LEI 11.106/2005: NOVAS MODIFICAÇÕES AO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO – (I) – SEQÜESTRO OU CÁRCERE PRIVADO

Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Direito Penal, Político e Econômico
Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós)
Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia
Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador
do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.
Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP)
Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)
Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP)
Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP)
Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP)
Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva);
Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva),
e, Curso de Execução Penal (Saraiva).

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Sobre as modificações introduzidas; 2.1. Art. 148 do Código Penal; 2.1.1. §1º, inc. I; 2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro; 2.1.1.2. Crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos; 2.1.2. § 1º, inc. IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos; 2.1.3. § 1º, inc. V: crime praticado para fins libidinosos; 2.2. Considerações gerais.

1. Introdução
Entrou em vigor no dia 28 de março de 2005, data de sua publicação, a Lei nº 11.106, que alterou o Código Penal brasileiro em relação ao disposto nos arts. 148, 215, 216, 226, 227, 231, e acrescentou o art. 231-A.
Por força do disposto no art. 3º da referida lei, o Capítulo V do Título VI – Dos crimes contra os costumes, da Parte Especial do Código Penal, passou a vigorar com o seguinte título: “Do lenocínio e do tráfico de pessoas”.
Além das modificações acima indicadas, e em razão do disposto em seu artigo 5º, o novo diploma legal revogou os incisos VII e VIII do art. 107, os arts. 217, 219, 220, 221, 222, o inciso III do caput do art. 226, o § 3o do art. 231 e o art. 240, todos do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal.
Em sentido amplo, as modificações foram sensíveis e as novas regras reclamam, desde logo, apreciação reflexiva para uma melhor compreensão de todos os temas abordados.

2. Sobre as modificações introduzidas
Para uma melhor compreensão, passaremos a analisar cada uma das modificações introduzidas no Código Penal, na exata mesma ordem de disposição constante da Lei 11.106/2005, e depois, em tópico distinto, cuidaremos de tecer considerações a respeito das regras revogadas, tudo conforme segue.

2.1. Art. 148 do Código Penal
No caput do 148 do Código Penal estão descritas as condutas que tipificam o seqüestro e o cárcere privado. Ao narrá-las o legislador assim dispôs: “privar alguém, de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”.
A pena prevista para as hipóteses do caput é de reclusão, de um a três anos.
Na precisa visão de NÉLSON HUNGRIA: “Entende ROMEIRO (Dicionário de direito penal), que o cárcere privado é um genus, de que o seqüestro é uma species: ‘O crime de cárcere privado pode tomar a forma de detenção ou de seqüestro; dá-se a detenção quando a violência exercida sobre a pessoa consiste no impedimento ou obstáculo de sair de um certo e determinado lugar; no seqüestro compreende-se o fato de conservar a pessoa em lugar solitário e ignorado, de modo que difícil seria a vítima obter socorro de outro’. Parece-nos, entretanto, mais acertado dizer que o seqüestro é o que é o gênero e o cárcere privado a espécie, ou, por outras palavras, o seqüestro (arbitrária privação ou compressão da liberdade de movimento no espaço) toma o nome tradicional de cárcere privado quando exercido in domo privata ou em qualquer recinto fechado, não destinado à prisão pública. Tanto no seqüestro quanto no cárcere privado, é detida ou retida a pessoa em determinado lugar; mas, no cárcere privado, há a circunstância de clausura ou encerramento. Abstraída esta acidentalidade, não há que distinguir entre as duas modalidades criminais, de modo que não se justificaria uma diferença de tratamento penal”.[1]
Evidencia-se como objeto jurídico da tutela penal a liberdade individual, a liberdade de ir e vir, ficar, permanecer; a liberdade de locomoção, em última análise.
Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, assim como qualquer pessoa está em condição de ser sujeito passivo.
O elemento subjetivo é o dolo. Basta o dolo genérico para a configuração, e não há forma culposa.
Admite-se a tentativa.
Conforme CELSO DELMANTO e outros: “É delito material, que se consuma no momento em que ocorre a privação; é permanente, sendo possível a prisão em flagrante do agente, enquanto durar a detenção ou retenção da vítima”.[2]
Seus §§ estabelecem figuras qualificadas, e as modificações feitas pela nova lei estão dispostas no §1º.

2.1.1. §1º, inc. I
O § 1º estabelece formas qualificadas em que a pena é de reclusão, de dois a cinco anos, e quanto à pena nada mudou.
Em sua antiga redação o inc. I do §1º do art. 148 do Código Penal assim dispunha: “Se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente”.
A nova redação tem o seguinte texto: “Se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos”.
A proteção penal agora foi estendida ao companheiro do agente e ao maior de 60 (sessenta) anos.

