixe a liberdade e torne efetiva a sua responsabilidade. Não pode haver em regime democrático poder irresponsável. Quanto maior o poder, tanto maior deve ser a responsabilidade. Que os homens do Governo tenham a coragem necessária para fazer uma lei de imprensa que, sem lhe diminuir a liberdade, faça com que, ao invés de nociva, ela se torne útil ao bem comum.
As restrições à liberdade de imprensa vigentes entre nós nos últimos anos contribuíram para a degradação cívica, intelectual e moral a que se chegou no Brasil. A liberdade de opinião não é apenas um conceito político. É um conceito de civilização e de cultura. Todo o edifício do mundo moderno repousa sobre este fundamento. A educação, a investigação, as invenções e os progressos técnicos e científicos em todos os domínios somente são possíveis graças a esse postulado sem o qual os povos da terra se veriam reduzidos à condição das tribos africanas. Não se concebe que um país como o Brasil haja vivido tantos anos de privação de liberdade de opinião sem graves danos a sua civilização e à sua cultura. È certo que existem evidentes indícios desse dano ao patrimônio histórico da nossa cultura. ” (grifei)
Em síntese, importa ressaltar que deve-se – efetivamente – responsabilizar a imprensa pelos abusos que essa eventualmente vir a cometer. E isto não importará em supressão de liberdade por uma razão bem simples: a importância da liberdade de imprensa no Estado Democrático de Direito deve passar, necessariamente, pelo respeito às liberdades individuais e, mais, por um dever geral e real de cautela – por parte de seus operadores – quanto à obtenção e repasse de informações.
Daí a falar-se de fontes da imprensa e a concluir-se, reporto-me aqui ao acórdão supra referido, da necessidade que sejam elas fidedignas, principalmente quando não for ao jornalista possível revelar seu autor – análise esta que cumprirá a própria imprensa fazer, antes mesmo de veicular a notícia, sob pena de ver-se responsabilizada por notícia difamatória, sem qualquer respaldo probatório.
A decisão condenatória que acima narrei, consubstanciou-se exatamente na conduta temerária do jornalista que tomou por verdadeiros fatos absolutamente graves e ofensivos a honra de determinada pessoa, narrados em uma carta, cujo autor pediu para não ser identificado, e que sem qualquer cautela levou estes fatos, como notícia, ao ar. Como se não bastasse, o jornalista – baseado exclusivamente na dita carta – pôs-se a criticar de forma veemente e contundente a conduta do cidadão ali descrita. Durante a instrução, a prova carreada aos autos refutou integralmente os fatos descritos na carta o que resultou em decisão condenatória, confirmada em sede de apelação.
O cidadão atingido duramente pelas ofensas, não só sofreu danos morais, como também patrimoniais, em virtude da atividade que exerce.
Posto o fato e a decisão condenatória, cumpre-me destacar a questão que inteligentemente norteou o recurso do jornalista: a livre manifestação do pensamento e a liberdade da imprensa, de onde deveria decorrer, necessariamente, a ausência do ‘animus difamandi’, tudo sustentado sob o pano do exercício de uma legitimidade concedida aos meios de comunicação e, por eles, aos comunicadores, razão pela qual seria licita a conduta do réu.
Para rebater tais argumentos, inicio com a lição de J.M. Desanter Guanter:
“É inaceitável admitir que deva existir uma normatização no sentido de observar, limitar ou censurar a conduta da imprensa. É que a liberdade dos meios através da qual se manifesta, é condição da integridade do Estado Democrático de Direito. Repito: sem imprensa livre, não há que se falar em democracia.
Mas, é de ver que, preocupado com a irresponsabilidade de alguns de seus membros, até mesmo pela divulgação de informação falsa, é que os membros da sociedade comunicadora passaram a desenvolver os princípios da deontologia que regram o dever-ser jornalístico.
A informação temerária, inconseqüente, aflige a própria seriedade da imprensa e os direitos individuais, e a ausência de comportamento ético, parcial, faccioso ou tendencioso, pode deslizar da violação ética para o terreno da criminalidade, vez que a realidade é (…) o paradigma, o dado primordial, o ponto de partida, a condição ‘sine qua non’ para a informação” .
Importante, nesta sucinta análise, ter-se presente a lição do professor Clóvis de Barros Filho, pesquisador do CNPq no Departamento de Comunicação Pública de Navarra da Espanha:
“Compartilhar eqüivale a pôr à disposição do outro e dos outros o que se tem. Como seria possível, a partir dessa noção, considerar comunicação a expressão mentirosa, a simulação? A relação de Lago com Otelo, tal como a apresentou magistralmente Sheakespare, vai desde a indução da suspeita à mentira caluniosa e, como conseqüência, muda a disposição amorosa de Otelo para a de desconfiança, até chegar finalmente ao ódio homicida. Não estavam equivocados os clássicos quando observaram que o mentiroso, o caluniador, é potencialmente um homicida, já que provoca o ódio, e este pode se concretizar em uma ação destruidora. Platão, mais especificamente, define a calúnia como o ‘discurso que divide os amigos’”.
