Luiz Otávio O Amaral
Pena de morte
Luiz Otavio O Amaral
“Quem é que te deu, ó carrasco, esse poder sobre mim ?” [1]
A doutrina penal tradicional justifica a existência e necessidade da pena sob três teorias: absolutas, relativas e mistas. As primeiras justificam a pena em si mesma, consistindo o castigo numa retribuição ou compensação pelo mal praticado. As relativas, subdivididas em prevenção geral e prevenção especial, atendem há outros fins posteriores a sua execução, cujo cunho é desencorajar outros membros da comunidade da prática de condutas lesivas (prevenção geral) e o desestímulo ao infrator para que não volte a cometer crimes (prevenção especial). Por fim, as teorias mistas não acentuam a retributividade e tampouco a prevenção negativa como fundamento, assinalando a pena como prevenção positiva, a qual visa a obediência ao direito e o estrito cumprimento da norma pelos membros da sociedade, a fim de assegurar a harmonia e integridade social.
Todas elas, no entanto, padecem severas críticas, que podem ser sintetizadas na aversão à legitimação e efetiva finalidade da pena. Qual fonte legitimante da punição/pena ? Qual a utilidade, que finalidade se busca na pena criminal? A umas, porque padecem de legitimidade na medida que pretendem a retribuição (castigo = falta), ou seja, compensar o mau na mesma proporção. Obviamente é situação impossível, posto que a pena haveria de ser aplicada no quantum equivalente ao delito cometido e isso nunca será atingido . Seria a própria reinstituição da Lei de Talião – olho por olho; dente por dente. Ademais, nesta concepção, o Estado assume literalmente o papel de carrasco e vingador das demandas e ofensas particulares, não se comprometendo com a situação de seus membros. Já os defeitos da teoria da prevenção geral negativa seriam no sentido de que a ameaça, mediante normas penais, não evita a prática de delitos ou a formação de conflitos; ao contrário, eles se multiplicam e se sofisticaram. O efeito dissuasório não se comprovou, estando, ao contrário, demonstrado que a aparição do delito não está relacionada com o número de pessoas punidas, ou com a severidade das penas impostas.
O ponto fulcral da gravidade imbutida na idéia de prevenção geral negativa, é que esta, como a proposta de prevenção geral positiva, encerra a consagração da alienação da subjetividade e da centralidade do homem em benefício do sistema, deslocando o homem de sua posição de sujeito e fim de seu próprio mundo, para torná-lo objeto de abstrações normativas e instrumento de funções sociais. O que nos remete ao vício lógico de ao tentar prevenir danos contra determinado bem (a vida humana, por exemplo) acaba-se por desvalorizar tal bem. Mesmo a idéia da prevenção especial, cujo fim é a ressocialização do infrator, encontra repúdio, já que a tônica do nosso sistema é a prisão. É um contra-senso então, buscar a reinserção do infrator no convívio social com a segregação de sua liberdade e seu afastamento deste meio. Com efeito, um mínimo de raciocínio lógico repudia a idéia de se almejar reintegrar alguém à sociedade, afastando-o dela. Contudo, se a pena, de fato, é um mal necessário, faz-se premente que se lhe dê uma concepção mais humana, dirigindo-se maior atenção ao condenado, assegurando-lhe o exercício efetivo dos direitos que lhe são inerentes, propiciando, destarte, sua preparação para o retorno à vida na sociedade.
A pena moderna, posto que a civilização atual não pode formalmente admitir que sofrimento e miséria sejam objetivos máximos, deve reeducar o delinqüente. Mas como reeducar se o seu escopo parece sucumbir ante o quadro dantesco de nossas instituições. O problema é muito mais político e social que jurídico. Então, a pergunta atual da ciência penal é como combater a criminalidade moderna. Entretanto, isso é apenas um aspecto do problema. Não se deve esquecer que a política criminal e o Direito Penal têm um aspecto normativo, o aspecto da Justiça, o equilíbrio da proteção jurídica dos atingidos pelo processo penal. O pensamento ainda reinante é de tom militarista, quase bélico (paradigma repetido pelos meios de comunicação e até estudiosos), pensando apenas em termos de luta, de combate, de vitória, e o se Direito Penal está armado como instrumento de luta, de combate à criminalidade.
Sucede que, é ilusório e hipócrita pretender-se abarcar todas as ofensas aos direitos num ordenamento penal, ainda mais nos dias de hoje, e todos são cientes disso. Destarte, necessário que se faça uma opção de modo a restringir a ação do Direito Penal às situações onde seja imprescindível sua atuação.
