O Direito: sua prática e teoria

Frederico do Valle Abreu

É comum encontrarmos pessoas nos corredores do Fórum que afirmam o chavão “na prática, a teoria é outra”. Geralmente são juízes, advogados, promotores ou quem quer que seja que há muito se dão por desiludidas com a prática forense, vencidas pela chicana do próprio balcão das secretarias das Varas, reprimidas pelo burocrático sistema do leva-e-traz de autos processuais e pelo batente desesperador e burocrático, enfim, desencantadas com o Direito.

É importante, porém, lançar ainda que seja um grito de alento aos que sustentam que “na prática, a teoria é outra”, pois a observância do fenômeno do direito deve ser permeada de sólida cultura jurídica para que a sociedade possa restabelecer o importante crédito no Poder Judiciário. Seja na sala de reunião de um escritório de advocacia, seja nos autos do processo nos quais o juiz se debruça, seja na firme atuação dos promotores e procuradores, o fenômeno jurídico deve ser sempre visto de tal forma que garanta a toda a sociedade a melhor eficácia possível da norma aplicada ao caso concreto.

DWORKIN abre o subcapítulo denominado “os sonhos do direito” em sua obra O Império do Direito da seguinte maneira: “Os tribunais são as capitais do império do direito, e os juízes são seus príncipes, mas não são seus videntes e profetas. Compete aos filósofos, caso estejam dispostos, a tarefa de colocar em prática as ambições do direito quanto a si mesmo, a forma mais pura dentro e além do direito que possuímos”.

A bem da verdade, essa tarefa não pode ser atribuída apenas aos filósofos, mas a todos os cidadãos que tenham, ao menos, o mínimo de discernimento para enfrentar as verdadeiras questões colocadas em confronto no seio social.

Isto se dá porque a ausência de um mínimo de cultura jurídica acaba por atrapalhar – e muito – o expediente forense, abarrotando ainda mais os escaninhos dos tribunais e fazendo com que todos os participantes do processo tenham trabalho dobrado, ou mesmo triplicado, quando alguém dotado de um conhecimento meramente empírico, fragmentário e vulgar tenta garantir, a todo o custo, um interesse sobre o qual sequer houve reflexão suficiente para saber se realmente era o caso de iniciar uma demanda judicial em tal ou qual proporção.

Realmente a teoria não pode ser considerada tão diferente da prática, pois o Direito é um só, e um só deve ser o escopo da jurisdição. A observância do fenômeno do direito pressupõe, como já se disse, sólida cultura jurídica, sistematização de idéias e nítidos esclarecimentos sobre o mundo dos valores – axiologia. Do contrário teríamos um rábula atuando no tribunal, nunca um jurista.

É fácil perceber que o verdadeiro jurista, informado dos princípios filosóficos, acaba por conhecer e situar sistematicamente as várias facetas do seu verdadeiro objeto: o Jus. Não analisa apenas o caso concreto a que está diante. Antes, descortina ângulos jamais explorados, supondo soluções e testando em seu intelecto o resultado concreto delas, soluções essas que atendam com seriedade aos interesses envolvidos e, enfim, encontrando a mais racional e eficaz, talvez nunca antes passível de ser obtida pela técnica ordinária.

É com razão que CRETELLA JÚNIOR chega a afirmar que não existe setor algum do direito em que não deva estar presente a informação jusfilosófica, fundamental para o entendimento profundo das razões últimas dos institutos e dos sistemas jurídicos.

A grande prova disso, é possível concluir, são os progressos que a axiologia trouxe à filosofia jurídica, influindo sobremaneira nas sentenças proferidas, que passaram a ser encaradas com conteúdo mais substancioso, uma vez que o próprio julgador passou a encarar os problemas do caso concreto não só com meros e mecânicos silogismos e simplificação extremada do método da subsunção, mas sim com valoração infinita não só da norma, como também do próprio fato jurídico em seu contexto político e social.

Também aqui está o mérito do professor MIGUEL REALE, que esclareceu a doutrina tridimensional do Direito – fato, valor e norma – estabelecendo um paralelismo entre as ordens epistemológica e axiológica para buscar o que de melhor havia em cada corrente jurídica e estruturá-las harmonicamente sem exagerar-lhes unilateralmente a importância de cada uma delas.

