Imputação Objetiva e Comportamento da Vítima

Antonio Carlos Santoro Filho

Juiz de Direito em São Paulo
Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura
Autor do livro Fundamentos de Direito Penal. Malheiros Editores: São Paulo, 2003.

1 – A regulamentação da causalidade no direito brasileiro.

Antes de adentrarmos no verdadeiro objeto deste estudo, cumpre-nos formular, de forma sintética, algumas considerações a respeito do tratamento da relação de causalidade pelo direito penal brasileiro, o que nos servirá como fundamento para algumas das posições tomadas quando da análise da influência do comportamento da vítima quanto ao juízo de imputação objetiva.
O legislador brasileiro não se omitiu de sua prerrogativa de fornecer contornos típicos à relação de causalidade, e conferir ao intérprete dados normativos para a imputação do resultado, bem como para a sua exclusão.
Dispõe o art. 13, do Código Penal brasileiro:

Relação de causalidade
Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
Superveniência de causa independente
§ 1º. A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.
Relevância da omissão
§ 2º. A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Esta a interpretação que conferimos ao art. 13, e seus parágrafos, do Código Penal brasileiro: no caput o legislador afirma que a causalidade material ativa, sensorialmente verificável, ou por equiparação (omissão), constitui pressuposto indispensável à imputação objetiva. Se o resultado não constituir, no plano físico, o produto de uma ação positiva ou decorrência de uma não-intervenção para evitá-lo, já não se cogitará de imputação objetiva. Mas somente esta causalidade física, entretanto, não basta.
Imprescindível é que, nos crimes comissivos, o comportamento, no momento de sua realização, seja adequado à produção daquele resultado, e mais, que este não decorra de uma outra causa – física ou por equiparação (omissão) – que não se encontre na linha do normal desdobramento do processo causal desencadeado por aquela conduta (este o significado da expressão “relativamente independente”), e que não seja essa causa distinta o fator determinante, preponderante para a caracterização do fato (apta a, “por si só”, evidentemente em um sentido normativo, produzir o resultado).
No tocante à omissão, além da verificação da idoneidade da conduta omitida para evitar o resultado (art. 13, caput), exige o § 2º do dispositivo legal que exista, em relação ao agente, uma especial qualidade de garantidor do bem jurídico sujeito ao risco e, além disso, que lhe seja possível, nas circunstâncias concretas do fato, intervir para evitar o resultado.
Os elementos normativos lançados pelo legislador brasileiro no tema da causalidade possibilitam, a nosso ver, a elaboração de critérios para a imputação do resultado adequados às nossas realidades social e jurídica, que se por um lado evitam os excessos da teoria da conditio sine qua non, por outro impedem, como veremos, em vista de tratar-se de legislação ordinária com respaldo constitucional, que não pode, assim, ser simplesmente ignorada ou descumprida, o acolhimento integral da “teoria da imputação objetiva” de Claus Roxin, ainda que, em alguns pontos, notadamente quanto às conseqüências do comportamento da vítima em relação ao juízo de adequação típica, cheguem a resultados similares.

2 – Autocolocação em Perigo

A “teoria da imputação objetiva” elaborada por Claus Roxin prega a não imputação do resultado quando a vítima, incitada ou induzida pelo agente, atua voluntariamente e com a consciência de que seu comportamento implica um incremento de risco ao bem jurídico.
Condutas desta espécie não estariam ao alcance do tipo, pois a finalidade da norma penal não é a de vedar e muito menos a de punir terceiros por autocolocações em situações de perigo.
A demonstrar a correção desta conclusão encontrar-se-ia a não punibilidade, no direito alemão, da participação em suicídio e da autolesão – fundamento incabível no direito penal brasileiro, face ao que dispõe o art. 122, do Código Penal. Se o direito penal não pune lesões a bens jurídicos próprios, não pode punir autocolocações em situações perigosas, que necessariamente as precedem (1).
Citando julgado alemão, sustenta Roxin, em síntese, que “autocolocações em perigo realizadas e queridas de modo responsável não se enquadram no tipo do delito de lesões corporais ou homicídio, ainda que o risco que conscientemente se corre realize-se em um resultado. Aquele que provoca, possibilita ou facilita uma tal autocolocação em perigo não é punível pelo delito de lesões corporais ou homicídio” (2).

1º Exemplo: A sugere a B que atravesse um lago de gelo quebradiço. B, consciente do perigo, acolhe a sugestão e vem a morrer. Por ter a vítima se autocolocado em situação de perigo, o resultado não pode ser objetivamente imputado àquele que formulou a sugestão (3).

