Edna Cardozo Dias
Em 30 de junho de 1999 o Governador do Estado do Paraná , Jaime Lerner, sancionou a Lei 12.603, de autoria do deputado Aníbal Khoury, autorizando a instalação de fazendas de caça para animais de espécies exóticas ou oriundos de criadouros de animais silvestres devidamente regularizados pelo Poder Público.
Esta Lei alterou a Lei 8.946/89 que proíbe a caça predatória naquele Estado.
Histórico
A primeira tentativa de se legalizar a caça no Paraná foi em 1988, por recomendação do ex- Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal – IBDF, depois do I Encontro Nacional de Manejo da Fauna Cinegética realizado em maio de 1988, em Curitiba. Diante de exaltada manifestação popular contra o projeto foi sancionada a lei estadual n.º 8.946, de autoria do Deputado Paulo Furiatti, proibindo naquele estado a caça e pesca predatória, assim como os esportes, espetáculos e atos públicos ou privados que envolvam maus-tratos ou a morte de animais, independente de sua espécie, raça, de sua origem exótica ou nativa, silvestre ou doméstica e de sua quantidade.
Os ecologistas ficaram tranqüilos até 1990, quando novamente, na elaboração da lei de meio ambiente do Paraná estava embutido artigo que previa a criação de zonas cinegéticas, mas felizmente foi vetado.
Agora, por iniciativa do Deputado Aníbal Khoury o Governador do Paraná, Jaime Lerner, sancionou a Lei 12.603/99, que altera a Lei do Deputado Furiatti. Segundo as modificações fica autorizada a instalação de fazendas de caça para animais de espécie exótica ou oriundas de criadouros de animais silvestres devidamente regularizados. Isto significa a introdução de um novo negócio no país: empresas que criam animais com a finalidade de matar.
O que é a caça
Os primeiros seres humanos praticavam a caça de subsistência. Hoje, nossa espécie está atingindo cinco bilhões de indivíduos e caça-se para proteger animais domésticos e plantações; por dinheiro ( na venda de peles, couros e presas) e por esporte.
A África é o último continente onde animais de caça são ainda considerados como um meio para prover alimento para as pessoas locais.
Os colonos do Deserto de Kalahari, na Botswana, e as tribos do Vale Bisa, na Zâmbia, são, talvez, os últimos sobreviventes de uma sociedade primitiva. estudos de antropólogos mostram, entretanto, que nenhuma delas depende da caça para sobrevivência.
Uma sociedade que realmente considera a caça como meio essencial para sua prosperidade são os Inuits do Alasca, os tão conhecidos Esquimós. Hoje, os Inuits perseguem as baleias com equipamentos sofisticados, pois os métodos tradicionais de caça estão extintos, ano sendo oportuno dar-lhes a classificação de caça para preservar a identidade cultural de um povo. A Terra não pode mais suportar a matança de uma espécie em risco de extinção, como as baleias brancas, para garantir ganhos econômicos.
Fazendeiros em muitos países, exigem que o governo permita a caça de animais silvestres predadores para prevenir perdas econômicas. Mas, como a seleção requer um conhecimento muito correto da estrutura da população da espécie, isso tem causado grandes desequilíbrios na natureza, como ocorreu com os crocodilos do Nilo, como ocorreu com os cangurus da Austrália, a vicuna do Peru e os coiotes e lobos da América do Norte.
Caçadores com armadilhas matam milhões de animais silvestres em todo mundo, todos os anos, por suas peles. A essa cifra acrescenta-se um adicional de outros milhões de animais abatidos anualmente em fazendas e criadouros comerciais pelos poderes públicos. Os animais usados para indústrias de pele são pegos em armadilhas pelas patas. Esses equipamentos causam horas e até mesmo dias de sofrimento ao animal aprisionado, até que o caçador apareça e o estrangule. Tudo isso para a produção de supérfluos. Enquanto o incentivo econômico existir a caça ilegal das espécies continuará a proliferar, acobertada pelos exemplares advindos de criadouros autorizados e pela caça amadora.