Tenho dito e repetido não ser o Direito Penal panacéia para o fenômeno social do crime, vide acerca disso, nossos trabalhos [2] divulgados nesta mesma Revista (e noutros meios). O crime é fenomeno político e social, só depois, e bem depois, é que é jurídico (menor ainda é relevância policial, enquanto prevenção). Dentre outras, o crime deita raízes no solo fértil da desigualdade social, da miséria e do descaso do Estado e das elites. A reabilitação do delinqüente não será conseguida a partir dos depósitos humanos que conhecemos e mantemos – mais por vingança, que por razões reeducativas – onde tudo se degrada e os valores se misturam e se corrompem formando um outro homem no apenado, mais cruel, mais nocivo e distante do meio social sadio. Neste modelo multimilenar a pena infalível seria a privativa de liberdade, como se a segregação da liberdade pudesse atender propósitos reeducativos. Porém o tal modelo esgotou-se nas suas próprias mazela, quer porque não consegue ressocializar o infrator, quer porque não satisfaz, via de regra os interesses da vítima, quer porque é extremamente selecionador, seja em relação à vítima, e principalmente ao infrator; quer porque é extremamente oneroso e ofensivo aos princípios fundamentais da pessoa humana, etc.
Diante dessas incongruências lógica e operativas, alguns, vêm de buscar solução para o problema da delinqüência nos dias coevos, oferecendo para debate sugestão tão horrenda quanto o próprio crime: a pena de morte. Entendemos que a pena de morte feri o pacto social. Ora, se o homicídio é repudiado pelos contratantes, não pode o corpo depositário arvora-se em praticá-lo e agir contra as disposições do trato social. Como poderia a sociedade atual ter a morte provocada como valor de sua existência. A pena capital é mais uma demonstração de impotência política frente a crescente miséria e conseqüentemente a delinqüência. Certamente prevendo as paixões sociais, o Poder Constituinte de 88, mostrando-se sensível à Declaração Universal dos Direitos dos Homens, considerou o valor da vida como Cláusula Pétrea, o que torna impossível, juridicamente, qualquer emenda ou lei que tente instituir a pena de morte.
São vários os argumentos decisivos contra a pena de morte. Com efeito, só mesmo uma concepção supra-individualista [3] do Direito pode admitir a pena de morte, porque só uma concepção dessa natureza pode reconhecer ao Estado um direito de vida e de morte sobre os indivíduos. “Jamais qualquer poder humano que não se sentir em si mesmo legítimo na sua origem transcendente, poderá ter força bastante para manobrar a espada da justiça”, bem o disse Bismarck em belo discurso datado de 01/03/1870. Todavia, é no relatório que antecede o Código Penal fascista onde se achar a mais vigorosa argumentação pró-pena de morte: “uma tal reforma representa um sinal de modificação operada no espírito da nação italiana, da virilidade e da força readquiridas pelo nosso povo, bem como da total libertação da nossa cultura jurídica e política da influência de estranhas ideologias com as quais se achava até aqui ligada a abolição da pena de morte”. Tais estranhas ideologias abominadas pelos fascista são expressamente indicadas: “as idéias individualistas que triunfaram para além dos alpes” e o “erro da afirmação Kantiana de que o indivíduo, como fim de si mesmo, nunca poderá ser degradado à condição de meio”. Esse discurso fascista culmina – após elevar o Estado ao status de razão prática da própria vida humana – por proclamar a mais abjeta capitis deminutio do homem: “não sendo o indivíduo (o homem) mais do que um elemento que infinitamente efêmero do organismo social…”
Outro argumento a favor da pena de morte tem sido o chamado “direito ao suicídio” que estaria a explicar o mesmo direito de vida e de morte conferido ao Estado, mas quem confere ao Estado direito sobre sua própria vida, necessariamente tem já esse direito; o que me parece um tenebroso engano lógico. Sucede que a titularidade do direito à vida não traz, por certo, o atributo da disponibilidade: eu tenho direito natural e universal a minha vida, mas não tenho o poder de dispor dela. É que a vida – qualquer vida, mas sobretudo humana – enquanto valor máximo, transcende à esfera da decidibilidade humana, posto que pertence ao âmbito das razões primeira do universo, da lei divina que é eterna, porque eternamente perfeita (ao contrário da lei humana muda acompanhado o progresso humano). Por isso nem o suicida, nem o condenado à morte podem transparecer qualquer consentimento (racional) na extinção de suas vidas. O direito subjetivo originário do homem à legitimas defesa, também não serve de arrimo aos que defendem a pena capital, já porque aquele direito visa tão somente repelir agressão injusta, jamais a extinção da vida do agressor (daí há a punição ao excesso de legitima defesa); já porque há uma forte distinção entre as hipóteses da legitima defesa e da pena de morte: ali a pessoa jamais espera morrer, aqui, ao contrário, o condenado sabe que morrerá por ato deliberado de um semelhante.
Afora os argumentos filosóficos e doutrinários, a pena de morte esbarra na irreversibilidade do mal do erro judiciário, obstáculo intransponível, eis que torna a sanção irreparável. O assassinato legal pelo Estado é negação do Estado Democrático, cuja primeira função é garantir a vida e a liberdade. Há, pois, insuperável contradição axiológica nas propostas de adoção de pena de morte.
Controlar melhor a delinqüência significa forte investimento no homem, em especial, na sua educação (remeto o leitor ao nossos ensaio “Paideia – um projeto urgente para educação…”, divulgado também nesta Revista (cf. nº 44, ag/2000), na sua saúde, melhorando-se a distribuição de renda e, somente após isso, é que se deve ter preocupações com o aprimoramento do aparato policial e da justiça criminal (eis que agem a posteriori).
Na verdade, não é a pena de morte que vai resolver o problema da criminalidade e, no limiar do século XXI, não se deve retroagir a uma idéia que cresceu nas fogueiras medievais e nos regimes ditatoriais e é rejeitada pelas nossas tradições humanistas. Ainda que saiba que no próprio Estado do Vaticano, vigora a pena de morte, estabelecida pelos tratados de Latrão, firmados pelo cardeal Pacelli, mais tarde Pio XII; que Tomás de Aquino, por sua vez, achava “louvável e salutar, para a conservação do bem comum, pôr à morte aquele que se tornar perigoso para a comunidade e causa de perdição para ela”. (Suma Teológica, Questão LXIV, Art.11.), hoje são tais crenças estão vencidas pelos tradicionais e pelas modernas ideologias humanistas. O que se busca é acabar com o crime e não com o criminoso; extinguir-se o vício e não o viciado, debelar o fogo que consome a floresta, mas sem derrubar as arvores, é claro…
Ademais, razões teológicas reforçam negação da pena de morte como meio moralmente licito, eis que em flagrante contradição com a ordenação maior: Não matarás (Exodo, 20:13). Há ainda, a considerar que na chamada lei moisaica, evidenciam-se dois aspectos distintos: a lei de Deus, promulgada no monte Sinai, e a lei humana, disciplinar, decretada por Moisés. A primeira é invariável; a segunda, modificável com o tempo, segundo os costumes e a desenvolvimento moral e cultural do povo. Argumenta-se que, no tempo de Moisés, houve necessidade de leis drásticas sem as quais seria muito difícil, senão impossível, impor a ordem numa comunidade inculta e rebelde. Não se pode dizer que a pena de morte, naquela época, fosse plenamente justificável; mas era, pelo menos, compreensível.
A Humanidade, ao afastar-se do seu estado de barbaria, foi paulatinamente encetando a escalada evolutiva que a conduzirá, um dia, ao reino da Paz e da Felicidade
É notório que a verdadeira prevenção da criminalidade não se faz com o aumento da severidade das penas, introdução de novas figuras típicas, redução de idade penal, rigorismo na execução, e outros meios que claramente não têm logrado êxito, afora ofensas aos princípios dos direitos universais da pessoa humana. Por outro lado, a tendência internacional, hoje, aponta no rumo da intervenção mínima, ideal expresso nas “Regras de Tóquio” [4], contrapondo ao modelo clássico que se ultrapassado e sempre se mostrou ineficaz.
Diante da necessidade de um novo pensar, surgem idéias variadas, condensadas todavia em duas correntes doutrinárias que ainda assumem posição de vanguarda, principalmente àquela que defende a teoria do abolicionismo questionando a legitimidade do Direito Penal, sobretudo quando vislumbra-o apenas como instrumento de massificação e domínio, opondo-se aos direitos fundamentais do ser humano.
É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida. “Quereis prevenir os crimes ? Fazei leis simples e claras; e esteja a nação inteira pronta a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe contentemente em destruí-las. Quereis prevenir os crimes ? Marche a liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns males, é quando estão pouco difundidas; mas, à medida que se estendem, as vantagens que trazem se tornam maiores”. (Cf. Beccarias, C. “Uber Verbrenchen und Strafen”).