2º Exemplo: A e B travam um “racha” de motocicletas após ingerirem bebidas alcoólicas, mas conscientes dos riscos envolvidos. B, em virtude de erro por ele mesmo cometido, acidenta-se e morre (4).

3º Exemplo: A entrega a B heroína para consumo, ambos com a consciência dos perigos que envolvem o ato. B utiliza a substância e morre (5).

Se o resultado a que chega Roxin nas hipóteses apresentadas – não subsunção aos tipos de lesões corporais e homicídio – parece-nos correto, o mesmo não se pode dizer quanto à introdução de um novo instrumento jurídico-penal, de índole evidentemente político-criminal e sem a força, pois, do direito positivo, para fundamentá-lo.
Isto porque a indução, instigação e auxílio constituem condutas que, no plano do injusto, salvo quando configurarem delitos autônomos ou quando estiverem acrescidas de uma determinação em erro, portam a característica ou uma relação de acessoriedade ao fato do autor, pois quem apenas induz, instiga ou auxilia não possui o domínio do fato e, portanto, não realiza, em regra, o elemento descritivo nuclear do tipo.
Face à não perpetração do elemento nuclear – verbo – , estas espécies de condutas, isoladas, não encontram adequação ao modelo legal, ao campo da tipicidade.
Desse modo, como sustenta Santiago Mir Puig (6), “diferentemente de quem realiza o tipo como autor em sentido estrito, que é punível autonomamente, o partícipe só pode ser castigado se existe um fato punível por parte do autor”.
Ora, se assim é, nos exemplos fornecidos por Roxin apresenta-se desnecessário o recurso a uma nova categoria jurídico-penal limitadora da incidência proibitiva, qual seja, a “autocolocação consciente em perigo”, pois estas condutas, em verdade, jamais estiveram alcançadas pela parte objetiva do tipo.
A atipicidade decorre já da simples observância do princípio da legalidade formal, sensorialmente verificável – aspecto externo da conduta -, sendo despiciendas, nestas hipóteses, buscas outras ao “alcance do tipo” ou pelo “fim de proteção da norma nele inscrita” – caráter intrínseco.
Com efeito, nos exemplos transcritos, ao colocar em perigo ou lesionar bem jurídico próprio, o autor-ofendido obviamente não realiza, contra si, o injusto típico de homicídio (doloso ou culposo), de forma que o comportamento acessório a esta conduta – instigação, induzimento ou auxílio -, em virtude dessa relação de dependência e de ausência de domínio sobre o fato, também não pode configurar, de modo autônomo, o mesmo injusto.
Neste sentido posiciona-se Hans Joachim Hirsch (7), para quem estas hipóteses – de autocolocação em perigo – situam-se na problemática específica da participação. Portanto, se o autor imediato de uma autocolocação em perigo não realiza um fato principal típico, a mera participação, por seu caráter acessório, não encontrará adequação ao “tipo objetivo”. Assim, “nestes casos não há problema dogmático algum”.
Logo, diante do princípio da legalidade, estas espécies de comportamentos apenas poderiam, se muito, encontrar adequação ao tipo do art. 122, do Código Penal brasileiro, e isso somente quando houver o elemento subjetivo do tipo por parte do agente e, por parte do ofendido, o ato doloso de matar-se ou de assumir conscientemente, para a realização de seu plano, o risco de produção da própria morte.
Fernando Galvão (8) discorda do posicionamento aqui tomado, pois, para este Autor, “se a norma expressamente estabelece que a contribuição anterior é penalmente relevante e impõe ação para evitar o resultado lesivo, há responsabilidade para o fornecedor da droga pela morte ocorrida”. De igual modo, “deve responder por homicídio (doloso ou culposo) o motociclista que convida outro para participar com ele de corrida pelas vias públicas, vindo a ocorrer queda e morte do convidado, ainda que por descuido deste, porque a situação de risco foi criada e incrementada também por esse motociclista, que se torna garantidor da não-ocorrência do resultado lesivo. A aceitação do desafio pelo motociclista que caiu não exclui a responsabilidade do outro que o convidou para a atividade de risco não autorizada” (9).
Entendemos, contudo, que as hipóteses apresentadas não são aptas a gerar, como sustentado pelo citado autor, a responsabilidade a título de omissão.
Em primeiro lugar porque a omissão imprópria exige, para o juízo de tipicidade, a existência de uma relação direta e imediata entre o comportamento e o risco criado, independente (em sentido relativo) de ações de terceiros.
O perigo meramente mediato e condicionado não se presta à caracterização da omissão penalmente relevante, sob pena de indevida ampliação do campo da tutela penal, em infração ao princípio da legalidade.
Além disso, como se depreende dos termos da norma penal, é necessário que a conduta crie o risco, isto é, que seja o fator preponderante para a sua existência, não bastando, para tal fim, a mera contribuição acessória para o surgimento de uma situação perigosa, simples colaboração para a criação do perigo.
A variação dos exemplos fornecidos pode melhor esclarecer o que estamos a sustentar:

