Os grandes problemas da filosofia à luz do direito processual civil

Jorge Tosta

Juiz de Direito em São Paulo
Professor da Escola Paulista da Magistratura
Professor de Direito Processual Civil e Constitucional do Curso de Direito da Universidade São Francisco

I – Introdução

Na verdade, o tema proposto não tem a pretensão de tratar dos grandes problemas da filosofia em todo o sistema processual, mormente porque tal tarefa demandaria até mesmo um tratado.

Objetiva-se apenas traçar algumas modestas linhas a respeito do instrumento dentro do qual se fundamenta praticamente toda a doutrina processual: o processo.

Sabe-se que a ciência processual está hoje fundamentada em três vertentes principais, a saber a JURISDIÇÃO, a AÇÃO e o PROCESSO. É desta terceira vertente que nos ocuparemos, procurando realçar o aspecto sociológico do processo, à luz dos conhecidos problemas fundamentais da filosofia do Direito, quais sejam, o ontológico, o axiológico e o epistemológico.

Passemos primeiramente a tratar dos grandes problemas da filosofia do Direito, tendo por base o texto do Prof. André Franco Montoro em sua obra “Estudos de Filosofia do Direito”.

II – Origem histórica da Filosofia do Direito

Franco Montoro noticia-nos que até o fim do século XIX, a Filosofia do Direito foi denominada “Direito Natural” ou “Teoria do Direito Natural”, o que já demonstrava sua desvinculação (ou contraposição) ao Direito Positivo. Enquanto este tratava do Direito como ele é, o Direito Natural procurava estudá-lo no sentido de como deveria ser.

De fato, ensina-nos BOBBIO que o positivista jurídico assume uma atitude científica frente ao direito já que, como dizia Austin, ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser. O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor : na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom ou mau, justo ou injusto. O juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal.

Essa atitude contrapõe o positivismo jurídico ao jusnaturalismo, que sustentava que deve fazer parte do estudo do direito real também a sua valoração com base no direito ideal, pelo que na definição do direito se deve introduzir uma qualificação, que discrimine o direito tal qual é segundo um critério estabelecido do ponto de vista do direito tal qual deve ser .

A partir do final do século XVIII começaram a aparecer outras expressões, tais como “Doutrina Jurídica Filosófica”, “Filosofia do Direito Positivo”, etc., mas foi com HEGEL, em sua obra “Direito Natural ou Ciência do Estado – Fundamentos de Filosofia do Direito”, que a denominação permaneceu como hoje a conhecemos : “Filosofia do Direito”.

Alguns autores, de orientação positivista, ainda procuraram substituir a expressão como hoje a conhecemos por “Teoria Geral do Direito”, mas tal não vingou porque, como ressalta MONTORO, “a Filosofia não é uma síntese ou Teoria Geral da Ciência, mas uma reflexão em profundidade sobre os fundamentos e pressupostos de cada ciência” .

III- Aspectos Fundamentais da Filosofia do Direito.

Em 1962 a revista Archives de Philosophie du Droit (Arquivos de Filosofia do Direito) formulou um questionário com as seguintes perguntas que foram respondidas por dezenas de filósofos de diferentes tendências :

1) Que é a Filosofia do Direito ?
2) Qual o seu objeto ?
3) Quais os seus problemas fundamentais ?

Dentre os filósofos que responderam ao questionário merece relevo MIGUEL REALE, único filósofo brasileiro que integrou a importante revista ao lado, entre outros, de Bobbio, Cossio, Del Vecchio, Kelsen e Roubier.

A resposta a tais questões permite, segundo MONTORO, traçar um quadro com a principais orientações.

Senão vejamos :

a) Para alguns, como Kelsen, o objeto da Filosofia do Direito limita-se à axiologia jurídica, ou seja, o estudo do problema da justiça e dos valores jurídicos. Assim, a Filosofia do Direito ocupar-se-ia do Direito como ele “deve ser”, enquanto a Ciência do Direito como ele “é”.

b) Para outros, a Filosofia do Direito tem por objeto dois problemas básicos, a saber, o axiológico ou deontológico e o epistemológico ou gnoseológico. Nesta corrente não se cogita, como se vê, do problema ontológico da Filosofia do Direito .

