Refletindo sobre o ensino e a formação do advogado

Luiz Otavio de Oliveira Amaral

“A mais comum forma de estupidez humana é esquecer o que a gente está tentando fazer” (Nietzche)

A antiga preocupação com a avaliação e a melhoria do ensino jurídico no Brasil que pesava e pesa sobre a OAB, parece que agora vem de apresentar resultados mais palpáveis,com o recente seminário nacional (OAB/MEC/CFE/Escloas/Professores/Especialistas)

Desde os seus primórdios a universidade (escola de ensino superior) sempre foi um centro de diuturna autocrítica, insatisfação científica e revisionismo (diferente de contestação) a fim de estar permanentemente à altura do seu tempo, da evolução do pensamento, da cultura; podendo, assim, atuar sobre o meio circundante, caso contrário sucumbirá enquanto instituição de ensino, como ocorreu com a Universidade de Paris no século XVI, mais que isto e acima de tudo, para a Universidade poder atender ao seu objetivo imediato, qual seja, exercer ação transformadora, através de uma “praxis” educacional crítica e aprofundada (diferente do ensino médio) sobre o acadêmico. “Praxis” que envolve, inclusive, a postura pessoal em geral (na escola e extra-escola) do professor, eis que sua linguagem verbal não deve ser contrariada pela sua linguagem não-verbal.

Nós professores, dirigentes, alunos e funcionários das escolas de Direito, certamente, estamos atentos àquela admoestação da Nietzche quanto ao que estamos tentando fazer em nossos misteres acadêmicos diários! Cada tempo ostenta seu demônio. O nosso é, sem dúvida, a obscura opção preferêncial por mais “homo faber” e menos “homo sapiens”. O “homo rusticus” deslustra nossa contemporaneidade, o sapiens pode sacudí-la…

Nosso demônio está bem simbolizado na cultura do imediatismo, em nossa intolerância ao que é longo, discursivo, profundo e erudito: os clássicos tratados jurídicos são destratados em prol dos opúsculos, dos resumos, das apostilas, manuais e publicações do gênero. As aulas, breves tertúlias entre dois recreios mentais, não ensejam mais o aprofundamento intelectual do “por que”, do “o que é”, da de-finição (dar os fins, os limites, os elementos distintivos/essenciais dos objetos em cognição). Tudo isto “não é mais compatível”(?!) com nossa civilização do video-clip, da “cultura meramente visual, de midia, onde o senso histórico, os ideais, o saber abstrato, a fidelidade aos princípios e à ética vem sendo substituídos pela vacuidade intelectual, pelo relativismo extremo (não há valores, só referenciais). Hoje educa-se ensinando não a obra em sua plenitude, mas tã-só o autor e certos referênciais da obra; é a nossa modernidade pós-novela. Conhece-se os autores e não suas obras, eis o “hit” deste nosso final de civilização. Que depressão isso provoca no professor cônscio e que faz a bôa opção de não usar artifícios didáticos reducionistas da relevância do ensino (catecismo positivista de ensinar só a norma escrita, antecipação de “5 das 3 questões de prova”, aceitação da infiel avaliação do trabalho-xerox, do “eu exijo pouco e vocês cobram-me pouco!”…).

Educar é elevar o nível do educando. Por isso mesmo toda educação, que para merecer tal nome precisa ser politicamente neutra (mas não apática em relação a este dado essencial ao processo de promoção do homem), é elitização, na mais própria e pura semântica do vocábulo. Educar é elitizar, isto é, criar elites, que são pessoas que se destacam por sua qualificação intelectual ou técnica. Todos devem ser educados, porém nem todos se destacarão como elite. Já superamos aquela tolice de que para ser democrático o ensino tinha que baixar de nível, para não ser rotulado de elitizante; confundia-se elite de privilégios econômicos e políticos com elite por mérito intelectual. Elitizar, aqui, é o oposto de igualar-se por baixo, é elevar-se o inferior.

Uma escola em geral pode e deve ser definida em dois planos: no positivo ela é uma instituição de educação (mais que só informar, deve formar suficientemente para promoção geral do homem); no plano negativo, não é, a escola, uma instituição comercial e no que tange às faculdades não são centros de mera profissionalização. Na universidade o homem medíocre é a erva daninha que precisa ser estirpada, bem como o carreirismo e a baixa estatura intelectual e moral, que envolve até mesmo a boa apresentação pessoal do professor (para este, como para a mulher de Cesar, ser não basta, precisa também parecer). O professor que já fechou os livros para sempre e assim não é mais um “scholar”, senão mero funcionário de uma repartição expedidora de diplomas e o professor-amanuense, todas estas mazelas universitárias não mais podem prosperar se quizermos sair da crise geral em que nos encontramos.