A caça por esporte é também conhecida como caça amadora ( amador, segundo Aurélio Buarque de Holanda, significa aquele que faz por prazer , não visa lucro). Esse é pois o grande objetivo para o esporte de caça feito pelos ricos, quer seja um caro safari., quer seja uma temporada de caça, o propósito é o mesmo – perseguir e matar animais por divertimento. Esse é um negócio fantástico, também, para os supridores de armas, munições, roupas e outros equipamentos de caça.
O que são fazendas de caça
Essas fazendas , em moda nos EEUU, costumam receber animais velhos e descartados, comprados em zoológicos e circos. São animais já acostumados com a presença humana, semi-domesticados, que são fuzilados ou flechados sem misericórdia, e sem esboçar qualquer intenção de fuga. Costumam ser alimentados sempre no mesmo local, onde provavelmente serão facilmente fuzilados pelos ruins de pontaria, em troca de dinheiro. O golpe é à queima roupa mesmo, nem é preciso a perseguição.
As fazendas de caça são socialmente inaceitáveis , pois são locais onde animais silvestres podem ser mortos sem grande esforço, basta se pagar gorda importância em dinheiro. E um fim de semana de matança pode se transformar num mero passatempo de indivíduos perversos e insensíveis.
Deadline 2000
Coincidentemente ou não iniciou-se uma campanha, em 30 de novembro de 1998, a nível mundial, para se proibir a caça na Europa a partir do ano 2000, principalmente a caça com cães. A campanha está encabeçada pela Protection of Hunted Animals, e encampada pela Internacional Fund for Animal Welfare, League Against Cruel Sports e Royal Society for the Prevection of Cruelty to Animals.
Porte de armas e violência
Paralelamente, nos EEUU, inicia-se campanha contra o porte de armas para diminuir a violência. Lá existe o direito constitucional ao porte de armas. Ou seja, tudo nos leva à conclusão de que ,comerciantes brasileiros de munições temem queda na venda de armas e os caçadores de outros países estão de olho no terceiro mundo.
A mais importantes das restrições nos EEUU, atualmente, é a chamada Brady Bill ( Lei Brady), assim batizada em homenagem a Jim Brady, o assessor da Casa Branca baleado em 1981 no atentado contra o presidente Ronald Reagan. Limita-se a impor procedimentos ao comércio de armas, como a exigência do preenchimento de um questionário e a verificação de bons antecedentes.
Ainda nos EEUU o National Rifle Association, fundado em 1871 , que declara ser a mais poderosa organização de caçadores naquele país, assim como a National Shooting Sports Foundation se empenham em formar uma cultura para a caça. Esta última desenvolveu projeto o Wild, distribuído gratuitamente entre 130 000 professores. O resultado foi uma crescente violência entre os jovens e até crianças. Não é ao acaso que tantas tragédias ocorrem, quando indivíduos desequilibrados, equipados de poderosas armas, promovem verdadeiro massacre.
A NRA tem realizado um imbatível lobby no Congresso. Mas, seus esforços não se limitam ao Congresso. Ela dissemina anúncios e comerciais de TV e se infiltra em entidades como Boy Scouts of America ( escoteiros), clubes 4-H, influentes organizações de veteranos, clubes de caça, tiro, escolas e associações policias. Seu principal slogan é: ” armas não matam pessoas. Pessoas é que matam pessoas.”
Em 1998 ocorreu uma chacina no Arkansas, EUA, que horrorizou o mundo. Mitchel Johnson, de 13 anos e Andrew Golden de 11 anos mataram várias pessoas na escola pública de Jonesboro, dois dias depois de um violento massacre, praticado por meninos no Estado de Arkansas. Em entrevista à televisão CNN, que foi divulgada em canais de todo o mundo, os pais dos garotos confessaram que, desde cedo ensinaram as crianças a atirar e levavam-nas à caça, com os adultos.