Hoje, no entanto, a sistematização seguida pela maioria dos autores, sobre os aspectos fundamentais da Filosofia do Direito, pode ser estabelecida em três “problemas”:

1. O problema ONTOLÓGICO – aqui se procura analisar qual a realidade fundamental do direito, ou, por outras palavras, o “ser” do Direito.

Este aspecto é também denominado por alguns autores de “Teoria Fundamental do Direito”, “Teoria Geral do Direito”, ou simplesmente “Teoria do Direito”.

Analisa-se o Direito por si próprio, problematizando a norma jurídica positiva, segundo sua natureza, modalidade, fundamento, origem, validade e eficácia, tudo com o propósito de compreender o Direito como ele é.

De se registrar que não apenas o direito-objetivo (direito-norma) deve ser considerado sob o aspecto ontológico; também o direito subjetivo, a jurisprudência (o direito como ciência jurídica), direito consuetudinário, e a moral (VAN ACKER).

Uma vez relevado o aspecto ontológico do Direito como fundamental à compreensão e ao âmbito da Filosofia do Direito, necessário se faz a localização do Direito no mundo dos objetos, pois não pode existir Filosofia do Direito se este não puder ser captado como objeto sujeito à apreciação filosófica.

COSSIO após classificar os objetos em ideais (os que existem apenas em nossa mente, são irreais, v.g. os números, as figuras geométricas), naturais (existem na realidade, estão na experiência, mas são neutros ao valor, v.g. as flores, os pássaros), e culturais (os bens criados pelo homem ao atuar segundo valorações, v.g. uma casa, uma sentença), termina por enquadrar o Direito entre os objetos culturais, isto é, “um objeto cultural egológico, por consistir fundamentalmente em condutas humanas em interferência subjetiva”.

De se registrar, ainda, a teoria tridimensional do Direito de MIGUEL REALE, segundo a qual o aspecto ontológico do Direito dever ser visto, ao mesmo tempo, sob três enfoques : fato, valor e norma. É o que o citado jurista preferiu denominar de ontognoseologia jurídica.

Para BOBBIO a ontologia compreende todos os estudos gerais sobre normas e os ordenamentos jurídicos, as fontes do Direito, a validade, a eficácia e o fundamento do Direito, as lacunas, as antinomias e a integração da ordem jurídica.

2. O problema AXIOLÓGICO ou o valor no Direito – também denominado de “Teoria dos Valores Jurídicos”, “Deontologia Jurídica”, “Teoria da Justiça”, “Teoria do Direito Justo”, “Direito Natural”, etc.

Sob este aspecto encontra-se o estudo da Filosofia do Direito no sentido do “deve ser” do Direito. A palavra “áxios” é de origem grega e significa apreciação, estimativa, valor.

MONTORO ressalta que o problema dos valores, como a justiça, a utilidade, o bem, a beleza, é tão antigo como o homem. Os filósofos ocuparam-se deles desde a mais remóta antiguidade, em estudos dedicados à Moral ou Ética, à Estética, à Política, à Economia, à Filosofia e ao Direito Natural.

Difícil a tarefa de conceituar o valor. Alguns autores, diante de tal dificuldade, preferem caracterizar os valores por algumas notas que lhes são comuns.

São elas :

a) a preferibilidade – há uma natural preferência do sujeito em relação a dado objeto. Tal preferência não resulta de nenhuma dedução lógica, sendo fruto de mera intuição;

b) a bipolaridade – todo valor passa por uma análise bipolar do sujeito, vale dizer, a todo valor corresponde um antivalor. Assim, o belo se contrapõe ao feio, o justo ao injusto, o bem ao mal;

c) a hierarquia – há uma graduação hierárquica dos valores para o sujeito. Os valores são então classificados em superiores e inferiores. A vida, por exemplo, é um valor hierarquicamente superior ao perfume de uma flor. É certo, porém, que tal escala de valores varia de acordo com as pessoas, os grupos e classes sociais, a época, etc.