1ª Variação: A vende a B cinco litros de cachaça. Ambos têm a consciência de que a substância, ingerida em grande quantidade, pode levar a estado de coma e mesmo à morte. B, de forma leviana, ingere a totalidade do líquido e, em razão disso, falece.

2ª Variação: Diariamente, durante trinta anos, B adquiriu cigarros no estabelecimento comercial de A . Ambos tinham a consciência plena de que o cigarro pode provocar inúmeros problemas de saúde. Passados os trinta anos, B é acometido de câncer no pulmão e, em virtude desta doença, vem a morrer.

3ª Variação: A convida B para participar do “racha em Interlagos”, evento promovido pela Prefeitura Municipal de São Paulo, que tem por fim retirar do trânsito corridas ilícitas. Ambos têm relativa experiência na atividade e plena consciência dos riscos envolvidos. Durante o “racha”, B, por culpa que somente a ele pode ser imputada, sofre um acidente e morre.

Questiona-se: na primeira variação a morte de B poderia ser imputada a A? Se adotarmos o posicionamento de Fernando Galvão a resposta seria positiva, pois a venda de bebida alcoólica teria criado um risco para a integridade física e a vida de B.
A experiência nos demonstra, contudo, que em tal hipótese não se imputa objetivamente o resultado ao vendedor, pois o seu comportamento apenas colabora para, mas não constitui, em si mesmo, a criação do perigo, que somente pode ser imputada à própria vítima.
A mesma circunstância impede que, na segunda variação, a morte de B seja imputada a A ou ao fabricante de cigarros, e que, na terceira variação, o falecimento de B seja atribuído a A ou ao promotor do evento.
Poder-se-ia objetar a esta linha de argumentação que todas as variações de exemplos envolvem, nos atos antecedentes, atividades lícitas, admitidas pelo direito, de forma que a não imputação seria explicada pela ausência de um risco não-permitido. A omissão, portanto, seria penalmente irrelevante, pois decorreria da “criação” de um perigo socialmente tolerado – permitido.
A crítica seria razoável ou mesmo pertinente se o nosso ordenamento jurídico exigisse, para a relevância penal da omissão, que já o ato que contribui para o perigo ao bem jurídico fosse revestido de ilicitude.
O injusto no antecedente, entretanto, não constitui pressuposto para a configuração da posição de garantidor, mas apenas permite a punição do comportamento como crime autônomo (no fornecimento de drogas, por tráfico de entorpecentes; no “racha” de motocicletas, pelo art. 308, do Código de Trânsito Brasileiro).
Com efeito, fumar um cigarro em um paiol, pese tratar-se de ação perigosa, não representa qualquer ilícito. Se as brasas do cigarro, todavia, caem ao chão, àquele que estava fumando impõe-se o dever de evitar a propagação das chamas e a ocorrência de um incêndio (10).
Do mesmo modo, o médico que inicia uma intervenção cirúrgica e abre o corpo do paciente realiza um comportamento lícito. Está obrigado, todavia, a terminar a operação e, caso se omita, o não fazer será penalmente imputável (11).
Vê-se, assim, que a qualidade do comportamento anterior – lícito ou ilícito – em nada interfere para a caracterização da posição de “garante”. O que importa, nos termos da alínea “c”, do § 2º, do art. 13, do Código Penal brasileiro, é aferir se a conduta constitui o fator preponderante para a ocorrência do risco, de forma a se lhe poder atribuir a “criação do perigo”. Não possuindo a conduta essa qualidade de “preponderância”, penalmente irrelevante será eventual omissão subseqüente.
Em um outro grupo de casos o comportamento da vítima, posterior à conduta do agente, caracteriza uma tal alteração das conseqüências que seriam esperadas, se ausente a autocolocação em perigo consciente, que implica a interrupção – sob o prisma normativo – do curso causal inicialmente levado a efeito, de forma a impedir a imputação do resultado, sem a necessidade, mais uma vez, do recurso ao “alcance do tipo”.
Entre estas hipóteses poderíamos citar os exemplos de Roxin relativos à vítima que, ferida em um acidente, recusa, por motivos religiosos, a transfusão de sangue, vindo a falecer em razão desse fato; do ofendido que, a despeito de insistentes avisos, recusa-se à internação hospitalar; do capelão que se põe voluntariamente em quarentena no interior de um hospital e que vem a contrair a doença que se pretendia isolar (12). Os resultados, aqui, não poderiam ser imputados ao causador do acidente (1º e 2º exemplos) ou àquele que propiciou a difusão da doença (3º exemplo).