2.1.1.1. Crime praticado contra companheiro
Entenda-se: companheiro ou companheira.
Aqui a redação ampliou o rol das formas qualificadas tendo em vista a necessidade de tratamento igualitário entre “cônjuge e companheiro” como decorrência do novo perfil jurídico-constitucional desta última situação reguladora de relacionamentos, que não está amparada nas mesmas formalidades que protegem os cônjuges.
Antes da previsão expressa não era possível estender a forma qualificada aos autores de tais crimes praticados contra companheiros em razão de estar vedada em Direito Penal a interpretação ampliativa do alcance da norma de maneira a ensejar resultado gravoso ao réu.
Por certo o sistema de proteção encontrava-se falho, omisso, e isso ao menos desde a Constituição Federal de 1988, tendo em vista a nova disciplina indicada para o tratamento das relações entre companheiros ou concubinos, conviventes em união estável.
Questão interessante a ensejar debate nas instâncias judiciárias refere-se à possibilidade da forma qualificada estender-se aos autores de crimes contra “companheiro ou companheira” em se tratando de relação homoafetiva.
Considerando que o ordenamento jurídico não dá proteção a tais relações; que não há por parte do Estado qualquer reconhecimento expresso para efeito de salvaguarda de direitos, o princípio da reserva legal impede que tais situações sejam reconhecidas para o efeito de permitir o elastério da norma agora prevista no inc. I, §1º, do art. 148 do Código Penal. Eventual ampliação do conceito de “companheiro” no sentido apontado ensejaria punição mais severa ao réu (ou à ré), vedada em razão da ausência de expressa cominação legal. Incabível falar, aqui, em aplicação de analogia, interpretação extensiva etc.
Por outro lado, caso sobrevenha alguma lei regulando as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, equiparando-as às relações estáveis entre homem e mulher para efeito de reconhecimento estatal e salvaguarda de direitos, a regra agora em comento passará a ser aplicada em relação a tais situações hoje desprotegidas em face à legislação penal vigente.
Anote-se, por oportuno, que para ter maior coerência sistêmica é preciso que o legislador, entre outras coisas, atualize o art. 61, inc. II, “e”, do Código Penal, que apenas se refere ao ascendente, descendente, irmão ou cônjuge.

2.1.1.2. Crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos
No que tange à forma qualificada quando o crime for praticado contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos é preciso notar que agora não há mais qualquer possibilidade de incidência da agravante genérica prevista no art. 61, inc. II, “h” (segunda figura), do Código Penal, sob pena de bis in idem, exceto em relação aos crimes consumados antes da vigência do novo regramento (sem permanência sob a égide do novo texto legal), se identificada e provada a hipótese.
A mudança a tal respeito introduzida guarda coerência com as regras da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003, convencionalmente denominada “Estatuto do Idoso”, sendo, por isso mesmo, acertado o acréscimo legislativo.
Considera-se idoso, para os termos de tal lei, a pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
Se a inicial privação da liberdade ocorrer quando a vítima contar com menos de 60 (sessenta) anos de idade, porém, se alongar até que seja completado o sexagésimo aniversário, a qualificadora incidirá em razão de estarmos diante de crime permanente, cujo momento consumativo se protrai no tempo.
De igual maneira, a nova regra também será aplicada aos casos em que a privação da liberdade teve início antes da vigência da nova lei, porém, se estendeu além da data de seu ingresso no ordenamento punitivo.
Nestes casos é preciso buscar a melhor compreensão do art. 4º do Código Penal, segundo o qual, “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”, a evidenciar a opção do legislador penal, no que tange ao tempo do crime, pela adoção da teoria da atividade.
Analisando os efeito do art. 4º do Código Penal em ralação ao crime permanente DAMÁSIO DE JESUS assim leciona: “Nele, em que o momento consumativo se alonga no tempo sob a dependência da vontade do sujeito ativo, se iniciado sob a influência de uma lei e prolongado sob outra, aplica-se esta, mesmo que mais severa. O fundamento de tal solução está em que a cada instante da permanência ocorre a intenção de o agente continuar a prática delituosa. Assim, é irrelevante tenha a conduta seu início sob o império da lei antiga, ou esta não incriminasse o fato, pois o dolo ocorre durante a eficácia da lei nova: presente está a intenção de o agente infringir a nova norma durante a vigência de seu comando”.[3]