2.1. Classificação dos Valores

Classificam-se os valores de acordo com as necessidades humanas. Destarte, temos os valores úteis, correspondentes às necessidades econômicas, os valores vitais, que correspondem à saúde, o bem-estar, os valores intelectuais, correspondentes à necessidade do homem de conhecer a realidade, o mundo e a si mesmo (a verdade), os valores estéticos, que correspondem à sensibilidade artística, identificando-se com as múltiplas manifestações do “belo”, os valores religiosos, relativos ao plano sobrenatural e às relações do homem com Deus, e os valores morais ou éticos, que dizem respeito à conduta humana e social : o bem comum, a justiça, a liberdade, etc.

Exatamente aqui, entre os valores morais ou éticos, se encontra o Direito.

Mesmo os adeptos da corrente positivista do Direito, como Kelsen, Hart e Bobbio, reconhecem que o Direito também é dotado de valores. As diferenças existentes entre as diversas concepções residem apenas no papel atribuído a esses valores.

Enquanto os positivistas reivindicam, sem negar a existência de valores , a autonomia científica do Direito Positivo, os autores que se voltam ao estudo do Direito vivo consideram o valor, e especialmente a justiça, como elemento integrante e indissociável da dinâmica jurídica.

Com efeito, o valor de uma norma jurídica indica a qualidade que ela detém, em consonância com o direito ideal (entendida, como ressalta Bobbio, como síntese de todos os valores fundamentais nos quais o direito deve se inspirar. Dizer que uma norma jurídica é válida ou justa significa dizer que esta corresponde ao direito ideal).

Como se vê, para os jusnaturalistas, a justiça é o valor fundamental e indissociável do Direito. ROBERTO LYRA FILHO ressalta que “O direito é substancialmente, na sua ontoteleologia, um instrumento que deve (para preencher o seu fim) propiciar a concretização da justiça social, em sistemas de normas com particular intensidade coercitiva”. E STAMMLER arremata : “Todo direito deve ser uma tentativa do direito justo”.

De fato, não há como negar, como corretamente sustentam os jusnaturalistas, que a justiça está presente na elaboração da lei, na sua interpretação e na sua aplicação.

Na elaboração as leis devem vir acompanhadas de sua justificação, além de terem que observar os princípios e valores constitucionais. Na interpretação deve o jurista buscar a finalidade objetiva e social da lei, que, por sua própria natureza, deve estar orientada para um valor fundamental, que é o bem comum . Aqui não se leva mais em conta a vontade do legislador, como pretende a escola da exegese. A partir do momento em que a lei é promulgada, ganha ela existência objetiva, tornando-se independente de seu autor. Por fim, na aplicação deve o Juiz também observar a finalidade objetiva da norma, atendendo aos fins sociais a que ele se dirige e às exigências do bem comum (Art. 5º da LICC).

3. O problema EPISTEMOLÓGICO ou o Direito como Conhecimento

Epistemologia, do grego episteme, que significa ciência, e logos = estudo. Portanto, o problema epistemológico se coloca exatamente em situar o estudo do Direito como ciência.

Aqui nos defrontamos com a primeira indagação: o Direito é uma ciência ?

Autores existem (KIRCHMANN) que negam o caráter científico do Direito, porquanto só se pode ter por científico o conhecimento dotado dos atributos de universalidade, estabilidade e imutabilidade, o que, segundo este autor, o Direito não tem, dadas as suas constantes variações.

Este pensamento hoje, no entanto, está superado, sendo inequívoco que o Direito está também classificado entre as ciências da cultura, ou as ciências do espírito. Claro que o Direito não pertence ao mundo da natureza, mas ao da cultura. Aliás, como ressalta MONTORO, não há apenas uma e sim diversas ciências que se ocupam do Direito. São elas : a Dogmática jurídica, que estuda o plano do dever-ser jurídico; a Sociologia Jurídica, que estuda a realidade sociojurídica (ciências jurídicas de livre investigação), e a Filosofia do Direito, que estuda o plano do dever-ser humano ou ético .

