Fabrício Dias Oliveira
Como é do conhecimento de todos, o chamado “seqüestro relâmpago” vem se tornando um fato social cada vez mais freqüente, migrando, inclusive, dos grandes centros urbanos para as cidades interioranas e teoricamente isentas de ações criminosas mais ousadas. Também é sabido que não existe em nosso ordenamento jurídico o tipo penal denominado “seqüestro relâmpago”, pois trata-se de um nome impróprio, popular e desprovido de qualquer técnica jurídica, e além disso, não havia como o legislador de 1940 prever o “avanço tecnológico” das condutas criminosas em concomitância com a deterioração dos valores sócio-culturais que contribuem para a proliferação da criminalidade. De qualquer forma, mesmo sem estar especificamente tipificada no Código Penal Brasileiro, é possível tal conduta criminosa sofrer sanção de natureza penal, cabendo ao aplicador e intérprete do direito fazer uso de seu intelecto para adequar essa conduta à uma norma penal que possa impor uma sanção, resultando, assim, naquilo que chamamos de Juízo de Tipicidade.
Antes de prosseguir, devemos ter em mente que o Direito Penal não constitui num sistema exaurido de proteção aos bens jurídicos a serem tutelados, de modo que apenas algumas condutas tidas como ilícitas é que sofrem sanção de forma direta, ou seja, são descritas de forma objetiva pela norma penal. Todavia, se condutas diversas daquelas descritas pela norma penal vierem a atingir o bem jurídico tutelado, então poderão igualmente sofrer sanção, ainda que de forma indireta, ou seja, dependente de uma interpretação mais apurada da norma penal que levará em conta os elementos subjetivos e abstratos como parte integrante do tipo penal (daí o caráter fragmentário do Direito Penal).
Assim, por se tratar o “seqüestro relâmpago” de um conjunto de ações formadoras de uma conduta de caráter essencialmente repugnante no meio social, deve o aplicador e intérprete do direito, de forma imprescindível, encontrar uma forma de promover a repressão penal buscando sua fattispecie, ou seja, ajustando tal conduta a um determinado tipo penal disponível em nosso ordenamento jurídico e que traga, ainda que de forma abstrata e subjetiva, os elementos que compõem tal conduta. E essa conduta, que caracteriza o “seqüestro relâmpago”, consiste na privação da liberdade exercida contra determinada pessoa, constrangendo-lhe, mediante violência ou grave ameaça, a efetivar saques nos chamados “bancos 24 horas” ou tolerar que tais saques sejam feitos com seu cartão bancário e respectiva senha. Contudo, em certos casos, o agente aproveita essa situação para subtrair da vítima alguns de seus pertences, como relógio, carteira, celular, bolsa, jóias, etc.
Quanto ao Juízo de Tipicidade, como primeira hipótese, caso o agente tenha praticado a abordagem à vítima restringindo sua liberdade e coagindo-a, mediante violência ou grave ameaça, para que efetue a realização de saques, além do apossamento de seus bens, então verificamos que a privação da liberdade teve a finalidade única de assegurar a consumação de atos posteriores. Tal conduta configura então no caput dos artigos 157 e 158 do Código Penal, ou seja, todos os elementos do crime de roubo e de extorsão simples estarão presentes na conduta do agente. O agente, por sua vez, responderá pelo crime de roubo em concurso material com o crime de extorsão simples, nos termos do artigo 69 do Código Penal. E com relação à privação de liberdade, o que fazer? Desloca-se a tipificação jurídica do roubo simples (art. 157 do CP) para o roubo qualificado, nos termos do artigo 157, § 2.º, inciso V, do Código Penal? Ou então, desloca-se a tipificação jurídica do crime de extorsão simples (art. 158 do CP) para o crime de extorsão mediante seqüestro, nos termos do artigo 159 do Código Penal? Qual dessas possibilidades reveste-se com o manto da justiça e da exatidão técnica? Juridicamente, acompanhando a doutrina majoritária, impõe-se a admissão da hipótese em que a privação de liberdade constitui elemento do tipo penal de roubo agravado, qualificando-o nos termos do artigo 157, § 2.º, inciso V, do Código Penal, mesmo porque, ao editar a Lei n.º 9.426/96 (que acresceu o inciso V, do § 2.º, do já citado artigo), foi exatamente essa a intenção do legislador. Concluindo, o agente deverá responder pela prática do crime de roubo qualificado em concurso material com o de extorsão simples.
Numa segunda hipótese, pode o agente ter praticado a abordagem à vítima restringindo sua liberdade e coagindo-a, mediante violência ou grave ameaça, para efetuar a realização de saques, sem que tenha ocorrido o apossamento de qualquer um de seus bens. Nesse caso, houve privação de liberdade e extorsão, mas não ocorreu roubo. Logo, de forma técnica, o agente praticou um crime de extorsão mediante seqüestro, previsto no artigo 159 do Código Penal, o qual os ensinamentos doutrinários de Júlio Fabbrini Mirabete define como sendo “extorsão praticada, tendo como meio para a obtenção da vantagem econômica, a privação da liberdade de uma pessoa”.
Enfim, atentando-se para a dosimetria mínima das penas, temos que, aquele que praticou o “seqüestro relâmpago” e efetuou tanto as subtrações bem como os saques, terá uma pena mínima de 9 anos e 4 meses de reclusão e multa (art. 157, § 2.º, V cc art. 158, ambos do CP); enquanto aquele que apenas praticou os saques, terá uma pena mínima de 8 anos de reclusão e multa (art. 159 do CP).
Vale lembrar que, recentemente, mais precisamente no último dia 16 de abril, o Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Rodrigo César Rebello Pinho, assinou um documento em que recomenda aos membros do Ministério Público paulista a tipificação do “seqüestro relâmpago” no artigo 157 (sem desprezar a causa de aumento de pena do § 2.º, inciso V), em concurso material com o artigo 159, ambos do Código Penal, nos termos do artigo 69 do mesmo ordenamento jurídico, elevando assim a pena mínima para 13 anos e 4 meses de reclusão e multa. No entanto, por todo o exposto, é possível observarmos que as duas primeiras aplicações condizem, de forma mais precisa e justa, com a técnica a ser verificada na realização do Juízo de Tipicidade do crime de “seqüestro relâmpago”, pois entendo que, promovendo o concurso material entre os crimes previstos nos artigos 157, §2.º, inciso V, e 159, ambos do Código Penal, a conduta em que o agente privou a vítima de sua liberdade será duplamente punida, incorrendo-se na violação do princípio que proíbe a dupla valoração punitiva de uma mesma circunstância (Princípio do non bis in idem).
Em tempo, seria bem-vindo um projeto de lei que formulasse um remédio jurídico adequado, fazendo com que tal situação receba tratamento próprio com uma capitulação jurídica que tipifique esse “seqüestro relâmpago”, cominando-lhe uma pena justa e que efetivamente reprima tal conduta, afastando assim qualquer polêmica relacionada ao Juízo de Tipicidade.
S.C.R.Pardo/SP, 24 de abril de 2004
FABRÍCIO DIAS DE OLIVEIRA é aluno do curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos