Breves considerações sobre a Ética do advogado
Antônio Cavalcante da Costa Neto (*)
ELES, OS ADVOGADOS
Os advogados falam e escrevem demais, falam e escrevem não para defender o interesse do cliente, mas para se darem ares de saber mais que os juízes e engordar seus proventos. Uma causinha de nada, que se resolveria em cinco minutos, quando confiada ao fôlego dos advogados incha mais que um balãozinho. Se não fossem os advogados, haveria menos causas; ou melhor, provavelmente não haveria mais nenhuma. Porque os advogados é que montam os processos, com seus sofismas e suas mentiras. Se não houvesse advogados, os litigantes sempre diriam a verdade; ou melhor, não teriam nem mesmo necessidade de dizê-la, porque se abraçariam fraternalmente, antes de a dizer. E não haveria mais, no processo, as sutilezas inventadas pelos leguleios; não haveria mais questões de competência, nem apelações, nem recursos em cassação. Se não fossem os advogados, a justiça se desenrolaria pacatamente, com espírito paterno e patriarcal…(CALAMANDREI, 1998: XLIII).
Não se ponha inquieto, leitor precipitado. As palavras acima não expressam minha opinião acerca dos advogados, nem mesmo a de quem as escreveu, o famoso advogado italiano Piero Calamandrei. Este, em seu livro chamado Eles, os juízes, vistos por um advogado, imagina a situação de um juiz que, depois da cansativa maratona de audiências, fustigado pela fome, e louco para chegar em casa e não encontrar o almoço frio na panela, vê-se obrigado a aturar o longo discurso de um advogado chato. Para desviar a atenção daquele palavreado estéril, fica o tempo todo olhando e remexendo o relógio, enquanto seu pensamento se perde nos devaneios que, segundo o autor, ninguém precisa ter dons sobrenaturais para conseguir adivinhar.
Mais tarde, contudo, saciada a fome e passado o mau humor, o magistrado reconsidera as opiniões pensadas anteriormente e reconhece, humilde e sabiamente, que estava errado, afinal:
Advogados e juízes funcionam no mecanismo da justiça como, na pintura, as cores complementares, que precisamente por serem opostas brilham mais ao estarem próximas. As virtudes que mais se homenageiam nos magistrados — a imparcialidade, a resistência a todas as seduções do sentimento e aquela serena indiferença, quase sacerdotal, que purifica e recompõe os mais torpes casos da vida sob a rígida fórmula da lei — não brilhariam como brilham se, ao lado delas, dando-lhes maior relevo, não se pudessem afirmar, em contraste, as virtudes opostas dos advogados, que são a paixão da generosa luta pelo justo, a rebelião contra toda prepotência e a tendência, inversa à dos juízes, de amolecer sob a chama do sentimento o duro metal das leis, para melhor moldá-las à viva realidade humana. (CALAMANDREI, 1998: XLIV).
Amolecer o duro metal das leis na chama do sentimento não é tarefa das mais fáceis. É, contudo, imprescindível. O ofício do advogado é fundamental para o efetivo exercício dos direitos dos cidadãos e, conseqüentemente, para a sobrevivência do próprio Estado democrático, entendendo-se como tal aquele que se funda num “sistema jurídico-normativo informado por uma pretensão de justiça de suas regras” (CANOTILHO, 1999: 1269). Sua função é tão importante que, como se sabe, nossa Constituição Federal chegou a reconhecer solenemente que o advogado é indispensável à administração da justiça.
Mas não é sobre a reconhecida indispensabilidade do advogado para a administração da justiça que me permito fazer algumas considerações. Em vez disso, prefiro convidá-lo a refletir comigo a respeito da importância da Ética em alguns aspectos da vida desse profissional. Se o faço é porque percebo que muitas vezes a imagem que se tem é a de que o advogado é realmente um sujeito que fala e escreve demais, preocupado em exibir sua pretensa erudição e engordar a conta bancária, ou que é um perito em montar tortuosos processos, abarrotados de sofismas e mentiras.
O ADVOGADO E A PALAVRA
Enquanto o cirurgião trabalha com o bisturi e o escultor com o cinzel, o instrumento de trabalho do advogado é a palavra. Escrita, falada, suplicada, exigida, murmurada…
Para que a palavra seja proclamada de forma eficaz, é importante que o advogado a trate com o carinho e o cuidado que ela merece. É preciso, pois, “conhecê-la e dominá-la, para que sirva adequadamente às estratégias da atuação profissional.” (NALINI, 1997: 185).
