Luiz Flávio Borges D´Urso
Toda vez que a sociedade se depara com um crime de maior repercussão, principalmente se tiver requintes de crueldade, independente da história, invariavelmente, a pena de morte surge na palavra de um ou outro defensor dessa pena extrema.
É preciso ter uma certa cautela, porque a pena de morte é tema de apelo fácil à emoção. Quando a sociedade está comovida, quando a emoção social está de alguma forma manipulada ou estimulada, verificamos que a pena de morte ganha campo, adeptos, simpatizantes e defensores ferrenhos. Se fizéssemos um plebiscito para que o povo decidisse, se teríamos ou não, no futuro no Brasil, a pena de morte, diante do impacto da notícia de algum eventual crime bárbaro, certamente o resultado do plebiscito seria favorável a implantação da pena de morte.
É por isso que precisamos de serenidade para examinar esse tema e cautela para se enfrentar os argumentos dos defensores da pena de morte. O único argumento que os defensores da pena de morte trazem com razão e, sem dúvida irrebatível, é de que, o indivíduo que eventualmente for condenado à pena de morte, não terá qualquer possibilidade de reincidência após sua execução.
Todavia, trata-se de um argumento óbvio que não traz nenhuma relevância. A discussão maior, que é sobre a utilização da pena de morte visando a diminuição da criminalidade, isto sim, penso ser importante como tema a ser discutido na sociedade moderna, em especial no Brasil, diante do avanço dessa criminalidade.
Para recortar o tema precisamos lembrar que é a Constituição Federal, promulgada em 1988, que no seu inciso XLVII, artigo 5º exatamente na alínea “a”, que estabelece que não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, portanto, o legislador constitucional por meio da lei maior, aquela da qual deve emanar os princípios, as diretrizes para toda legislação ordinária no país, estabelecendo que a pena de morte não deve existir no Brasil.
Trata-se, portanto, de cláusula pétrea que não pode ser alterada, mas, a pena de morte já existiu entre nós, há muito tempo desde o momento em que o Brasil ainda estava sob o jugo estrangeiro e que aqui vigiam as ordenações. Portanto, à época do descobrimento tivemos as ordenações, primeiro as Afonsinas depois as Manoelinas e observamos que a pena de morte estava prevista como possibilidade de aplicação. Posteriormente, com a divisão do Brasil em capitanias hereditárias, a pena de morte também permaneceu entre nós e até a época das ordenações Manoelinas em 1512, nós ainda a observávamos. Assim, a pena de morte era pena por excelência e executada pela forca, pela espada, na fogueira, pela entrega da vítima aos índios, pelo esquartejamento do condenado, inclusive ainda vivo e essas formas de execução sempre traziam um cunho de espetáculo, isto é, deveria se servir de exemplo, amplamente divulgadas e se possível realizadas publicamente.
Tivemos após a Proclamação da Independência em 1822, a primeira Constituição do Brasil, de 1824, não afastava a pena de morte, muito embora, estranhamente, se preocupava com as condições carcerárias. O Código Penal compatível com esses princípios constitucionais, foi o de 1830, o qual também manteve a pena de morte. Esse Código previa a pena capital para os crimes de homicídio, para roubo seguido de morte, para insurreição e para escravos que eventualmente obtivessem a liberdade pela força. Nesse caso, a previsão para o cumprimento da pena máxima estava no art. 38 e era executada pela forca. O acusado era conduzido pelas ruas públicas, numa verdadeira cerimônia, para que todos vissem que a punição era inexorável e violenta.
Portanto, tratava-se de ritual destinado a incutir medo, temor no povo. Os corpos dos executados podiam ser entregues a parentes e amigos, desde que autorizado pelo juiz e no caso em que se tratasse de condenada grávida, a pena só poderia ser executada, 40 dias após o parto.
E assim, a pena de morte foi largamente utilizada e aplicada até a segunda metade do século XIX, quando, por um erro judiciário ocorreu a morte de Mota Coqueiro, em 1855 em Macaé, a qual abalou a população e impressionou o Imperador que passou, a partir daí, comutar a pena de morte sistematicamente, não autorizando a execução de mais ninguém, transformando em penas de Galés perpétuas, devendo serem removidos às galeras para remarem até o último de seus dias.
Este histórico erro judiciário que levou a morte Mota Coqueiro, é revelado pela confissão tardia de um desconhecido, de nome Herculano, que momentos antes de morrer, confessa ao seu próprio filho que ele sim teria sido o verdadeiro autor do crime pelo qual Mota Coqueiro havia sido condenado.
Esse Herculano, pede ao seu filho que divulgue a sua confissão para afastar a responsabilidade do Mota Coqueiro. Este triste episódio foi um marco na história da pena de morte no Brasil.
E a pena capital permaneceu em nossa legislação até o Código Penal de 1890, que afastou definitivamente a pena de morte de nossa legislação, da mesma forma, a Constituição Federal de 1891, afastou expressamente, a pena de morte, com ressalva à legislação militar em tempo de guerra, o mesmo ocorrendo com a constituição de 1934, que também assim previu no art. 113, inc. XXIX daquela Carta.
A nível constitucional, a Carta Magna de 1937, volta a prever a pena de morte em seu art. 122, n. 3, isto é, a partir do Estado Novo, com objetivo inclusive da preservação das próprias instituições.
Não obstante esta estipulação, o legislador ordinário, que redigiu o Código Penal de 1940, afastando-se da Constituição vigente à época, não incluiu a pena capital entre suas sanções penais. Com a queda do Estado Novo e com o advento da Constituição de 1946, novamente a pena de morte foi abolida no Brasil, com a ressalva de sempre, a legislação militar em tempo de guerra, da mesma forma, esta Constituição foi substituída pela de 1967, que no seu artigo 150, §11, também expressamente, afastou a pena capital da nossa Carta Magna.