Isto porque, se em todos esses casos a vítima, de forma consciente, toma para si o completo domínio dos acontecimentos, com o que retira do agente qualquer possibilidade de influência no ulterior desenvolvimento do processo causal, há de se reconhecer, em seu comportamento, uma causa superveniente, relativamente independente, apta a produzir, por si só – face ao citado domínio que porta dos acontecimentos – o resultado, o que exclui, nos termos do § 1º, do art. 13, do Código Penal brasileiro, a imputação objetiva.
Com efeito, se a omissão, em nosso direito penal, é normativamente equiparada à causa – material – de um resultado quando apta a impedi-lo, impõe-se considerar o comportamento omitido da vítima, em hipótese na qual, por si só, poderia evitar o resultado, como desencadeante de um novo curso causal, suficiente a afastar a imputação objetiva em relação ao terceiro.
Face à cláusula legal de equiparação entre a ação em sentido estrito e a omissão, à caracterização da causa superveniente relativamente independente, excludente da imputação objetiva, torna-se irrelevante se o comportamento da vítima constituiu um fazer positivo ou um não fazer; o que importa, como já ressaltado, é saber se o comportamento, no contexto de sua realização, configurou o fato determinante para a ocorrência do resultado, seja causando-o materialmente, seja não o evitando, quando possível fazê-lo.
A participação de terceiro em autolesão de bem jurídico será punível, entretanto, por lesões corporais, homicídio tentado ou consumado ou lesão corporal seguida de morte (de acordo com o resultado e o dolo do agente), se o ofendido for colocado em erro quanto à situação de perigo envolvendo o bem jurídico de sua titularidade, nos exatos termos do art. 20, § 2º, do Código Penal brasileiro.
Isto porque, nestas hipóteses, a legislação penal confere a atos que seriam, no plano formal, apenas de participação, a característica de autoria – mediata -, uma vez que o executor imediato do resultado – vítima – é utilizado como mero instrumento para a realização do plano do agente, que possui, portanto, o domínio do fato.
Assim, se no primeiro exemplo A sugere a B que atravesse um lago de gelo quebradiço, induzindo-o a crer que a superfície encontra-se sólida e que a travessia não representará qualquer perigo, a morte de B ou lesões por ele sofridas serão atribuídas a A, pois a indução ao erro constitui o fator preponderante para a realização da conduta.
De igual modo, no segundo exemplo, se A entrega a B uma porção de heroína, ciente de que, em razão de sua pureza, a droga pode provocar overdose se consumida, mas leva B a acreditar que tal risco está excluído, responderá pelo óbito causado pelo uso do entorpecente, na medida em que, neste caso, a indução em erro também constitui a causa preponderante para o fato.
A imputação objetiva, portanto, somente poderá restar excluída se a autocolocação em perigo for fruto de uma opção consciente por parte do ofendido, apta a tornar atípico o comportamento daquele que a induz, instiga ou auxilia, uma vez que a mera participação, sendo acessória, não pode caracterizar – salvo as exceções expressamente tipificadas -, à revelia da conduta principal, um injusto autônomo em relação ao resultado.

3 – Heterocolocação em Perigo

Os mesmos argumentos que, para a teoria elaborada por Roxin, fundamentam a exclusão da imputação objetiva para as hipóteses de autocolocação em situação perigosa, são utilizados para os casos em que o ofendido deixa-se colocar em perigo por terceiro, tendo consciência dos riscos envolvidos (13).
Segundo Roxin, se o lesado foi o criador do perigo por vontade própria, não se pode pretender que a norma penal atinja – ou busque atingir – aquele que apenas materializou a criação do risco (14).
Para que a heterocolocação em perigo, entretanto, guarde equivalência com a autocolocação em perigo, devem ser observados dois pressupostos, os quais demonstrariam a assunção do risco pela vítima: a) a lesão deve ser conseqüência unicamente do risco corrido; b) autor e vítima devem ter a mesma responsabilidade pelo fato, isto é, ambos devem conhecer o risco em igual medida (15).
Três situações exemplificam o raciocínio desenvolvido por Roxin.