2.1.2. § 1º, inc. IV: crime praticado contra menor de 18 (dezoito) anos
A nova lei acrescentou ao § 1º um inc. IV com a seguinte redação: “se o crime é praticado contra menor de 18 (dezoito) anos”.
Em razão da nova disposição também será qualificado o crime quando a vítima não contar com 18 (dezoito) anos completos, e a pena será de reclusão, de dois a cinco anos.
Se a privação da liberdade ocorrer no dia do aniversário a qualificadora não incidirá, pois, em tal caso, a vítima não poderá ser considerada menor de dezoito anos.
A modificação é bem vinda, pois, com ela, fica estabelecida a harmonia no sistema de proteção ao menor de 18 (dezoito) anos, em coerência com o disposto na segunda figura do §1º do art. 159 do Código Penal, onde está estabelecido que o crime de extorsão mediante seqüestro será qualificado “se o seqüestrado for menor de dezoito anos”.
Em relação a tal forma qualificada no crime do art. 159, ao seu tempo escreveu NÉLSON HUNGRIA: “A circunstância de ser a vítima menor de 18 anos (isto é, que ainda não completou tal idade) também justifica a agravação especial, porque torna mínima, quando não nenhuma, a possibilidade de eximir-se ao seqüestrado, ao mesmo tempo que é infringida a incolumidade especialmente assegurada à criança e ao adolescente”.[4]
Considerando que o crime de seqüestro ou cárcere privado é de natureza permanente, em algumas situações a privação da liberdade poderá iniciar quando a vítima for menor de dezoito anos e terminar após ela ter completado tal idade. Ainda será possível, em outra situação, que a privação da liberdade tenha se iniciado antes da nova lei e perdurado para além de seu ingresso no ordenamento.
Em ambas as hipóteses a qualificadora incidirá.
Reitere-se aqui a lição acima transcrita de DAMÁSIO DE JESUS quanto a melhor compreensão que se deve dar ao art. 4º do Código Penal diante de crimes permanentes.
A tentadora compreensão inversa levaria à conclusão no seguinte sentido: se a privação da liberdade iniciar quando a vítima ainda contar com menos de 18 (dezoito) anos, porém, se estender para além da data em que atingida tal idade, a qualificadora estará afastada.
Se verificada a hipótese exatamente como acima aventada; com o prolongamento da privação da liberdade o réu estaria a se beneficiar, deixando de incidir em pena de dois a cinco anos, acabando por ser “agraciado” com a adequação típica de sua conduta no preceito primário, com pena cominada entre um e três anos, de reclusão.
Aqui, a prolongação do sofrimento da vítima seria benéfica ao réu, o que não se pode admitir eticamente, tampouco à luz do disposto no art. 4º do Código Penal, conforme anotado.
Na outra situação indicada, onde a privação da liberdade do menor de dezoito anos teve início antes da lei e se alongou para depois de sua vigência, a natureza permanente do crime impede, por absoluto, o não-reconhecimento da qualificadora, hipótese claramente incogitável.

2.1.3. § 1º, inc. V: crime praticado para fins libidinosos

A última alteração feita no art.148 decorre do inciso V, que também foi acrescido ao § 1º.
Pela nova previsão, se o seqüestro ou o cárcere privado for praticado para fins libidinosos o crime também será qualificado e contará, obviamente, com pena mais elevada (reclusão, de dois a cinco anos).
Atos libidinosos são aqueles praticados com a finalidade de satisfazer a lascívia, o prazer sexual.
Se o crime for cometido para o fim de manter relação sexual (cópula vagínica) ou para a prática de qualquer ato libidinoso diverso da conjunção carnal (coito anal ou felação, por exemplo), a forma qualificada estará presente.
Se além da privação da liberdade, configuradora de seqüestro ou cárcere privado, o réu (ou a ré) efetivamente praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal, contra a vontade da vítima (art. 214 do CP), ocorrerá concurso material de crimes (art. 69 do CP). Também haverá concurso material de crimes se além do seqüestro ou cárcere privado o agente submeter a vítima à relação sexual não consentida (art. 213 do CP).
Na hipótese do inc. V, por certo haverá muita discussão a respeito do posicionamento acima adotado, pois não serão poucos os que entenderão que o crime de seqüestro ou cárcere privado deverá ser considerado crime meio para a prática do crime fim – atentado violento ao pudor ou estupro, dependendo do caso.
A melhor exegese, entretanto, não autoriza tal compreensão, inclusive porque tais crimes prescindem, para sua configuração, das práticas tratadas no art. 148 do Código Penal.

2.2. Considerações gerais
Como visto, em relação ao art. 148 do Código Penal foram feitas alterações que implicaram em novas formas de adequação típica qualificada.
Em razão do princípio da anterioridade da lei penal; da irretroatividade da lei penal mais severa, somente os crimes praticados nos moldes descritos nas novas qualificadoras após a vigência da lei é que estarão sujeitos à forma qualificada que impõe punição mais severa. Não há qualquer possibilidade de agravamento de pena em razão das novas disposições no que tange aos fatos passados, consumados antes do ingresso das novas disposições no universo jurídico.
De ver-se, entretanto, que o seqüestro e o cárcere privado são crimes permanentes, e mesmo que a inicial privação da liberdade tenha ocorrido antes da vigência da lei, ocorrendo, por exemplo, prisão em flagrante depois da data em que o regramento novo passou a ser aplicável, a tipificação se amoldará à forma qualificada em razão dos efeitos da permanência, conforme as observações acima apontadas, pois em tais situações, enquanto durar a permanência o crime estará em seu processo consumativo.
Ressalte-se que em relação ao crime praticado contra maior de 60 (sessenta) anos, consumado antes da vigência da lei nova (sem permanência sob os efeitos dela), a conduta típica apenas comportará agravamento em razão da circunstância genérica prevista no art. 61, inc. II, “h” (segunda figura), do Código Penal.

Notas:

1. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, vol. VI, 3ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1955, p. 183/184.
2. DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, São Paulo, Renovar, 6ª ed., 2002, p. 318.
3. JESUS, Damásio E. de. Código Penal anotado, 8ª ed., São Paulo, Saraiva, 1998, p. 15.
4. HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, vol. VII, 1958, p. 73.

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