Outrossim, não se pode negar que o Direito também detém, ainda que nos seus aspectos mais gerais, os atributos mencionados por KIRCHMANN para defini-lo como científico. A universalidade do Direito está presente em toda sociedade, que para a sua própria existência depende de um regramento mínimo. No atual estágio da humanidade, não mais se pode conceber o homem vivendo em estado natural. Necessita de normas ou regras que garantam a liberdade dos indivíduos e, ao mesmo tempo, definam o limite desta liberdade frente aos outros indivíduos. Este regramento, por si só, independentemente de seu conteúdo, já demonstra que o Direito também goza do atributo de estabilidade, no sentido de que regras sempre haverão de existir, durem elas por pouco ou por muito tempo.

Também tem o Direito o atributo da imutabilidade, pois assim como as leis científicas, os pressupostos que estabeleceram as leis jurídicas vigem enquanto outros não os superem. Assim, a imutabilidade a que alude KIRCHMANN, e que concordamos seja elemento integrante do estudo científico, não é absoluta nem mesmo nas leis da natureza ou científicas, as quais se mostram imutáveis apenas enquanto aceitas e comprovadas pelo homem.

4. Aspectos fundamentais da Filosofia à luz do Direito Processual.

Como dissemos no início deste trabalho, todo o avanço da ciência processual foi construído ao longo dos anos sobre trinômio jurisdição, ação e processo. Três enfoques que, de maneira geral, constituem toda a estrutura do direito processual como hoje é conhecido. Neste trabalho procuraremos nos ocupar apenas do processo, o qual representa, no fundo, a materialização dos demais aspectos, pois não se pode tratar concretamente da jurisdição ou da ação sem que se imagine a existência real de um processo.

4.1. O processo sob o aspecto ontológico

Partindo da clássica definição de PONTES DE MIRANDA, segundo a qual o processo nada mais é do que um corretivo da imperfeita realização do direito objetivo, pode-se concluir, sem medo de incorrer em erro, que o processo, como um instrumento da jurisdição, surge somente quando o direito positivo, isto é, a norma jurídica não alcançou a sua finalidade primeira que é a pacificação social. Daí dizer-se que a jurisdição é uma atividade secundária, pois que só atua onde o direito, de per si e de forma primária, não foi suficiente para resolver o problema da convivência das liberdades, ou, como preferem outros, do conflito de interesses entre as pessoas.

Se formos analisar o processo sob o aspecto ontológico diríamos que ele é, ao mesmo tempo, a representação de uma deficiência do sistema jurídico e um instrumento para correção dessa deficiência .

MONTESQUIEU, ao idealizar a separação dos poderes, tinha como pressuposto básico a descentralização do poder, não apenas para evitar que o monarca concentrasse em suas mãos a função de legislar e julgar, mas também para que cada uma dessas funções fosse exercida por órgãos distintos como reforço da ordem jurídica. Assim, toda vez que uma lei editada pelo legislativo fosse descumprida, o judiciário atuaria para, interpretando a norma aplicável ao caso, assegurar a manutenção da ordem jurídica no caso concreto.

Certo, nesse diapasão, que a função jurisdicional objetiva, antes de mais nada, restabelecer o estado de direito, a fim de evitar a auto-tutela e a própria arbitrariedade do governante.

4.1.1. O processo como objeto cultural

Segundo a classificação de COSSIO, poderíamos enquadrar o processo entre os objetos culturais, vale dizer, aqueles que são criados pelo homem ao atuar segundo valorações. É, porque não dizer, assim como o Direito, um “um objeto cultural egológico, por consistir fundamentalmente em condutas humanas em interferência subjetiva”.

MIGUEL REALE sustenta que o bem cultural apresenta sempre dois elementos: o “suporte” e o “significado”. De acordo com essa classificação, podemos dizer que o processo, sob o aspecto exclusivamente material, representado pela reunião de documentos, depoimentos, perícias, petições, etc, é o suporte que traduz um significado: a existência de um conflito interssubjetivo não resolvido pela norma abstrata.