1º Exemplo: Apesar da tempestade, A quer que o condutor B de um barco faça com ele a travessia de um rio. B desaconselha a travessia, em virtude dos riscos envolvidos. A insiste e a travessia é realizada. O barco afunda, A afoga-se e morre (16).

2º Exemplo: A ingressa no táxi de B. A, por estar atrasado para um compromisso, ordena a B que ultrapasse a velocidade máxima permitida. Em virtude da velocidade elevada ocorre um acidente, fruto do qual A morre (17).

3º Exemplo: em uma festa, B pede uma carona a A, que está embriagado. A atende ao pedido e B morre em um acidente provocado pela pelo estado de embriaguez do motorista (18).

Pensamos que em todos esses exemplos, embora não se possa negar a contribuição culposa da vítima para a ocorrência da lesão a bem jurídico próprio, inegável também é que tal colaboração não constitui o fator preponderante para a concretização do resultado, de forma que jamais poderá caracterizar a causa preexistente ou concomitante relativamente independente apta a produzir, por si só – em sentido relativo – o fato.
Inviável, assim, a exclusão da imputação com fundamento no § 1º, do art. 13, do Código Penal brasileiro, pois a causa preponderante, com relevância típica, somente pode ser imputada ao terceiro que empreendeu o comportamento, que efetivamente criou – e não apenas colaborou para a criação – o acidente (19).
A exclusão da imputação objetiva com base na heterocolocação em perigo, a nosso ver, busca conferir à concorrência de culpas relevância quanto ao juízo – negativo – de tipicidade, ainda que por vias transversas e sob distinta denominação. A compensação de culpas, todavia, é de forma pacífica rechaçada pela doutrina brasileira.
Sobre o tema, vale lembrar as lições de E. Magalhães Noronha, que, embora proferidas há quase cinqüenta anos, guardam, ainda, plena pertinência:
“Inaceitável, entretanto, é esse princípio. Ele nos leva a tempos de antanho, em que a pena tinha o fim precípuo de conciliar as partes e evitar a vindita do ofendido. Nessa fase em que predomina o interesse privado, em que o social ainda não se impunha, é compreensível a compensação de culpas, o que também a justifica no direito civil. Mas desde que novos horizontes se rasgaram no direito penal; desde que se compreendeu que o mal do delito não atinge apenas o ofendido, mas a toda a sociedade; desde que se firmou o caráter público da pena, como meio de combate ao crime, não se pode admitir a compensação de culpas” (20).

No mesmo sentido o posicionamento da jurisprudência nacional. Apenas a título de ilustração, trazemos à colação duas ementas de julgados do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, relativos a casos que guardam semelhanças com os exemplos utilizados por Roxin:

“LESÃO CORPORAL – Agente que dirige trator levando pessoa mal acomodada na dianteira do carro – Queda do passageiro – Culpa – Caracterização – Inteligência: artigo 70, parágrafo terceiro da Resolução nº 734/89, artigo 32 da Lei das Contravenções Penais. Age com culpa e responde pelas conseqüências do sinistro, o agente que dirige trator levando pessoa mal acomodada na parte dianteira do veículo, vindo esta a cair e lesionar-se, sendo irrelevante que a vítima tenha contribuído culposamente para o acidente, pois em matéria penal não se admite compensação de culpas”.(TACrimSP – Ap. nº 750.055/5 – 1ª Câm. – Rel. Pires Neto – J. 07.10.93 – RJDTACRIM 20/93).

“HOMICÍDIO CULPOSO – Acidente de trânsito – Agente que atinge bicicleta pilotada pela vítima no acostamento de rodovia – Caracterização – Culpa concorrente do ofendido – Irrelevância: Caracteriza o crime previsto no artigo 302 da Lei nº 9.503/97 a conduta do agente que, ao atingir bicicleta pilotada pela vítima no acostamento de rodovia, vem a matá-la, sendo irrelevante eventual culpa concorrente do ofendido, eis que tal circunstância não serviria para ilidir a culpa do acusado, pois inexiste compensação de culpa no Direito Penal”. (TACrimSP – Ap. nº 1.265.099/7 – Limeira – 12ª Câmara – Rel. Antonio Manssur – J. 24.09.2001 – v.u).