A luta do advogado na tentativa de conhecer e dominar seu instrumento de trabalho não significa, absolutamente, que o bom profissional deva ser aquele que fala e escreve demais. Ao contrário, o abuso das palavras pode ter conseqüências desastrosas, podendo colocar em perigo o direito cuja defesa lhe foi confiada. Quantas vezes, em sala de audiência, vêem-se advogados tentando impressionar seus constituintes com uma bacharelice infecunda, que mais desvia do que concentra a atenção nos elementos centrais da lide…
Mas isso se explica pelo fato de que os advogados, como todos os seres humanos, podem ser induzidos a erros, às vezes instigados por vícios adquiridos ainda nos bancos das universidades, como é a tentação da verborréia. Na formação acadêmica do bacharel é comum a confusão entre eloqüência e verborragia. E não raro nos deparamos com um e outro tentando esconder a pobreza de idéias num emaranhado de palavras vazias e desconexas.
O que, então, deve ser feito para atenuar esse mal a que todos nós estamos sujeitos? Procurar dicas nos manuais de como falar em público? Intensificar, no âmbito do ensino universitário, os cursos de oratória?
Bem, de minha parte penso que o ideal é evitar os extremos. Nem achar que basta um manual ou um curso de oratória para se saber com quantos discursos se faz um tribuno palrador, nem tampouco menosprezar a arte do bem falar. Antes de qualquer coisa, porém, é fundamental procurar estimular no futuro bacharel aquilo que a lei já coloca como uma das metas do ensino universitário, ou seja, o desenvolvimento do pensamento reflexivo. Não creio, dizia Calamandrei, discutindo esse mesmo problema, “que nas nossas faculdades de direito seja necessário treinar os jovens para a eloqüência forense, como nas antigas escolas de retórica. Os estudos jurídicos devem servir para libertar o pensamento; quando este for ágil e pronto, o discurso se libertará por si” (1998: 78).
No caso do advogado, o cuidado com o uso da palavra não deve ser levado na conta de preciosismo lingüístico. Precisa, isto sim, ser visto como uma norma ética a ser observada tanto na relação entre o profissional e seus clientes, quanto na relação dele para consigo mesmo, haja vista que, como já foi frisado, a palavra é a única arma da qual dispõe para exercer o seu ofício. Portanto, “descuidá-la é como o artilheiro deixar oxidar-se o canhão, o médico permitir que perca o gume o bisturi ou o arquiteto perder o compasso e as réguas” (OSÓRIO apud SODRÉ, 1967: 180).
ADVOGADO, O AMIGO DAS HORAS INCERTAS
Há quem imagine os advogados como aves de rapina. Se você está doente procura um médico. Entra no consultório. A parede da ante-sala, de cima a baixo, ornamentada com diplomas emoldurados. O especialista lhe prescreve uma bateria de exames. Dependendo da enfermidade, o profissional não lhe pode dar garantia de cura ou sobrevida. Mesmo assim você paga a consulta, os exames e o tratamento, geralmente sem questionar o que lhe foi prescrito ou o preço que lhe é cobrado, afinal de contas, nada mais justo que um médico receber condignamente seus honorários. No entanto, quando se precisa consultar um advogado, a situação é bem outra. Não é raro ouvir-se o comentário aviltante e chulo: o advogado comeu o meu dinheiro, como se a consulta ou a terapia jurídicas não fossem tão importantes para a vida quanto o ofício dos discípulos de Hipócrates.
Essa visão deformada e deformadora da imagem que algumas pessoas têm dos advogados decorre tanto da ignorância de muitos a respeito da advocacia, quanto da ação de uns poucos profissionais que não honram a missão que lhes é outorgada. Gente inescrupulosa, porém, pode haver em qualquer profissão, coisa que, obviamente, não deve servir de pretexto para encobrir a atuação de pessoas que nem sequer merecem o nome de advogados.
Advogado, para quem não sabe, é palavra originária do latim advocatus, significando aquele que foi chamado a socorrer (vocatus ad), aquele a quem se pede socorro. É claro que o médico também é invocado na hora da súplica. Entretanto, “só ao advogado se dá este nome. Quer dizer que há entre a prestação do médico e a do advogado uma diferença, que não voltada para o direito, é todavia descoberta pela rara intuição da linguagem. Advogado é aquele ao qual se pede, em primeiro plano, a forma essencial de ajuda, que é propriamente a amizade”(CARNELUTTI, 1995: 26).