Para se conhecer este objeto cultural que é o processo, ambos os elementos (suporte e significado) têm de ser considerados em relação necessária de interdependência. O processo nada vale se considerado apenas em seu aspecto material (suporte), destituído de significado. A reunião de atos e documentos de forma ordenada não pode ser conhecida e estudada senão vinculada a um significado. Esta, aliás, a característica dos objetos culturais (e que os diferenciam dos objetos naturais), ou seja, serem dotados de valor (de significado).

É claro que o processo pode ser visto não apenas sob o enfoque sociológico, que ora estamos tratando como a representação de uma deficiência do sistema jurídico e um instrumento para correção dessa deficiência. Pode também ser encarado sob o enfoque individualista, que vê o processo como um contrato ou quase contrato, ou ainda, como hoje é universalmente aceito, uma relação jurídica entre as partes e o juiz.

A teoria da exceções dilatórias e dos pressupostos processuais, criada por Oscar Von Bulow em 1868, e que toda a doutrina reconhece como a obra pioneira da ciência processual, sem dúvida teve sua contribuição importante para o processo civil clássico, especialmente para a construção do que ainda hoje denominamos de pressupostos processuais, mas relega a segundo plano a visão publicista do processo como um instrumento de pacificação social.

Não se pretende destruir ou criticar tal teoria, até porque fundada em sólidos argumentos, universalmente aceitos pela ciência processual, mas apenas relevar o que parece ter adormecido em sono profundo entre os processualistas : o aspecto sociológico do processo.

Assim, antes mesmo de vermos o processo como relação jurídica, mister se faz enxergá-lo como um instrumento conferido ao Estado para impor sua vontade sobre certos indivíduos, a fim de assegurar a justiça e, em última análise, o bem comum.

A convivência em sociedade pressupõe regras ou normas que, segundo a concepção de KANT que ora adotamos, ao mesmo tempo assegurem e limitem a liberdade dos indivíduos. Para evitar que o descumprimento dessas regras ameace a harmonia e a paz em sociedade é que os indivíduos dela integrantes elegeram o Estado como ente responsável pelo estabelecimento da ordem . Nesse sentido é que se diz que o processo é um instrumento conferido ao Estado para impor sua vontade que, por outras palavras, é a vontade da própria sociedade ou, em última análise, dos próprios indivíduos que almejam o respeito às regras ou normas por eles criadas.

Tudo converge, como se vê, para o objetivo que originou a própria formação da vida em sociedade, ou seja, a pacificação social.

Quer nos parecer, pois, que o processo, sob o aspecto ontológico-sociológico, constitui efetivamente a representação de um conflito originado do descumprimento de um direito ou de uma norma jurídica. É também o meio escolhido pela sociedade para estirpar esse conflito, por imposição da vontade estatal sobre os litigantes.

4.2. O processo sob o aspecto axiológico

Evidente que, sendo o processo um objeto cultural, que constitui, segundo MONTORO, tudo aquilo de que se pode dizer alguma coisa, ou, do ponto de vista lógico, tudo aquilo que pode ser sujeito de um predicado, não podemos deixar de enfocá-lo sob o aspecto axiológico.

Estabelecidas as premissas anteriores quanto ao aspecto ontológico do processo, ou, por outras palavras, quanto ao que o processo realmente é, consoante a visão sociológica que ora enfocamos, passemos à análise do dever ser do processo, isto é, do valor deste instrumento de pacificação social.

Como já dissemos anteriormente no início deste trabalho, muitos filósofos, diante da natural dificuldade de conceituar o que efetivamente seja valor, preferem identificar os elementos básicos que o compõe, a saber, a preferibilidade, a bipolaridade e a hierarquia.

Pois bem. Diante desses elementos, incumbe-nos fazer a primeira indagação: Qual o valor do processo ?

