Lélio Braga Calhau
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais.
Pós-Graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha).
Mestre em Direito do Estado pela Universidade Gama Filho (RJ).
Conselheiro do ICP Instituto de Ciências Penais do Estado de Minas Gerais.
Autor do livro Desacato (Editora Mandamentos, BH, 2004).
No Brasil o crime de desacato está previsto no artigo 331 do Código Penal. Ao nosso ver, foi acertada a configuração da referida ação como crime, mas errou o legislador ao criar um tipo penal excessivamente aberto, facilitando um número quase ilimitado de condutas que podem ser enquadradas penalmente, gerando, inclusive, uma grande insegurança jurídica na aplicação da referida norma penal.
O delito de desacato é de grande importância para a própria manutenção da Administração Pública. Existe interesse público primário no sentido de que os funcionários públicos sejam respeitados no exercício ou em razão das funções que ocupam. Pelo contrário não haveria como o Estado cumprir devidamente as suas atividades, pois sempre existiriam aqueles que com interesses jurídicos resistidos, poderiam querer tumultuar as ações da Administração, passando a atacar as pessoas de seus representantes legais (01).
Todo o funcionário público, desde o mais graduado ao mais humilde, é um instrumento de soberana vontade e atuação do Estado. Consagrando-lhe especial proteção, a lei penal visa a resguardar não somente a incolumidade a que tem direito qualquer cidadão, mas também o desempenho normal, a dignidade e o prestígio da função exercida em nome ou por delegação do Estado. Na desincumbência legítima de seu cargo, o funcionário público deve estar coberto de quaisquer violências ou afrontas (02).
São, ainda, conhecidos os casos de abuso por parte de agentes públicos na interpretação do crime de desacato. Existe uma grande desconfiança por parte da sociedade civil quanto à aplicação correta do crime de desacato, notadamente, pela interpretação elástica dada comumente por policiais.
Em verdade, tais problemas decorrem também da falta de técnica legislativa do tipo de desacato. Vejamos o Código Penal Brasileiro: Desacato. Artigo 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa.
Para Luigi Ferrajoli, a norma penal não pode ser dúbia a ponto de trazer dúvida sobre o limite da sua aplicação pelo juiz de direito. A existência de crimes excessivamente abertos agride de forma reflexa o princípio da legalidade. Vê-se que, então, o princípio da legalidade deixa de ter apenas um cunho meramente formal. Nesse contexto, segundo Luiz Flávio Gomes, os tipos penais abertos estão em permanente conflito com a garantia da lex certa (03). A lei penal deve ser certa, não devendo utilizar descrições de formas vagas de condutas, abertas ou lacunosas.
Essa característica aberta ou abrangente do tipo de desacato é criticada por Ferrajoli. Para ele o Direito Penal é uma técnica de definição, comprovação e repressão da desviação penal. Tal técnica, independentemente do modelo normativo e epistemológico que a inspira, manifesta-se através de coerções e restrições aos potenciais desviantes, aqueles suspeitos de sê-lo, ou, ainda, aqueles condenados enquanto tais. As restrições são três, e correspondem em igual número, aos momentos da técnica punitiva (04).
Para Luigi Ferrajoli, para que o desvio punível não seja constituído, mas regulado pelo sistema penal, não é suficiente, com efeito, que esteja pré-configurado por regras de comportamento. Comportamentos como o ato obsceno ou o desacato, por exemplo, correspondem a figuras delituosas, por assim dizer, em branco, cuja identificação judicial, devido à indeterminação de suas definições legais, remete inevitavelmente, muito mais do que as provas, as discricionárias valorações do juiz, que de fato esvaziam tanto o princípio formalista da legalidade quanto o empírico da fatualidade do desvio punível. Para que estes mesmos princípios sejam satisfeitos é necessário, além disso, que não só a lei, senão também o juízo penal, careçam de caráter constitutivo e tenham caráter recognitivo das normas e cognitivo dos fatos por elas regulados (05).