Em verdade, reduzir a idade penal ou adotar a pena de morte não é senão esconder da sociedade os reais problemas da criminalidade, que transitam pela falta de políticas sociais básicas e dignas para boa parte dos população. É claro, que existem crimes de ricos e “educados”, ocorre que tais delitos são estatisticamente de menor gravidade no contexto geral (embora em casos concretos de grande dano econômico-social ao povo).
Acontece que o Direito penal, não só no Brasil, mas em todo o mundo civilizado, está pautado na Escola clássica, que atribui ao Estado a função de resolver toda e qualquer contenda, de forma indisponível. De outro lado, sempre essa Escola viu na pena, obrigação dada àquele que ofende seus ordenamentos jurídicos, um fim único de retribuição, sem se preocupar e ssencialmente com a ressocialização do infrator ou mesmo com os próprios interesses das vítimas.
Uma verdadeira política criminal alternativa, todavia, precisa trazer implícita a transformação social que viabilize o desenvolvimento do homem. Faz-se, também, mister a descriminalização de inúmeros comportamentos de menor potencial ofensivo. Estender e reforçar a tutela penal dos interesses mais ou menos difusos e coletivos, invertendo radicalmente a hierarquia atual dos bens tutelados, de forma a responder às verdadeiras necessidades desse homem, centro e motor de nossos interesses.
Ora, o castigo é proporcional ao dano causado, pelo criminoso, à sociedade e se assim é deve-se ter em mente, então, que o exemplo deletério do crime é tão mais funesto quão maior o grau social do criminoso. Sucede, pois, que a pena de morte, já por igualar, bestialmente, todos, é portanto injusta e racionalmente incorreta. Por outro lado, nos países onde a Justiça penal, (do aparato polícia ao derradeiro grau jurisdicional) é expressão, pelo menos, da verdade formal, onde os aportes tecnológicos, financeiros e humanos são generosos, ainda assim, ali a pena de morte é essencialmente desaconselhável; entre nós, no entanto, já perigosa.
Destarte, o Direito penal que se vislumbra no horizonte, é o da intervenção mínima, onde o Estado deve reduzir o quanto possível sua ação na solução dos conflitos. Neste contexto, propõe-se, em suma, a descriminalização, a despenalização e a desinstitucionalização do conflito, restando ao Estado aquilo que seja efetivamente importante enquanto controle dos fatores criminógenos. (18/07/02)
Notas:
1. Palavras de Margarida in Fausto de Goethe (Wer hat dir, Henker, diese Macht über mich gegeben?)
2. Cf. Ensaio intitulado “Violência e crime, sociedade e Estado” publicado na Revistas Informação Legislativa do Senado Federal, nº 136, ano 34, out./dez.1997 e em várias outras revistas especializadas
3. Individualismo é a corrente de pensamento que evolui desde o séc. XIII (Nominalismo escolástico, passando pelo Renascentismo e raiando na Declaração dos Direitos do Homem de 1789/França) até nosso dias e que tem por essência a consideração de que o homem é valor máximo entre os demais valores da vida humana.
4. E é justamente pelo desassossego internacional quanto ao novo papel do Direito penal que a ONU, através da Resolução nº 45/110, de 14/12/90, sugestiona a substituição das penas privativas de liberdade por outras modalidades sancionadoras. Esta Resolução, edita as “Regras Mínimas das Nações Unidas para Elaboração de Medidas Não-Privativas de Liberdade”, que passaram a ser denominadas, simplesmente, como “As Regras de Tóquio”, em alusão à cidade onde realizou-se a Assembléia da ONU quando de sua aprovação.
O Autor, Luiz Otavio de O. Amaral, é advogado militante e professor da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Brasília, ex-Diretor da Fac. de Direito da UDF. Já lecionou na Fac.Direito da UnB, na Academia de Polícia (Acad. da PM/DF). Ex-assessor do Min. Justiça, da Desburocartização/Presidência da República., ex-procurador de empresa pública federal. Autor de “Relações de Consumo” (4 v.); “O Cidadão e Consumidor” (em co-autoria); “Comentários ao Código Defesa do Consumidor” (co-autor); “Lutando pelo Direito”, Ed. Consulex (2002) e “Direito e Segurança Pública – juridicidade operacional da Polícia” (no prelo).