Dissemos que o processo é, ao mesmo tempo, a representação de uma deficiência do sistema jurídico e um instrumento para correção dessa deficiência.

Ora, se o processo é um instrumento de correção de uma deficiência do sistema jurídico, porque não observada a norma de forma primária, evidente que seu valor há de ser encontrado em algo que a sociedade almeje para a sua própria sobrevivência.

Já dissemos que ao criar regras e normas estruturadas, os indivíduos, representados pelo Estado, objetivam o respeito a elas (desde que efetivamente representem um ideal de justiça), a fim de que se mantenha a pacificação social. Esta, por sua vez, para ser alcançada exige a existência de um instrumento capaz de restabelecer todo e qualquer ataque que possa por em risco os direitos e as garantias individuais e coletivos.

Este instrumento denominado processo constitui um meio através do qual o Estado impõe a sua vontade sobre os indivíduos, dentro de um sistema estruturado de poderes, com o objetivo de restabelecer o que os indivíduos pretenderam “ab initio” ao se reunirem em sociedade: a pacificação social.

Mas o dever ser do processo, ou, por outras palavras, o valor do processo, não se limita à imposição da vontade do Estado com a finalidade de pacificação social.

A interpretação do significado do processo há de ser feita de molde a propiciar a real vontade da sociedade com vistas ao justo. Assim, o que se espera do processo em seu conteúdo axiológico é a justiça, a qual deve estar presente na solução do conflito levado ao processo, sob pena de não se poder falar em verdadeira pacificação social.

A justiça deve ser o valor último do processo, como instrumento de pacificação social, pois só assim a deficiência do sistema jurídico gerada pelo descumprimento primário do direito (que se espera represente também o justo) poderá ser corrigida, sem gerar o sentimento de impunidade ou do próprio antivalor que é a injustiça.

É certo que o valor justiça que deve estar presente no direito, fonte primária da ordem jurídica, e no processo, aqui tratado como fonte secundária, nem sempre é alcançado.

A própria visão privatista do processo, que limita os poderes instrutórios do Juiz em busca da verdade, ante o mal interpretado princípio dispositivo, é sem dúvida a responsável, na grande maioria dos casos, pela ausência de valor no processo. Também a visão dogmática positivista do processo, segundo a qual o Juiz está adstrito à literalidade das normas, excluiu qualquer tipo de juízo de valor.

Ora, não se pode esquecer que o processo é uma “atividade ordenada, ao menos tendencialmente, à realização da justiça” .

Portanto, “se a jurisdição é a atividade estatal destinada à atuação da lei; se a ação é o poder de estimular essa atividade e fazer com que ela atinja seu objetivo; se a defesa é pressuposto da legitimidade do provimento e imprescindível à correta imposição da norma ao caso concreto, o processo, palco em que essas três atividades se desenvolvem, deve ser considerado o meio através do qual se visa a um provimento justo” (grifo nosso).

Assim, qualquer solução que pretenda limitar-se à malfadada verdade formal , isto é, que decida apenas com base no que está formalmente entranhado nos autos, sem qualquer preocupação com o que de fato representa a verdade, em nada contribuirá para a pacificação social.

O valor justiça é imanente ao anseio de paz pretendido pela sociedade. Assim como o Direito deve ser “uma tentativa do direito justo” (STAMMLER), o processo deve ser “um instrumento que propicie a concretização da justiça social” (ROBERTO LYRA FILHO).

Com efeito, o justo deve ser a finalidade principal e última do processo, sob pena de o Judiciário não cumprir sua função primordial de dar a cada um aquilo que é seu , para que efetivamente a pacificação social seja alcançada.

Não concordamos, pois, com a visão estática do processo, sustentada com veemência pela escola da exegese como reforço à ordem positivista, de que o juiz deve se limitar a interpretar a vontade do legislador. A errônea interpretação da doutrina da separação dos poderes não pode ser levada ao extremo de se imaginar que o Juiz seja um mero aplicador de “justiça” tarifada, onde a vontade do legislador, nem sempre condizente com a realidade social atual, deva prevalecer sobre a dinâmica do direito que se encontra presente no processo.