O que muita gente não entende é como se pode ajudar, como amigo, alguém que se perdeu no caminho da delinqüência. Não é simpática à opinião pública, por exemplo, a atuação de um advogado na defesa de um acusado de praticar um crime hediondo, da mesma forma que não é convidativa a idéia de estender a mão aos encarcerados. Mas não é o próprio Cristo Quem nos manda ir ter com eles?
Cabe, pois, ao advogado, a tarefa muitas vezes impopular de encontrar uma centelha de dignidade na lama de iniqüidade em que o ser humano pode ser tragado. Para tanto não é preciso abrir mão da Ética. Muito pelo contrário. Basta entender que todo ser humano carrega dentro de si a possibilidade da conversão, e que não nos tornamos melhores que os outros quando, feito fariseus, nos auto-canonizamos pública e ostensivamente: “aqui, assim pouco se quer para um canalha virar santo. Cristo, com o exemplo do ladrão crucificado, nos tem ensinado! Após tudo basta que o canalha se envergonhe de ser canalha; e pode também bastar que um santo se glorifique de ser santo para perder a santidade.” (CARNELUTTI, 1995: 35).
O ADVOGADO E A VERDADE
A pendenga entre o advogado e a verdade, dizem os entendidos no assunto, é quase tão velha quanto a quizila entre o rabudo e a água benta:
Em todo processo há dois advogados, um que diz branco e outro que diz preto. Verdadeiros, os dois não podem ser, já que sustentam teses contrárias; logo, um deles sustenta a mentira. Isso autorizaria considerar que cinqüenta por cento dos advogados são uns mentirosos; mas, como o mesmo advogado que tem razão numa causa não tem em outra, isso quer dizer que não há um só que não esteja disposto a sustentar no momento oportuno causas infundadas, ou seja, ora um ora outro, todos são mentirosos. (CALAMANDREI, 1998: 121).
Todavia, o fato de ser o processo dialético e contraditório não significa que de um lado esteja “toda” a verdade e do outro a mentira inteirinha. Quem imagina o processo como uma batalha maniqueísta é porque ainda não entendeu que “a verdade tem três dimensões e que ela poderá mostrar-se diferente a quem a observar de diferentes ângulos visuais,”(CALAMANDREI, 1998: 121), ou ainda, que “a verdade é como a luz ou como o silêncio, os quais compreendem todas as cores e todos os sons; mas a física tem demonstrado que a nossa vista não vê e os nossos ouvidos não ouvem mais que um breve segmento da gama das cores e dos sons; estão aquém e além da nossa capacidade sensorial as infra e ultracores, como os infra e ultra-sons.” (CARNELUTTI, 1995: 37). Desse modo, como a verdade é decomposta nas diversas razões ou versões tal qual as cores no espectro solar, é necessário que perante o altar da Justiça sejam ofertadas todas as verdades para que se possa chegar o mais próximo possível da Verdade.
Por outro lado, a relatividade das verdades ofertadas sobre o altar da Justiça não nos autoriza a considerar legítima toda e qualquer versão dos fatos. É por isso que o processo judicial, antes de apresentar-se como um engenhoso método destinado a resolver lides, com suas formas, procedimentos e técnicas, precisa deitar suas mais profundas raízes no terreno da Ética.
O ADVOGADO E A ÉTICA
Ao lado dos que enxergam no advogado um animal rapinante, existem os que pensam que para ser um bom causídico é necessário fazer medrar dentro de si uma espécie de astúcia vulpina. A propósito, creio que as raposas é que são injustiçadas quando comparadas aos mestres da artimanha. Mas, como eu ia dizendo, ainda encontramos pessoas imaginando que um bom advogado, para ganhar suas causas, tem que se especializar em malícia e esperteza, transformando o processo judicial numa cilada.
Ora, de acordo com os princípios que regem o nosso ordenamento jurídico, é absolutamente impossível rimar processo com perfídia. Se o processo é um jogo com regras predeterminadas, é, acima de tudo, um jogo limpo. Para termos certeza disso, basta uma olhadela nos artigos do Código de Processo Civil relativos aos deveres das partes e dos seus procuradores. A estes compete expor os fatos em juízo conforme a verdade, proceder com lealdade e boa-fé, não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento, e não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. Como se não bastasse tudo isso, a lei reclama ainda civilidade na prática dos atos processuais. Chega mesmo a proibir às partes e seus advogados o emprego de expressões injuriosas, sejam verbais ou escritas.