A aula para o “scholar” é somente um aspecto de sua atividade docente de pesquisador, de estudioso que domina bem toda a bibliografia de sua especialidade (daí as condenáveis “substituições”, os improvisos por não-especialistas). O “scholar” deve participar de colegiados, congressos, foruns (sua autoridade é a da competência) e não pode calar seu saber senão publicá-lo periodicamente. O envelhecer no batente da cátedra não é só um acumular de anos de aulas, mas também uma extensa produção intelectual… Inadmissível também os docentes vagalumes: de dia exercem profissão outra que nada tem com o Direito e de noite “brilham” no ensino jurídico. Eis as disfunções de algumas “pós-graduações”(lato senso) que terminam servindo de inidôneo passaporte para o ensino jurídico sem a necessária vivência profissional do Direito. Profissão ensinada por profissionais é o mínimo aceitável!

Por outro lado, o ensino universitário não poderá melhorar se não resolvermos o seu problema-base: o estudante. É ele, o acadêmico-consumidor de um serviço de mor interesse social, quer nas universidades públicas, quer nas pagas, que pode, deve e tem interesse direto na melhoria do serviço que lhe é prestado. Hoje a consciência da cidadania do brasileiro já não admite a má prestação de serviço por simplórios mecânicos de carro, técnicos de TV, como aceitar-se tal por escolas superiores?? O estudante não deve coonestar com o pacto da mediocridade, ou do facilitário (escola, professor e aluno todos fingem prestar bom ensino, bem ensinar e aprender bem e ao final há homenagens e louvações como se tudo estivesse honestamente bem resolvido) até porque, como ensinou o grande San Thiago Dantas: “quando a faculdade é benevolente, o Fórum é impiedoso”. A honestidade no ensino é fundamental, ensinar exige sinceridade: é o mérito intelectual e não a esperteza política (agradar para se manter simpático) que constitui o critério básico na escola, máxime a superior.

Nem o esoterismo verbal, tampouco a abolição da aula expositiva, nem só dogmática (preparação técnico-científica), nem só sentido humanístico (formação sócio-política),prática meramente instrumental da infra-estrutura teorica, menos legislação e mais problematização científica e reflexão crítica (sobre leis e jurisprudências); eis os ingredientes que se bem combinados produzirão um bom curso jurídico. A aula expositiva, além de exigir grande preparo do professor (estruturação lógica dos variados enfoques teoricos c/ virtuais ancoragens práticas, é indispensável como abordagem inicial e sintética de grandes e extensos temas. Por isso a indiscriminada adoção de métodos como seminários e estudo de casos (“case study” da universidade norte-americana, cujo Direito é mais propício que o nosso a tal técnica didáticas) Estes recursos pedagógicos só são uteis como e enquanto partes (não mais que isto) de um sistema proposto e que exigem prévio e geral (ainda que superficial) conhecimento do tema em que se subsume o “case”; sendo que o seminário tem, ainda, por pressuposto essencial que os alunos tenham domínio pleno da metodologia de pesquisa (poucos sabem fazer sequer referência bibliográfica…!). São, pois, tais métodos meros apoios (para topicos mais controvertidos) do ato de ensinar, logo jamais devem substituir as aulas expositivas, como soe ocorrer, máxime quando falta conteúdo teorico ao professor.

O nosso estudante noturno não é um estudante que trabalha, mas desafortunadamente um trabalhador que estuda e até esta inversão se resolver o ensino superior não terá a eficiência esperada pelo aluno e pelo país. Todavia, enquanto tal não se dá, podemos, professores, dirigentes, alunos e servidores, ao menos, reduzir algumas deficiências: aulas com plena duração e com aprofundamento doutrinário, seriedade nas avaliações (elaboração e correção), reciclagem periódica do material de aula e do próprio mestre, atualização da bibliografia apresentada aos alunos (e à biblioteca)… Depois de lecionarmos por mais de uma década e nas três faculdades de Direito do DF, eis nossa convicção: podemos melhorar, mas carecemos ter, de antemão, coragem e responsabilidade para não aplaudirmos os erros, os desvios e as inversões.

Tenho como absolutamente grave a paulatina inadequação cronológica do semestre letivo, que no geral em nosso país tem sido não mais que breve intervalo entre duas longas férias, pontilhado ainda de recessos, greves, faltas justificadas (reuniões acadêmicas e outros eventos escolares) e não justificadas. É comum, por exemplo, haver dificuldades cronológicas para o professor que leciona disciplinas cujo teor seja eminentemente abstrato (já em si difícil para o aluno) e teórico-propedêutico e logo fundamental como base do ciclo profissional, como são: Teoria Geral do Direito Privado ; Introdução ao Estudo do Direito (as muitas vertentes jusfilosóficas e os conceitos elementares da ciência jurídica como um todo); Teoria Geral do Processo…, todas estas disciplinas básicas estão sendo espremidas entre o início e o fim dos semestres letivo, sacrificando a boa performance de professores, alunos e escola.