Nesse avanço legislativo, a emenda Constitucional n. 01 de 17 de outubro de 69, estabeleceu a possibilidade da incidência da pena capital; da mesma forma o decreto lei n. 898 de 29 de setembro de 1969, que estabeleceu o crime contra a Segurança Nacional, também estabeleceu a pena de morte no Brasil. Após isso, é com a Emenda Constitucional n. 11 de 13 de outubro de 1978, que a pena de morte foi novamente abolida para o crimes contra a segurança nacional, restringida sua incidência à legislação aplicável, quando se tratasse de guerra, ou seja na legislação militar.
Hoje, a nossa Constituição de 88, como dissemos no início, proíbe a pena capital, à exceção de situações de crimes militares em época de guerra, mas veda terminantemente e peremptoriamente, a pena capital como punição penal no Brasil.
O legislador historicamente, não conseguiu se definir qual seria o melhor caminho para a legislação do Brasil, no tocante a pena de morte e sua repercussão para coibir a criminalidade. Assim, estabeleço cinco possibilidades que me levam a rejeitar a pena de morte no Brasil.
A primeira delas é a dimensão da falibilidade humana, é a dimensão do erro judiciário, a nossa justiça não é a justiça perfeita, absoluta, divina, a nossa justiça é a justiça do homens, é a justiça mundana, falível, como falível é o homem, o erro judiciário se apresenta diariamente em nossos tribunais e este é inevitável, enquanto tudo é feito pela mão do homem, daí porque, diante da possibilidade de erro num julgamento, não posso admitir uma pena que seja irreversível e a pena de morte é. Assim sendo, a pena de morte num primeiro argumento não pode estar entre nós, porque o erro judiciário existe.
Como segundo argumento, não acredito na punição que esteja dissociada da sua progressão, em outras palavras é indispensável que tenhamos a progressividade da pena a que o indivíduo está sujeito, para que este ao cometer um crime, possa pelo menos por opção, escolher se estará sujeito a punição prevista naquela lei, e isto deve ser em graus compatíveis à elevação da conduta, vale dizer quanto mais grave o crime, mais grave deverá ser a punição a que está sujeito e a reiteração da conduta, precisa levar à reiteração da punição, numa escala ascendente. A partir do instante em que esta proporcionalidade não estiver presente, não teremos mais esperança de desencadear naquele indivíduo que deseja cometer um crime, os freios inibitórios, ele não terá, qualquer razão para frear-se, não cometendo o delito. Portanto, nada o faria desistir da sua trajetória de crime até porque poderia lhe garantir a impunidade dos crimes anteriores, portanto, não acredito na ausência da proporcionalidade entre conduta e resposta penal, a pena de morte aniquila, impede esta proporcionalidade.
O terceiro argumento é um argumento filosófico. No plano filosófico, é muito difícil sustentar que a morte atinja o bem mais importante do homem, assim aquele que matar, terá também o seu bem mais importante atingido, sendo morto; fica difícil sustentar que o Estado com toda a sua isenção e ausência de paixão, possa aplicar a conduta ao infrator, exatamente porque este infrator se conduziu daquela mesma forma, em outras palavras, é difícil sustentar que o Estado diga ao seu cidadão, você não pode matar, matar é o que nós queremos mais evitar, mas se você matar, o Estado te matará, Onde está o fundamento, a legitimação para isto? Penso que seja um argumento que por si só impede a coerência da justificativa da pena de morte no Brasil.
O quarto argumento, é que em todos os países onde a pena de morte foi implementada, a criminalidade não caiu, num determinado momento ela pode até ter oscilado, mas o resultado científico de verificação, após a observação acadêmica do que realmente acontece como reflexo da implantação da pena de morte, em nada altera os índices de criminalidade, estes oscilam por outros motivos. Portanto, diante desta constatação, de que a pena de morte não inibe o avanço da criminalidade, tenho mais um argumento para rejeitar.
Por último, conhecedor do povo brasileiro, de sua intensidade emocional, é que penso que se eventualmente o Brasil condenasse alguém à morte, as mesmas vozes que clamaram por essa morte, certamente se manifestarão pedindo clemência àquele condenado, portanto, acho uma medida inócua, e que na prática, nada resolve para frear o avanço da criminalidade. A pena de morte não pode existir entre nós, ela não se coaduna com uma Constituição que tem como bem maior do homem, sua vida.
Não se pode pensar em equilíbrio quando punimos o homicídio, quando rejeitamos o aborto, quando criminalizamos a eutanásia, ou seja, quando nós repugnamos qualquer atentado a vida e nesse mesmo diapasão admitimos que o Estado, na sua grandeza e soberania, possa atentar contra à vida de alguém a título de punição.
Não é isto que se espera da pena, o que se espera é a recuperação do homem, é a sua ressocialização, é o mecanismo que possa fazê-lo se reintegrar à sociedade, se tornando produtivo, honesto, honrado.
Agora ao se examinar à luz das cinco razões elencadas anteriormente, vamos chegar à conclusão de que jamais poderemos admitir a pena de morte no Brasil.
* Prof. Luíz Flávio Borges D’Urso – Advogado Criminalista, Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – ABRAC, Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, Presidente da Academia Brasileira de Direito Criminal – ABDCRIM, foi Presidente do Conselho Estadual de Política Criminal e Penitenciária de São Paulo e foi Membro do Conselho Penitenciário Nacional, é Conselheiro e Diretor Cultural da OAB/SP, e integra o Conselho Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.