Às observações de Magalhães Noronha e dos julgados citados acrescenta-se que a elevação da contribuição culposa da vítima à categoria de causa de exclusão da tipicidade, já em sua parte objetiva, configura inadmissível exacerbação do individualismo na conformação do direito penal, posição absolutamente incompatível com o objetivo constitucional de nosso Estado Democrático de Direito, de construção de uma sociedade justa e solidária (Constituição Federal, art. 3º, inciso I).
Deve-se observar, ainda, que a adoção da heterocolocação em perigo como causa de exclusão da imputação objetiva constituiria, em nossa sociedade, desarrazoado instrumento de impunidade de graves condutas, o que também não pode ser acolhido.
Algumas situações, que contam com razoável incidência nas relações sociais e que representam, sem dúvida, desestabilização da ordem vigente e do sistema de valores constitucionalmente adotado ficariam à margem do direito penal. Alguns exemplos:

1) Aos participantes de um duelo não se poderiam imputar as lesões perpetradas um contra o outro, pois ao aceitarem o desafio – ilícito – teriam assumido o risco de dano à integridade física e à própria vida.

2) Ao proprietário e motorista de veículo de transporte alternativo (“perueiro”) na cidade de São Paulo não seriam imputáveis as lesões sofridas por seus passageiros decorrentes de acidente causado justamente pelo excesso de passageiros no veículo, uma vez que, conscientes dos riscos envolvidos na realização de trajetos em tais condições, teriam eles anuído à situação perigosa.

3) Ao comandante de uma escuna turística que não possuísse os necessários coletes salva-vidas, em havendo um acidente com o barco, não seriam imputáveis as mortes por afogamento dos turistas que, conscientes da inexistência dos equipamentos de segurança, resolvessem realizar o passeio, embora não soubessem nadar.

4) A morte de um paciente da UTI não seria objetivamente imputável àquele que, atendendo a pedido consciente formulado pela pessoa internada, desliga parte dos aparelhos da unidade, sem os quais os riscos à vida do paciente restam sobremaneira elevados.

5) Ao empregador não seriam imputáveis as lesões sofridas pelo empregado que, ao não receber os equipamentos de segurança obrigatórios, opta por assim mesmo executar trabalho arriscado (21).

Os exemplos elaborados, pelo menos em nosso sistema penal, caracterizam condutas proibidas em relação a seus autores, pois guardam adequação a tipos de injusto em todos os seus elementos e não encontram, em razão da anuência do ofendido à situação perigosa, qualquer fundamento no direito positivo para a não incidência da norma penal.
Com efeito, no plano objetivo os comportamentos subsumem-se aos tipos de lesões corporais ou homicídio, pois caracterizam a causa preponderante e tipicamente relevante para a ocorrência do resultado; o aspecto subjetivo da tipicidade também se faz presente, pois as ações estão plenas de dolo (primeiro e quarto exemplos) ou de culpa em sentido estrito, pois representam a inobservância, no caso concreto, do dever objetivo de cuidado (demais exemplos); a posição valorativa da prática dos fatos também em nada favorece seus autores, pois o ordenamento jurídico, em sua totalidade, não tolera e muito menos valoriza essas ações nos contextos em que perpetradas.
A heterocolocação em perigo, portanto, em nada afeta o juízo de tipicidade. Poderá apenas, e somente em algumas hipóteses, implicar a diminuição da censurabilidade que recai sobre o fato, o que traz conseqüências quanto à individualização da pena, nos termos do art. 59, do Código Penal (22).
Uma última questão, por sua atualidade, deve ser analisada à luz do problema da heterocolocação em perigo: as relações sexuais praticadas com perigo de contaminação pelo vírus da Aids.
Afirma Roxin que “uma vez que o perigo parte exclusivamente do infectado e o parceiro se limita a expor-se, trata-se de uma heterocolocação em perigo consentida (…) um tal contato sexual (mesmo no caso de relações sexuais desprotegidas) é impunível quando ambos os parceiros estiverem esclarecidos a respeito do risco de infecção e forem responsáveis em comum por sua ação” (23).
Os fundamentos aqui já expostos impedem que se acolha este posicionamento, pois, também neste caso, a leviandade do ofendido em nada afeta a tipicidade, em sua tríplice acepção, do comportamento do criador do perigo.
Além disso, como sustenta Fernando Galvão, desta feita, a nosso ver, com absoluta razão, o consentimento do ofendido não exclui a imputação objetiva, porque, “de modo expresso, os arts. 131 e 132 do Código Penal estabelecem crimes de perigo contra a vida e a saúde individual, sendo que a manifestação contrária da vítima não constitui fundamento para a incriminação. Consentindo ou não a vítima com a exposição a perigo, caracteriza-se o crime” (24).