Depois do massacre na escola secundária Columbine, de Litteton, a primeira dama Hillary Clinton afirmou que ” é criminosa a facilidade com que crianças obtem armasnos EEUU”
Crueldade animal: passos iniciais de um potencial criminoso
Estudos demonstram que a crueldade contra o animal é uma passo inicial de um potencial criminoso. A vida de assassinos em massa e criminosos violentos demonstra que esses, quando crianças, infligiam maus tratos aos animais. Albert Desalvo, o estuprador de Boston, na juventude prendia cães e gatos em caixotes de laranjas e atirava flechas através das tábuas. Em 1973 Desalvo foi encontrado morto em sua cela, esfaqueado no coração. Jeffrey L. Dahmer – serial killer, desviado sexual, que confessou ter canibalizado dezessete homens e meninos, quando criança empalava rãs, decapitava cachorros e prendia com estacas gatos em árvores no seu quintal. Em fevereiro de 1992 foi condenado e morto por outro interno em 1994. Ted Bundy, serial killer e estuprador ( 1973 a 1978) foi executado em 1989. Durante sua infância torturava animais e testemunhava a brutalidade de seu pai contra os animais.
Indústrias de armas temem queda na venda de armas
As principais indústrias de armas para caça são gaúchas – Taurus – Rossi – Boito. Não é mera coincidência que os estados do sul do Brasil defendam a caça.
Já em 1991 , o jornal Zero Hora noticiou que as lojas de armas do Rio Grande do Sul poderiam fechar suas portas caso a caça fosse proibida naquele Estado. O Presidente da Forjas Taurus, em entrevista ao Estado de São Paulo, afirmou que esta empresa sediada em Porto Alegre é responsável por 70% das armas fabricadas no país. O segundo grande produtor de armas do Brasil é a Rossi, sediada em São Leopoldo-RS. A Taurus está lucrando menos com as exportações deprimidas pela diferença cambial, e a caça será uma boa fonte de renda. Prova de que caça vende armas e dá lucro é o fato dos EEUU, onde se pratica a caça, comprar a metade das armas exportadas pela Taurus. E, também, não é por coincidência, é claro, que o mercado norte americano, que compra 50% do estoque da fábrica brasileira, é o país onde mais se caça e mais se mata, se estupra e se consome drogas no planeta.
O Diretor executivo da Federação de Caça no RS , estado onde a caça está liberada, é dono de uma agência de safari de caça, a Savage Turismo. Como se vê são interesses puramente comerciais que defendem esta prática .
O jornal Estado de São Paulo , em 21/04/96 noticiou que, já naquela época, a “ Venda de armas havia caído em 16%, apesar da violência”, liberar caçadas no Brasil poderá ser a solução esperada pela indústria de armas.
O jornal Estado de Minas , na reportagem intitulada ” Vender arma fica difícil nos EUA”, publicada em 25/07/1999, pg. 19, afirma que ” Taurus quer ampliar fatia no mercado”. Pudera, já que a mesma reportagem atesta que a empresa exporta 60% de sua produção para 85 países e a maior parte para os EEUU. A Taurus e outros fabricantes de armas estão sendo processados em vários estados dos EEUU.
Sem dúvida nenhuma a ampliação da caça no Brasil será um negócio fantástico.
Inconstitucionalidade da caça
A Constituição Federal, com o objetivo de efetivar o exercício do direito ao meio ambiente sadio, estabeleceu uma gama de incumbências para o Poder Público. Arroladas nos incisos II/VII do artigo 225. No caso específico da fauna e flora, a vigente Carta Magna, introduzindo a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios estabelece, entre outras atribuições de desempenho cooperativo:
II “ preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do país”.
VII “ proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.”
Pela evidência dos textos transcritos, torna-se patente que o fim básico e transparente é a defesa e preservação do meio ambiente, com todos , os seus elementos, inclusive os animais.
A caça, conforme definida no artigo 7º da lei 5 197, de 3 de janeiro de 1967, é a utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha de espécimes da fauna silvestre, quando consentidas na forma da referida lei. Para o ato de caça amadorista é exigida a filiação a um Clube ou Sociedade de Caça e Tiro ao Vôo, com personalidade jurídica e registro no Instituto Brasileiro do Meio ambiente e Recursos Naturais Renováveis- IBAMA.
Embora o incisos VII do artigo 24 da Constituição Federal conceda competência concorrente á União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre caça, sabemos que a caça ( amadora ou profissional) coloca em risco a fauna já em extinção, submete os animais á crueldade, provoca a extinção das espécies e compromete o remanescente patrimônio genético.