A tão falada e pouco recriminada, como deveria ser, possibilidade do professor concluir seu semestre com apenas 75% do programa, não pode e não deve ser aplicada àquelas disciplinas (pilares da ciência jurídica). Em T.G.D.Priv., por exemplo, que tem por longo conteúdo programático a decomposição, em seu termos mínimos, de toda a relação jurídica (ie, o fenômeno jurídico por excelência e que se apresenta como básico em todos os campos do Direito), aquela amputação conteudística é lógica e didaticamente perversa. Como justificar ao aluno que ele conheceu os sujeitos da relação (questão por si só extensa), o seu objeto (divididos em 10 classes e 13 subclasses) e seu fundamento ontogenético (o fato jurídico amplo que comporta 8 subclasses) e que nesta altura do semestre letivo e do programa não há mais tempo para passar-se da morfologia daquele fenômeno para sua funcionalidade, como exige um programa mínimo?? A solução menos condenável são as aulas extras (sábados…).

É, pois, angustiante imaginarmos o acadêmico entrando no ciclo profissional (menos teórico, mais concreto e de itens programáticos mais ou menos seletivos, o que não ocorre e nem pode ocorrer naquelas disciplinas básicas) com sérias deficiências de formação infra-estrutural, como, aliás, percebe-se que mal sabem distinguir direito objetivo de direito subjetivo, ou mesmo lograr, definir, conceituar, senão apenas descrever etc… “A pretexto de rapidez e da “modernização” na formação profissional anulou-se no anulato, tanto a consciência de que o Direito é o caminho para a justiça, como a capacidade de reflexão sobre o fenômeno social e a norma”, eis nossa inquietação já há quase uma década em trabalho amplamente publicado.

A lógica jurídica é uma lógica filosófica e não uma lógica técnica (Engisch) e o bacharel em Ciências Jurídicas tem por mister profissional, mais que o fazer tecnológico, a preocupação humanista de caráter teleológico e de constante auto-indagação acerca dos fins da ação. Qualquer outro fazer profissional também tem ou devia ter tal humanismo, contudo no advogado isto não é só recomendável é uma imposição sócio-política, humanamente indispensável. Com efeito, é desta profissão que se forma, exclusivamente, um dos Poderes do Estado (o Judiciário que é a última tábua de salvação para o injustiçado…); forma-se, também exclusivamente, um outro segmento estatal de suma relevância para o povo e para o indivíduo em geral: o Ministério Público (Promotores, Procuradores, o fiscal da lei: o fiscal do fiscal). A faculdade de Direito forma, ainda, boa parte dos Poderes Legislativo e Executivo, como membros ou como servidores que influem em políticas e legislações que a todos atingem. Assim, pois a deformação profissional do advogado é a deformação oblíqua do Estado de Direito, que a todos garante e interessa.

Ademais, o mundo que se avizinha é um mundo de redução drástica de empregos, de incertezas constantes dada a velocidade cada vez maior das inovações tecnológicas e das mudanças no dia-a-dia; isto tudo exige novas e mais amplas habilidades profissionais (a era dos especialista esta findando), um profissional em permanente aperfeiçoamento e com alta dose de adaptabilidade e criatividade para atender às novas necessidades. Como contraponto, este mundo exigirá, além da competência técnica, o essencial compromisso ético-político e humanístico.

Nós, professores de Direito, fugiremos, como temos feito até aqui, da tentação hodierna de ensinar o aluno a “recitar artigos e parágrafos do Direito Oficial”, como já alertara-nos o saudoso mestre e amigo Lyra Filho. Devemos pois, todos, nos antecipar àquela avaliação necessária da OAB, melhorando o que pode e deve ser melhorado. Aliás, diga-se de passagem, que em Brasília só não tem bom ensino jurídico a escola não-escola. Mas há uma condição, senão essencial pelos menos necessária, para a melhoria do ensino jurídico: a substancial melhoria dos salários dos professores, sobretudo das faculdades particulares, sob pena dos “cursinhos” preparatórios absorverem todos os bons mestres. Contudo, se podemos dar aulas por três mil cruzeiros , não devemos dar aula de três mil cruzeiros… Por fim, é bom não esquecermos que na escola privada, por obvios motivos, é, sobretudo, o aluno-pagante que detêm a força política das mudanças.

Luiz Otavio de Oliveira Amaral é Professor Titular e Chefe do Departamento de Ciências Jurídicas da UDF. É autor de diversas obras jurídicas. Advogado militante em Brasília.

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