Ante o até o momento exposto, cumpre-me esclarecer que o comunicador não só pode, como deve, ter estimulada sua vocação jornalística por uma carta de terceiro. A imprensa tem, entre suas molas propulsoras, as fontes jornalísticas, e, por certo, uma carta – como fonte que possa vir a ser considerada – pode encerrar uma notícia de extrema importância e até mesmo de utilidade pública. O que aqui se veda é que do anonimato do autor ou da sua intenção de ter sua identidade resguardada ou, ainda, da não divulgação da fonte onde foi obtida a notícia por qualquer outra razão, resulte a isenção da responsabilidade que decorre da denúncia infundada e, mesmo assim, divulgada. Desta forma, a denúncia que vai ao ar sem autor, sem lastro probatório e é difamatória deve importar na responsabilidade de quem a divulgou sem as devidas cautelas. Ainda, mesmo que divulgado o nome do autor, caso o jornalista venha a se exceder em comentários e críticas, acabando por atacar a honra do denunciado, também ele responderá pelos excessos que cometer. Assim, para resguardar direitos individuais e até mesmo a seriedade e idoneidade com que a imprensa deve atuar, é que a Lei de Imprensa, inteligentemente, em seu art. 28, adota o sistema da responsabilidade sucessiva ou em cascata, no que resulta que sempre haverá um responsável pela notícia veiculada.
Neste sentido, mais uma vez importa colacionar a lição do Prof. Clóvis Barros Filho:
“Quanto maior o número de unidades informativas verificáveis num texto, mais fatual ele será e, portanto, mais objetivo. Procura-se medir a possibilidade de acesso à referência que tem o destinatário da informação. Esta deve oferecer, sempre que possível, a possibilidade de verificação da referência (ou de sua fonte). Mesmo se essa verificação raramente se faz, a prerrogativa de fazê-la é uma garantia para o destinatário, porque assegura a aparência de objetividade (tema que abordaremos adiante) e reforça a credibilidade do veículo informador. A adesão à lógica do processo comunicativo depende dessa credibilidade, ou seja, de que a informação tenha uma efetiva âncora real.
A prerrogativa de checar a fonte esbarra com o chamado “segredo profissional” do jornalista. Em alguns casos, o jornalista não revela a fonte, com o objetivo de protegê-la. Em outros, para garantir a “fidelidade”, num matrimônio de conveniência” onde o repórter precisa da fonte, pela sua autoridade e conhecimento específico, e a fonte precisa do repórter, para divulgação e o conseqüente reconhecimento social.
Cabe citar a postura “herética” (auto-adjetivação) de Jerry Chaney ao questionar o anonimato das fontes: ‘Por que o público não se pergunta sobre a possível orientação desorientadora nas informações jornalísticas que vêem e ouvem? Não é necessário um esforço mental gigantesco para chegar à conclusão de que conhecer aquele que deu a informação pode ser tão importante quanto conhecer o que o’ informante’ tinha para dizer. O conhecimento da fonte afeta a credibilidade pelas qualificações da fonte para dar a informação”
Adiante, preleciona:
“Comentários excessivamente sensacionalistas, chativinistas ou parcialmente marcados por preferência ideológicas expostas apaixonadamente não só têm defeitos técnicos, que incidem sobre a qualidade profissional da informação, como contribuem para difundir posturas distorcidas, maniqueístas e agressivas.
O cuidado e o esforço de bem-fazer são exigíveis do informador na elaboração das informações , que deve ser de fonte segura e contrastada, documentada e exposta com objetividade. Isso requer um esforço de preparação sobre o tema a tratar e um seguimento de seu contexto e evolução. Afinal, a codificação, marcada por infinitos processos de escolha, é, em grande parte, responsável pela construção da opinião pública sobre os temas selecionados”.
Desta forma, decorre do exposto a conclusão lógica de que o jornalista não possui – em nome da liberdade de imprensa, esta vista como expressão política do Estado Democrático de Direito – imunidade jornalística. E é, nesta linha, no Direito Penal, respeitados os limites constitucionais decorrentes do devido processo legal, que vai se encontrar o meio indicado para tutelar o bem jurídico – a honra – violado através dos excessos cometidos pela imprensa.
Felizmente, ante a impossibilidade de censura prévia – meio comum de alienação das massas e de distorção da realidade nos Estados Ditatoriais – cumpre ao Poder Judiciário o honroso papel de servir de garantia a liberdade de imprensa, dentro dos limites aqui expostos. E exercerá esta função não se omitindo na avaliação dos danos causados pelos eventuais excessos da mídia.
Somente respeitando direitos fundamentais é que a imprensa estará exercendo a efetiva liberdade propugnada pela Constituição. Cumpre, portanto, aos operadores e operários dos meios de comunicação buscarem informações o mais idôneas e sérias possíveis, pois é a partir delas que se desenvolverá uma sociedade efetivamente democrática e politizada; pois, é encima destas informações que as pessoas defendem suas causas e suas ideologias.
Aliás, finalizo lembrado que limites à liberdade não é questão atual, mas matéria já disciplinada no art. 11, da famosa Declaração dos Direitos do Homem, marco da Revolução Francesa e, portanto, conquista do Liberalismo, promulgada em 24 de agosto de 1789:
“A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem,; todo o cidadão pode, por conseguinte, falar escrever, imprimir, livremente, respondendo, porém, pelos abusos desta liberdade nos casos previstos em lei”(grifei).
Negar este limites, eqüivale a negar garantias a direitos fundamentais arduamente conquistados pelos homens, o que constituí-se, por certo, em um abominável e repugnante retrocesso histórico.