François Ramade, Professor de Zoologia e Ecologia na Universidade de Paris, afirma que “ na maioria dos casos, a exterminação de numerosas espécies animais deveu-se a uma exagerada pressão da caça, associada a uma profunda modificação ou mesmo destruição de seus habitats”.
Comenta o ilustre advogado Dr. Luiz Carlos Lisboa, em “ Razões para Matar” no Jornal da Tarde – SP”, de 19-02-89, que “ a morte do animal na caça é sempre terrível. Ela chega de surpresa, sangrenta e dolorosa. A eliminação de uma animal no vigor da sua vitalidade, abatido com a violência arrasadora da pólvora, é profundamente chocante e antinatural” e que “ o bípede racional que se arroga o direito de executar animais – em nome da nobreza e do esporte ou, um tanto hipocritamente, para equilibrar a ecologia – é o mesmo que, em nome de elevadas razões, desencadear guerras ao longo da história”.
A referida lei, fere, ainda, a Constituição Estadual do Paraná em seu art. 207, § 1º, XIV, que incumbe o Poder Público de ” proteger a fauna, em especial as espécies raras e ameaçadas de extinção, vedadas as práticas que coloquem em risco sua função ecológica ou submetam os animais á crueldade”.
No âmbito das leis ordinárias, a Lei 2.895/98 avilta a Lei Federal n.º 9 605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao meio ambiente.
Em seu artigo 32 a Lei 9 605/98 tipifica como crime “ praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.”
Estamos, ainda, diante de um Crime contra a Administração Ambiental ( art. 67 da Lei 9 605/98), que é a concessão de autorização por funcionário público , em desacordo com as normas ambientais.
Segundo a teoria Kelsiniana uma norma jurídica encontra seu fundamento de validade na norma que lhe é imediatamente superior, formando um encadeamento vertical cujo topo é a Constituição, que é o fundamento último de todo ordenamento positivo.
É evidente a incompatibilidade da Lei Estadual-PR 12.603/99 com a Constituição Federal e a Constituição Estadual do Paraná.
Resta, pois, demonstrado que a Lei 12.603/99 é ilegal, por violar a Lei Federal 9 605/98, pois toda lei deve se conformar as de categoria superior. Foram, pois, feridos dois princípios fundamentais do direito: o da constitucionalidade e o da legalidade, configurando-se a inconstitucionalidade direta e indireta da lei em tela.
Criadouros autorizados
Quanto à questão dos criadouros, são regulamentados por Portarias do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA.
Já à primeira análise deparamo-nos com o fato da legislação brasileira prever a autorização de criadouros de animais para fins conservacionistas ( Portaria/IBAMA n.º 139 N, de 29 de dezembro de 1993), para fins científicos ( Portaria/IBAMA n.º 16, de 4 de março de 1994), criadouros de fauna exótica (Portaria/IBAMA n.º 108, de 6 de outubro de 1994), criadouros de animais silvestres com fins econômicos e industriais ( Portaria/IBAMA n.º 118, de 15 de outubro de 1997) e criadouros da fauna exótica para fins econômicos e industriais ( Portaria/IBAMA n.º 102, de 15 de julho de 1998). Não existe a possibilidade jurídica de autorização de criadouros para fins de caça. Isto , de imediato, compromete a juridicidade da referida Lei.
Com estes esclarecimentos fica demonstrado à sobeja a inconstitucionalidade e ilegalidade da Lei 12.603, de 30 de junho de 1999 ( PR), assim como a inconstitucionalidade do esporte denominado caça.
Edna Cardozo Dias : Formada em Direito pela PUC/MG, advogada ambientalista, pós graduada em Direito Público, especializada em Criminologia pela Academia de Polícia Civil de MG, Doutoranda em Direito pela UFMG, e aprovada em 1º lugar no exame de seleção realizado em 1997, Presidente da Liga de Prevenção da Crueldade contra o Animal, agraciada com as Comendas Chico Mendes ( Câmara Municipal de Belo Horizonte), Erasmo Barros de Figueiredo Silva (OAB/MG), Mérito Legislativo 9 (Assembléia Legislativa de MG)