Mas será que valores como sinceridade, lealdade, boa-fé, urbanidade, não podem tornar o ser humano vulnerável, quando o que se vê, muitas vezes, é a transformação das relações humanas em uma luta entre lobos ferozes?
Bem, é claro que algumas vezes as adversidades resultantes dos conflitos sociais podem resultar em tentações na vida do ser humano. Além disso, sabemos que a imperfeição é inerente à condição humana, tanto que o comportamento ético, no prática, é bem mais difícil que no plano teórico: “…querer o bem está ao meu alcance, não, porém, praticá-lo, visto que não faço o bem que quero, e faço o mal, que não quero.” (Rm, 7, 18-19).
Nada disso, porém, é o bastante para desviar o ser humano do itinerário que lhe foi reservado a partir do sopro divino, desde a sua gestação no útero do cosmos. E esse trajeto não é outro senão o de tornar-se menos imperfeito a cada dia que passa, o que só é possível através dos caminhos da Ética. Nesse sentido, não é demais lembrar, como o faz José Saramago, que, para o homem e a humanidade, jamais poderá “existir verdadeiro progresso se não sobrevier o progresso moral.” (SARAMAGO, apud NALINI, 1997: 7).
O progresso ético, por sua vez, não combina com o individualismo do “cada um por si.” Que esperança haveria para a humanidade, se nos “instalássemos diante da televisão (sob a proteção de nossas fortalezas eletrônicas) e esperássemos que alguém nos divertisse, enquanto as coisas seguiriam como estão?” (ECO, 2000: 18). Ao contrário, a Ética é a teoria normativa do comportamento do indivíduo em suas relações com seus semelhantes. Como observa Umberto Eco, felizmente o Jardim do Éden povoou-se rapidamente, instituindo na humanidade a dimensão ética, haja vista que esta “começa quando entra em cena o outro. Toda lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas com o Outro que a impõe.”(ECO, 2000: 83).
Essa dimensão ética passou a ser tão importante que se tornou essencial tanto quanto o ar que respiramos: “nós (assim como não conseguimos viver sem comer ou sem dormir) não conseguimos compreender quem somos sem o olhar e a resposta do outro. Mesmo quem mata, estupra, rouba, espanca, o faz em momentos excepcionais, e pelo resto da vida lá estará a mendigar aprovação, amor, respeito, elogios de seus semelhantes….” (ECO, 2000: 83).
Portanto, a conduta ética que se exige do ser humano em geral, e do advogado, de modo muito particular, é tentar romper o casulo do eu para ir ao encontro do outro. Este outro pode ser um colega de profissão que, do outro lado da mesa, contrapõe-lhe argumentos e verdades; pode ser um magistrado a quem o advogado procura por todos os meios influenciar na formação do convencimento; ou ainda, alguém capaz de matar, roubar, estuprar, e depois vir mendigar um olhar de comiseração.
Como se pode perceber, caminhar os caminhos da Ética é missão árdua, quando não penosa, ainda mais porque o itinerário não permite atalhos. Mas é imprescindível para que cada um possa fazer a descoberta de si mesmo, do sentido ou dos sentidos da existência, o que só é possível quando o eu procura se abrir para a experiência do outro.
Naturalmente que nesse caminhar haverão falhas. O erro, lembro mais uma vez o que todo mundo já sabe, faz parte da condição humana. Entretanto, a ontológica imperfeição desse ser único entre todos os que compõem a fauna das criaturas de Deus, longe de ser um mal por si mesma, é a pré-condição para o nosso aprimoramento. Afinal, não se pode aperfeiçoar senão o que ainda é imperfeito.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
A BÍBLIA – TEB, Tradução Ecumênica São Paulo: Edições Loyola & Paulinas, 1996.
CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed. — Coimbra: Livraria Almeidina, 1999.
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas – SP: Conan Editora, 1995.
ECO, Umberto & MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000.
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997.
SODRÉ, Ruy de Azevedo. O advogado, seu estatuto e a ética profissional. 2 ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1967.
Antônio Cavalcante da Costa Neto é Juiz do Trabalho (Picuí-PB), professor da UEPB (Guarabira-PB) e autor do livro Direito, mito e metáfora: os lírios não nascem da lei, publicado pela Editora LTr.