A crítica de Ferrajoli é novamente levada a criminalização do desacato ao abordar os modelos autoritários de Direito Penal. Ferrajoli lembra que o primeiro aspecto da epistemologia antigarantista é a concepção não formalista nem convencional, mas sim ontológica ou substancialista do desvio penalmente relevante. Segundo esta concepção, objeto de conhecimento e de tratamento penal não é apenas o delito enquanto formalmente previsto na lei, mas o desvio criminal enquanto em si mesmo imoral ou anti-social e, para além dele, a pessoa do delinqüente, de cuja maldade ou anti-sociabilidade o delito é visto como uma manifestação contingente, suficiente, mas nem sempre necessária para justificar a punição (06).
No plano das técnicas jurídicas, estas representações se refletem em uma desvalorização do papel da lei como critério exclusivo e exaustivo de definição dos fatos desviados. A técnica mais difundida é a previsão de figuras de delitos elásticas e indeterminadas, idôneas para conotar, em termos vagos ou valorativos, modelos globais de desvio – como a obscenidade, o desacato, a propaganda ou a associação subversiva, a associação de tipo mafioso, a ofensa à moral familiar e similares – em vez de indicar univocamente tipos de delitos empiricamente determináveis (07).
Comentando a questão da embriaguez no crime de desacato Jorge Beltrão registra que o que se depreende é que a doutrina e a jurisprudência têm entendido que nos crimes de desacato cabe uma grande parte para sua classificação ao juiz ou Tribunal, pois a estes compete analisar cada caso para aplicação da pena e isto nos ensina Boissanade que em todo o caso é preciso que a intenção de ofender o funcionário público seja certa: a vivacidade, a cólera, a falta de educação, a embriaguez, podem fazer pronunciar palavras mal-sonantes, sem intenção de injuriar; o Tribunal, tomará, também, em consideração a condição respectiva das pessoas (grifo de Beltrão) (08).
Nesse contexto, a criminalização do desacato deve ocorrer em um ponto de equilíbrio, de forma que preserve os interesses da Administração Pública (e conseqüentemente da honra de seus funcionários), mas que ao mesmo tempo, não coíba de forma indevida e excessiva a liberdade de expressão (e o conseqüente direito fiscalizatório da crítica aos atos do Estado) dos cidadãos (09).
Em suma, vê-se que o tipo penal de desacato numa ótica garantista é por demais aberto, permitindo a existência de um espaço discricionário muito grande para a decisão do Poder Judiciário (e também previamente da Polícia e do Ministério Público), o que viola de forma reflexa o princípio da legalidade do Direito Penal, que exige certeza e clareza na sua descrição.
Isso não é difícil de ser constado no Direito Penal brasileiro onde são numerosos os tipos com elementos normativos, crimes culposos, crimes omissivos impróprios e os que possuem uma excessiva margem discricionária em sua norma penal secundária (sanção penal) como, por exemplo, o crime de corrupção ativa ou o de tráfico de drogas.
Como citar: CALHAU, Lélio Braga. Crítica garantista à criminalização do desacato. Disponível na internet: www.direitopenal.adv.br, 11.09.2004.
NOTAS DE FIM
(01) CALHAU, Lélio Braga. Desacato. Belo Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 107.
(02) HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Volume IX, Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 418.
(03) GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal – Parte Geral, São Paulo, RT, 2003, p. 138.
(04) FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria geral do garantismo. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo, RT, 2002, p. 167.
(05) FERRAJOLI, Luigi, op. cit, p. 32.
(06) FERRAJOLI, op. cit, p. 35.
(07) FERRAJOLI, op. cit, p. 35-36.
(08) BELTRÃO, Jorge. Desacato, desobediência, resistência. 2a ed, São Paulo, JULEX, 1988, p. 103.
(09) Calhau, Lélio Braga. Desacato. Belo Horizonte, Mandamentos, 2004, p. 24.