4 – Ações arriscadas de salvamento

Ainda sob o enfoque do “fim de proteção da norma”, sustenta Roxin que não se dá a imputação objetiva nas hipóteses em que salvadores voluntários acidentam-se, pois aquele que cria a situação de risco causará, tão somente, uma autocolocação em perigo (25) desprovida de tipicidade.
Se nesses casos, ainda que por outras vias, a vítima assume voluntária e conscientemente o risco do dano a bem jurídico próprio, a conduta daquele que criou as circunstâncias que ensejaram a ação de salvamento não estará ao alcance dos tipos de lesões corporais ou de homicídio.

1º Exemplo: A encontra-se em uma situação de perigo em uma montanha. B, realizando ações que caracterizam o risco pessoal tratado pelo art. 135, do Código Penal (omissão de socorro), tenta salvá-lo, mas acaba falecendo (26).

2º Exemplo: O salva-vidas B entra no mar para salvar o banhista A, que está em situação de perigo. B, em razão das fortes correntes existentes na área, acaba se afogando e morre (27).

Estes casos não trazem, a nosso ver, dificuldades adicionais ou problemática distinta daquela já tratada no item 2, pois, em tais hipóteses, o comportamento da vítima, por se tratar de um ato não ilícito, não pode ensejar, à conduta daquele que apenas colaborou para a sua ocorrência, relevância típica.
A isto se acrescenta que, não tendo a pessoa que criou a “situação de risco” o domínio, ou mesmo qualquer influência sobre a tomada de decisão do salvador de arriscar bem jurídico próprio, o processo de desenvolvimento causal para a realização do resultado, ainda que admitida a causalidade material – que, para nós, entretanto, já não possui relevância por não caracterizar o elemento nuclear do tipo -, ficaria afastado pela incidência do § 1º, do art. 13, do Código Penal.
Com efeito, a vítima, ao optar pela ação de salvamento arriscada, sem que para tal decisão haja colaboração efetiva por parte do criador da situação de risco inicialmente verificada, inaugura, em relação a ela, um novo contexto de perigo, relativamente independente daquele primeiro evento. Por constituírem esta opção e a realização da conduta arriscada os fatores preponderantes do dano sofrido, pode-se afirmar que, no plano da tipicidade, por si sós produzem o resultado lesivo. Caracterizada, portanto, a superveniência de causa relativamente independente, excluída restará a imputação (28).
Também não se poderia cogitar, nesses casos, de imputação a título de omissão.
Em primeiro lugar porque, como já vimos, nestas hipóteses apenas se pode imputar ao agente a colaboração para a criação do risco, e não a própria existência deste, que decorre da opção da vítima de se autocolocar em situação de perigo. A omissão, assim, por não encontrar plena adequação ao disposto na alínea “c”, do § 2º, do art. 13, do Código Penal brasileiro, careceria de tipicidade.
Mas ainda que sustentado o “dever de agir para evitar o resultado”, a sua existência não basta para caracterizar a omissão típica, pois, o § 2º, do art. 13, do Código Penal brasileiro, estabelece também como pressuposto para a relevância penal da omissão a “possibilidade de atuação”. Logo, “não podendo agir para impedir o resultado, a omissão do banhista é penalmente irrelevante, e ele não responde pela morte do salva-vidas” (29).
Por qualquer ângulo que se analise a questão, portanto, chegar-se-á à conclusão de que não podem ser imputados ao agente que criou – ou se viu colocado – na primeira situação de perigo, os danos eventualmente sofridos por quem, por ato próprio, se colocou, de forma consciente, em situação de risco.