Em conclusão, podemos afirmar que o processo, sob o aspecto axiológico, é um instrumento de pacificação social que deve sempre buscar o justo, para tanto valendo-se o Juiz dos princípios gerais do direito natural, dos costumes e, enfim, da equidade que, no fundo, faz parte dos próprios princípios gerais do direito natural.

4.3. O processo sob o aspecto epistemológico

O estudo do processo como ciência não oferece grandes dificuldades. Aliás, diversos aspectos intrínsecos do processo sempre foram objeto de análises científicas que em muito engrandeceram o conhecimento sobre este fantástico instrumento de pacificação social.

A psicologia, a vitimologia, a sociologia e tantas outras ciências tiveram importante papel na compreensão dos indivíduos enquanto sujeitos do processo, permitindo ao Juiz e, de um modo geral, aos operadores do Direito, melhor conhecer os dramas e as tramas dos réus, das vítimas, das testemunhas e, enfim, das partes envolvidas.

Aqui, porém, nos interessa estudar o processo como ciência em seu aspecto finalístico, isto é, do resultado que produz no mundo jurídico: a jurisprudência.

NORBERTO BOBBIO esclarece que “na atividade relativa ao direito podemos distinguir dois momentos: o momento ativo ou criativo do direito e o momento teórico ou cognoscitivo do próprio direito; o primeiro momento encontra a sua manifestação mais típica na legislação, o segundo na ciência jurídica ou (para usar um termo menos comprometedor) na jurisprudência. Esta pode ser definida como a atividade cognoscitiva do direito visando a sua aplicação” .

De início, percebe-se que, para vislumbrarmos a jurisprudência em seu conteúdo científico, é preciso de plano afastar a concepção positivista que concebe a atividade da jurisprudência como sendo voltada não para produzir, mas para reproduzir o direito, isto é, para explicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo das normas jurídicas já dadas.

Assim, se partirmos da concepção positivista, realmente não há como estudar o processo em seu conteúdo científico, pois a atividade estática da jurisprudência de simplesmente interpretar o signo e o significado da norma não contém por si só qualquer elemento novo . A ciência só pode se ocupar de algo criativo, vale dizer, de algo que efetivamente transforme a realidade, ou, melhor esclarecendo, de algo que produza a realidade a partir de uma determinada visão social do momento.

A jurisprudência, aqui entendida como o resultado final produzido pelo processo, tem efetivamente importante papel transformador do direito. É por meio dela que as leis são aplicadas de acordo com a realidade social, ou, para usar a linguagem da nossa lei de introdução ao Código Civil, de acordo com as exigências do bem comum.

É a partir de uma determinada situação fática apresentada no processo que o Juiz irá criar a “norma concreta” para a solução do conflito, em consonância com o ordenamento jurídico vigente na sociedade e com os princípios gerais do direito natural. Isto não significa que a jurisprudência tenha um papel meramente interpretativo, como pretendeu a escola da exegese sob os auspícios do Código de Napoleão .

Ao juiz incumbe a importante tarefa de adaptar a realidade que lhe é apresentada ao Direito vigente, o qual, por sua vez, tem necessariamente de encampar o ideal de justiça. Se assim não for, não é Direito e, destarte, não pode ser aplicado pelo juiz. Daí a importante função criadora da jurisprudência, que deve estar sempre de sentinela para atenuar e até excluir a aplicação das normas que se mostrem em desacordo com o verdadeiro ideal de justiça.

Nessa medida é que podemos dizer que a jurisprudência, representando uma “norma concreta” para uma dada situação fática, tem conteúdo verdadeiramente científico e que indubitavelmente merece ser estudada como tal.

Para tanto, é preciso primeiramente identificarmos se o processo, como objeto cultural que é, goza dos atributos de universalidade, estabilidade e imutabilidade a que aludiu KIRCHMANN.