Sobre a questão, nunca poderíamos deixar de citar o nosso grande mestre CARLOS MAXIMILIANO , que assevera:

“[…] o jurista, esclarecido pela hermenêutica, descobre, em código, ou em ato escrito, a fase implícita, mais diretamente aplicável a um fato que do que o texto expresso. Multiplica as utilidades de uma obra, afirma o que o legislador decretaria, se previsse o incidente e o quisesse prevenir ou resolver; intervém como auxiliar prestimoso da realização do direito. Granjeia especiais determinações, não por meio de novos dispositivos materializados e, sim, pela concretização e desdobramento prático dos preceitos formais. Não perturba a harmonia do conjunto, nem altera as linhas arquitetônicas da obra; desce aos alicerces e dele arranca tesouros de idéias, latentes até aquele dia, porém vivazes e lúcidos. Explica a matéria, afasta as contra-indicações aparentes, dissipa as obscuridades, põe em relevo todo o conteúdo do preceito legal, deduz das disposições isoladas o princípio que lhes forma a base e, desse princípio, as conseqüências decorrentes.”

Talvez seja por isso que o leigo não consiga compreender o porquê dos juristas discutirem o sentido da norma jurídica para a situação concreta, quando o legislador redigiu texto suficientemente claro e preciso para o destinatário da norma. E é justamente por este motivo que o advogado, muitas das vezes, deve ser como um filtro do caso, deve se impor ao cliente para censurá-lo quando a causa realmente ir contra os princípios éticos. Assim, acaba por auxiliar, ainda que de maneira singular, mas importantíssima, o próprio Poder Judiciário a resolver o problema do abarrotamento de processos.

Na verdade, porém, é infinita a variedade de fatos jurídicos, de modo a ser impossível – e é bom que seja assim – comprimi-los nas disposições de formas rígidas e inquebrantáveis. Mais verdade ainda é que o verdadeiro jurista, diante do caso concreto, valorando-o, estudando-o, revisando-o e reanalisando-o, acaba por se aperceber das múltiplas e variadas facetas que o envolvem, adequando a aplicação da norma à situação peculiar de cada caso, exprimindo os escopos políticos, sociais e jurídicos que a valorização de cada fator preponderante traz consigo, não se prendendo a esta ou aquela corrente dogmática, dando verdadeira vida à interpretação e à aplicação da norma.

Isto significa utilizar o mesmo dicionário para a análise dos casos, nunca se esquecendo, porém, que vários e vários verbetes estão ali para serem testados hipoteticamente até se chegar a um sentido, sinônimo ou antônimo adequado. Esta analogia também pode ser entendida em nosso “ensaio” como aquilo que WITTGENSTEIN chamou de uma forma de vida suficientemente concreta, de tal modo que um possa encontrar sentido e propósito naquilo que o outro diz e faz, ver que tipo de crenças e de motivos daria um sentido a sua dicção, a seus gestos, a seu tom de voz, e assim por diante.

Nunca o entendimento e a análise da norma jurídica e dos fatos jurídicos poderia ser assistemática, vulgar e de forma preponderantemente empírica. A valoração deve estar não só na norma, mas no fato e suas circunstâncias político-sociais, para que o verdadeiro jurista possa utilizar o seu conhecimento em prol da construção, verdadeiramente, de uma jurisdição eficaz e cidadã.

Não se pode deixar de reiterar que o chavão “na prática, a teoria é outra” traz apenas o entendimento de quem detém o conhecimento assistemático, empírico e vulgar da matéria, em nada contribuindo para a construção de uma sociedade auto-suficiente. Somente o verdadeiro jurista sabe aplicar a técnica adequada para valorar não só o fator jurídico na norma, mas os aspectos sociais e políticos que o fato jurídico traz consigo, observando além do profano, que não entende o porquê de ser a prática jurídica tão diferente da teoria, quando na verdade tanto a prática, quanto a teoria, formam uma amálgama ao serem analisadas com métodos criteriosos e racionais.

Tanto a prática jurídica, quanto a teoria, estão embasadas no mesmo escopo, que é a realização plena da jurisdição. Não há diversidade ontológica entre prática e teoria pelo simples fato de que o Direito é um só, havendo apenas aplicação de critérios diferenciadores em seus princípios, nas diversas áreas que abrange.

Assim, o direito não pode ser distinguindo na prática ou na teoria, pois é um complexo do mesmo fenômeno, sistematicamente organizado e dentro de um ordenamento jurídico uno. Ganha, portanto, como LOUIS ASSIER-ANDRIEU bem assentou, um “D” maiúsculo, lembrança gráfica da sua majestosa missão, impossível de ser separado e analisado assitematicamente. O Direito é um só!

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