Notas
(1) Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 354.
(2) Funcionalismo…, p. 357-58.
(3) Funcionalismo…, p. 353.
(4) Funcionalismo…, p. 354-55.
(5) Funcionalismo…, p. 367.
(6) Derecho Penal, 5ª ed.. Barcelona, 1998, p. 359.
(7) Derecho Penal, Obras Completas, tomo I. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 1999, p. 45.
(8) Imputação Objetiva. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p. 63.
(9) Imputação Objetiva, p. 64.
(10) Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal, v. I, 2ª ed.. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 138.
(11) Idem, p. 138.
(12) Funcionalismo…, pp. 356 e 365.
(13) Funcionalismo…, p. 367.
(14) Funcionalismo…, p. 370.
(15) Funcionalismo…, p. 370-71.
(16) Funcionalismo…, p. 367.
(17) Funcionalismo…, p. 367.
(18) Funcionalismo…, p. 367-68.
(19) Damásio E. de Jesus, mesmo tendo acolhido quase que integralmente a teoria da imputação objetiva de Claus Roxin, neste ponto dela diverge, pois sustenta a imputação na hipótese de heterocolocação em perigo. Para este autor, “as condutas dos autores superam as que carregam o risco permitido. Assim, a travessia de um rio em barco já apresenta um risco permitido; durante tempestade, risco proibido, além de o balseiro apresentar-se na posição de “garante”. Dirigir veículo de forma normal contém um risco tolerado; em excesso de velocidade ou em estado de embriaguez, um perigo proibido. Não se pode dizer que o balseiro e os motoristas observaram o cuidado objetivo necessário” (Imputação Objetiva, 2ª ed.. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 62). Antonio Luís Chaves Camargo, ao contrário, orienta-se pela não-imputação: “A vítima que se propõe a um contato íntimo com o agente deve ter o conhecimento do risco de contrair uma doença sexual, se não exige as providências que possam dificultar ao máximo essa transmissão, como é o caso do uso do preservativo, mesmo sabendo que o agente, em tese, pelo seu modo de vida, não oferece risco, a simples dispensa das cautelas por parte da vítima exclui do âmbito penal a tipicidade do fato. O consenso na ação é fundamental para a exclusão da tipicidade. Outro exemplo pode demonstrar que a atividade conjunta, não no sentido de co-autoria ou participação criminosa, mas de reciprocidade e interação determinada pelo consenso no agir comunicativo, exclui a tipicidade. É o caso da vítima solicitar a um motorista que participará de uma corrida, denominada de racha, autorização para acompanhá-lo e venha a sofrer ferimentos graves em conseqüência de um acidente” (Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Cultural Paulista, 2002, p. 183). A dificuldade de fundamentação deste posicionamento perante o direito penal brasileiro fica patente no desenvolvimento do tema por este Autor, pois, embora explicite quando a heterocolocação em perigo é apta a excluir a imputação (a atividade deve permanecer no limite da ação conjunta de autor e vítima; a conduta da vítima não deve ter sido instrumentalizada pelo autor, excluindo sua compreensão de auto-responsabilidade; o autor não seja garantidor diante da vítima – Imputação Objetiva e Direito Penal Brasileiro, p. 183), não esclarece o porquê da não imputação, caindo no seguinte raciocínio tautológico: são atípicos os atos de heterocolocação em perigo porque a heterocolocação em perigo exclui a tipicidade do fato.
(20) Do Crime Culposo. São Paulo: Saraiva, 1957, p. 83.
(21) No tocante às relações trabalhistas, Roxin sustenta que o princípio da heterocolocação em perigo como causa para a não imputação deve ser mitigado, em razão da dependência do empregado, que diminui a sua responsabilidade pelo fato (Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal, p. 371). Mas se a responsabilidade pelo fato decorre, como afirma o próprio Roxin, não da posição ostentada na eventual relação jurídica existente entre os envolvidos, e sim do conhecimento de ambos sobre os riscos na mesma medida, a imputação objetiva, nestas hipóteses, constituiria insuperável contradição do sistema proposto, apta a, por si só, invalidá-lo, uma vez que preenchidos os pressupostos adotados para a sua exclusão. Poder-se-ia argumentar que a relação de dependência do empregado não lhe permitiria uma assunção livre dos riscos envolvidos. Se isto é verdadeiro, no mais das vezes, em épocas de recessão, a mesma conclusão não pode ser formulada nos períodos de expansão da economia e de ampliação da oferta de empregos, que conferem grande facilidade de recolocação profissional, e nem àqueles trabalhadores vinculados a sindicatos bem estruturados e com forte poder político, que possuem os instrumentos jurídicos necessários a evitar infrações à legislação de proteção dos empregados. Admitida, pois, a heterocolocação em perigo como instrumento de não-imputação, há de se acolher a atipicidade da conduta negligente do empregador, se a ela anuir o empregado, ainda que esse entendimento contrarie frontalmente o senso comum e fomente, por via reflexa, o desrespeito à dignidade da pessoa humana.
(22) Dispõe o art. 59, do Código Penal brasileiro: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime (…)”.
(23) Funcionalismo…, p. 372.
(24) Imputação Objetiva, p. 65.
(25) Funcionalismo…, p. 361.
(26) Funcionalismo…, p. 361.
(27) Fernando Galvão, Imputação Objetiva, p. 88-89.
(28) Neste sentido acórdão proferido pelo Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo:
“A causa superveniente, que por si só produz o resultado, é a que forma novo processo causal, que se substitui ao primeiro, não estando em “posição de homogeneidade” com o comportamento do agente” (JUTACRIM 64/295), apud, Alberto Silva Franco et. alli., Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 1484.
(29) Fernando Galvão, Imputação Objetiva, p. 90.

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