Não há dúvida que hoje, com o desenvolvimento dos povos, o processo, em qualquer cultura, seja ela ocidental ou oriental, constitui um instrumento destinado à verificação da verdade e à imposição da vontade do Estado sobre os indivíduos, de acordo com o direito, os costumes e a jurisprudência de determinada sociedade.

Desde as culturas mais rudes às mais desenvolvidas, não há como negar a existência de algum instrumento destinado a julgar os desvios de comportamento dos indivíduos, e a dar-lhes uma resposta segundo Direito vigente.

Mas nem sempre foi assim. No período das ordálias acreditava-se, certamente por influência da inquisição, que a verdade era algo exclusivo da divindade. Assim, v.g., se duas pessoas estavam litigando sobre determinado objeto, ambas deveriam submeter-se a duras provas de resistência física. Aquela que resistisse mais tempo, ou que sobrevivesse, era considerada vencedora, porque Deus a teria feito mais forte e, por isso, tinha direito ao objeto litigioso.

Mais tarde, por influência das idéias de Darwin e Spencer, passou-se a acreditar que a autotutela era a melhor forma de resolver os litígios, porquanto o mais fraco naturalmente sucumbiria diante do mais forte. Era, assim, desnecessária a existência de qualquer mecanismo destinado a compor os litígios; a própria natureza se incumbia de fazer a seleção natural dos vencedores. Era o chamado Darwinismo social.

Este sistema, explica ARRUDA ALVIM, “tinha evidentes desvantagens: 1) a realização da Justiça – mesmo de forma muito elementar – através da autotutela, na realidade provocava, muitas vezes, não a defesa de um verdadeiro direito, mas a prevalência da força bruta, sem justificativa alguma. Isto porque, o que se arrogava ter direito, quer individualmente quer com seu grupo, poderia ser simplesmente mais forte que o seu oponente; 2) em segundo lugar, tal sistema constituía em si mesmo constante ameaça à paz social e ao direito, gerando, assim, um clima de insegurança” .

De fato, a autotutela fora praticamente abandonada nos ordenamentos jurídicos modernos, porquanto pouca, ou quase nenhuma, contribuição para a pacificação social possuía.

Para estudar o processo cientificamente, de acordo com os enfoques ontológico e axiológico já ressaltados anteriormente, mister se faz conhecer e analisar os resultados por ele produzidos, ou seja, a jurisprudência.

A sentença, como ato de poder delegado pelo Estado, e, em ultima análise, pela própria sociedade e pelos indivíduos que a compõe, deve representar a vontade primária de todos pela correta composição do litígio. E só se pode dizer correta, no sentido da pretendida pacificação social, a sentença que represente a efetiva justiça no caso concreto.

O juiz, em qualquer sociedade em que a ele seja delegado o poder de dizer o direito e de resolver os conflitos, tem o dever de buscar o justo. Inegável, pois, que o processo, sob este aspecto finalístico, tem universalmente o mesmo objetivo, ou seja, a justiça.

Por fim, não há como negar que o processo, em seu sentido finalístico, vale dizer, das decisões que produz, goza também do atributo da estabilidade, já que as decisões nele proferidas têm invarialvelmente a mesma finalidade: compor os litígios.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

MONTORO, André Franco. ESTUDOS DE FILOSOFIA DO DIREITO, editora Savaiva, 1995, 2ª edição.
BOBBIO, Norberto. O POSITIVISMO JURÍDICO – LIÇÕES DE FILOSOFIA DO DIREITO, editora Ícone.
NADER, Paulo. FILOSOFIA DO DIREITO, editora Forense, 5ª edição.
REALE, Miguel. FILOSOFIA DO DIREITO, editora Saraiva, 1996, 17ª edição.
COELHO, Fábio Ulhoa. PARA ENTENDER KELSEN, editora Max Limonad, 2ª edição.
PASCAL, Georges. O PENSAMENTO DE KANT, 5ª edição.
ARRUDA ALVIM, José Manoel de. TRATADO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL, vol. 1, editora RT.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. AS BASES DO DIREITO PROCESSUAL CIVIL. TEMAS.
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ, editora RT, 2ª edição.

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