Antonio Carlos Santoro Filho
Juiz de Direito em São Paulo
autor do livro Fundamentos de Direito Penal. São Paulo: Malheiros Editores, 2003
Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura
Em estudo anterior (1) fizemos algumas considerações a respeito das conseqüências do comportamento da vítima no desenvolvimento do plano causal e na imputação objetiva do resultado.
Neste artigo nos ocuparemos de outra questão problemática no campo da imputação objetiva: a influência da intervenção de terceiras pessoas, mediante ações ou omissões, no processo causal instaurado pelo agente.
Argumenta Claus Roxin que, nestes casos, embora não se possa excluir a causalidade – física – , o âmbito do tipo não compreende o que vier a acontecer após a intervenção do terceiro, pois a certos profissionais (policiais, bombeiros, médicos, etc.) incumbe a eliminação e vigilância das fontes de perigo, de forma que estranhos a estas atividades nada têm de se intrometer (2).
Dois exemplos de atos de terceiros que, segundo a teoria da imputação objetiva, impediriam que a ação encontrasse subsunção ao tipo, por não estar ao seu alcance:
1º Exemplo: A, durante o período noturno, trafega em uma estrada sem as luzes traseiras de seu caminhão. Uma patrulha policial o para e adverte. Como medida de diminuição de risco, o policial põe uma lanterna de luz vermelha na pista e instrui A a conduzir o caminhão até o próximo posto, pois durante o caminho a viatura o escoltará. Antes de A partir, entretanto, o policial retira a lanterna da pista e, em decorrência disso, um segundo caminhão vai de encontro ao caminhão não iluminado. Por força do acidente, morre o motorista do segundo caminhão (3).
2º Exemplo: A fere B, que, em razão das lesões sofridas em região não-letal, é internado em um hospital. B é submetido a processo cirúrgico durante o qual o médico responsável pela cirurgia incorre em grave erro. Em virtude do erro médico advém a morte de B.
Também sustentamos que nestes dois exemplos inviável é a imputação do fato àquele que deu início à marcha causal, pois, em ambas as hipóteses, o terceiro interveniente, em razão do papel que desempenha em sociedade, assume – porque assim lhe impõe o ordenamento jurídico – o desenvolvimento dos acontecimentos e retira do agente a possibilidade de influenciar no resultado.
De fato, tais intervenções, para nós, caracterizam causas supervenientes, relativamente independentes, aptas a, por si sós, produzir o resultado, o que implica a exclusão da imputação objetiva em relação ao agente da primeira conduta, nos termos do § 1º, do art. 13, do Código Penal.
Vejamos o primeiro exemplo.
Inegável é que A, no sentido amplo – ou meramente físico – do caput, do art. 13, do Código Penal, “deu causa” ao resultado, e que, ao trafegar com o veículo sem iluminação, não observou o dever de cuidado objetivo que lhe era imposto na situação concreta.
Se isto é certo, não menos verdadeiro é que, ao determinar a parada do caminhão, a Autoridade Rodoviária interrompeu o curso causal até então desenvolvido, e, por força de imperativo legal (art. 13, § 2º, inciso I, do Código Penal), tomou, somente para si, o domínio do fato e a responsabilidade pela sua não-ocorrência.
Com efeito, excluída a intervenção da autoridade pública e o fato não teria ocorrido – ou pelo menos não da maneira como verificado -, não cabendo ao agente, após essa intervenção, qualquer providência acautelatória ou fiscalizatória, que, evidentemente, não se encontravam em seu âmbito – e possibilidade – de atuação.
Ora, se assim é, forçoso convir que o comportamento primitivo do condutor do caminhão já se esgotara como fator determinante para a produção do fato, sem realizá-lo, e que a conduta interveniente instaurou um novo processo causal.
A mesma conclusão é válida para o segundo exemplo, pois o “erro médico” apresenta-se como fato apto a interromper o curso causal inicialmente desenvolvido e a instaurar um novo processo de desenvolvimento ao resultado.
A intervenção de terceiros excludente da imputação objetiva, contudo, não pode ser confundida com a concorrência de culpas ou com a co-autoria colateral, hipóteses nas quais, tanto o autor da primeira conduta, como o interveniente, por contribuírem para com o resultado, são considerados seus agentes. Há, nestes casos, a atuação concomitante de dois ou mais indivíduos para a realização de um tipo, sem o conhecimento, todavia, de estar contribuindo para a conduta típica de outrem (4).
Assim, por exemplo, não há de se falar em exclusão da imputação objetiva em relação ao engenheiro responsável por um projeto com erro de concepção, se vier a construção a desmoronar (art. 256, do Código Penal), somente pela circunstância de ter sido o projeto – negligentemente – aprovado pelo agente público com atribuição para tal ato administrativo. No caso, caracterizada restará a concorrência de culpas, devendo responder pelo desabamento, a nosso ver, não apenas o autor do projeto, como também o funcionário público que indevidamente o aprovou.
Note-se que, neste caso, não há por parte do interveniente a assunção do desenvolvimento dos fatos – que continua sob o exclusivo encargo do responsável pela obra, ao qual é possível, inclusive, não a levar a cabo -, mas mera colaboração inconsciente para a realização do tipo, o que afasta a caracterização de uma causa superveniente relativamente independente.
Também o agravamento das lesões ocorrido durante a internação no nosocômio, decorrente de infecção hospitalar adquirida, não configura, em regra, fator superveniente relativamente independente, imputável aos responsáveis pelo atendimento ou pelo hospital, a quem incumbe, em princípio, a diminuição do risco de ocorrência de fatos desta natureza, pois a completa eliminação de bactérias dos ambientes hospitalares é, na atualidade, objetivo impossível de ser alcançado. O agravamento das lesões, desse modo, é imputável a quem as provocou, pois se encontra na linha normal do desdobramento causal da conduta.
Neste sentido a jurisprudência majoritária de nossos Tribunais. A título de ilustração:
“HOMICÍDIO CULPOSO – Acidente de trânsito – Agente que atropela a vítima que vem a óbito em função de “septicemia no decorrer do tratamento hospitalar” – Reconhecimento do nexo causal – Necessidade – Caracterização – Ocorrência:
Caracteriza o crime previsto no artigo 121, parágrafo 3º, do CP – atual art. 302, do CTB -, a conduta do agente que atropela a vítima que vem a óbito em função de “septicemia no decorrer do tratamento hospitalar”, pois o tratamento a que foi submetido o ofendido decorreu do acidente, sendo de rigor o reconhecimento do nexo causal entre o atropelamento e o evento fatal”.
Logo, a intervenção de terceiro somente acarretará a não imputação do resultado ao autor da primeira conduta se, no curso dos acontecimentos, representar não apenas cooperação objetiva para a ocorrência do fato – culpa concorrente ou autoria colateral -, mas, sob o enfoque de um terceiro observador imparcial, a instauração de uma nova “marcha histórica”, um desvio relevante do processo causal inicialmente instaurado.
Notas
(1) Disponível em internet: www.direitopenal.adv.br; www.juridica.com.br; www.ibccrim.org.br.
(2) Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal, p. 376-77.
(3) Funcionalismo…, p. 376.
(4) Santoro Filho, Antonio Carlos. Fundamentos de Direito Penal, p. 308.
(5) TACrimSP – Ap. nº 1.241.799/3 – São Paulo – 6ª Câmara – Rel. A.C. Mathias Coltro – J. 18.4.2001 – v.u.