Interpretação das Normas Constitucionais nas relações de Direito Civil

Cláudia Martins Quaresma

Antes de se abordar o atual conceito de direito civil, impõe-se analisar alguns antecedentes históricos que influenciaram a mudança do seu enfoque, chegando ao fenômeno hoje tão estudado da constitucionalização do direito civil.

O Código Civil, formulado com base no Código de Napoleão, refletia o individualismo, sendo o estatuto dos particulares, isto é, do indivíduo na órbita do ordenamento jurídico. Nele a propriedade foi tratada como o mais absoluto direito, sem qualquer limitação. Inexistia interferência do Estado nas relações privadas. Era a época da ideologia liberal e o Código Civil assumiu o papel de verdadeira constituição das relações privadas, como afirma Michele Giorgianni (“O Direito Privado e as suas atuais fronteiras”, in Revista dos Tribunais, vol. 747, janeiro de 1948, p. 35 e ss). O objetivo do direito civil era garantir a estabilidade à atividade privada.

Nesse cenário, também marcante se fez a exata separação entre direito público e privado, de modo a que o primeiro era aquele emanado pelo Estado para a tutela dos interesses gerais e o segundo regulava os direitos naturais e inatos dos indivíduos. Tais órbitas de direito eram vistas como compartimentos estanques, sem qualquer interpenetração.

Fatores históricos, porém, ocorridos a partir do século XIX, como o nascimento da idéia moderna de Estado, que ampliou seu campo de atuação, assumindo papéis que incumbiam à iniciativa particular; o processo de industrialização; a mudança do conceito de contrato; a ocorrência dos movimentos sociais, entre outros, contribuíram para uma valoração não mais subjetiva, mas “conteudista”, no dizer de Michele Giorgianni (ob.cit.), do direito privado. Este abandonou a exclusiva tutela do indivíduo e abraçou novos operadores econômicos, quais sejam entes públicos, o próprio Estado e inclusive a coletividade organizada. Verificou-se uma mudança do aspecto da propriedade, despontando o conceito de abuso do direito e a idéia de que a propriedade está vinculada a um interesse coletivo.

O direito civil, dessa forma, teve que se redimensionar. Em uma primeira fase, observou-se o surgimento das leis excepcionais, que regulavam setores não disciplinados pelo Código e continham princípios que dissentiam dos princípios dominantes nele. Na segunda fase, diante do crescente aumento das lacunas do direito civil, nasceram as leis especiais, que disciplinavam de forma especializada e ampla determinados temas, afastando-se do caráter emergencial ou excepcional. Nessa fase de especialização, o Código Civil perdeu ser caráter de estatuto exclusivo das relações patrimoniais privadas. Posteriormente, porém, sucedeu-se uma terceira fase, na qual o legislador passou a criar leis bem abrangentes, que tratavam aprofundadamente determinado assunto, subtraído do Código Civil. Evidenciou-se a proliferação dos chamados microssistemas, como por exemplo, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei do Direito Autoral, a Lei de Locações. O Código Civil assumiu o papel de fonte residual de legislação acerca de algumas matérias. A legislação especial se expandiu e o âmbito de abrangência do Código Civil se estreitou.

Nessa fase, também se verifica a inserção nas grandes Constituições de princípios e normas que limitam a autonomia privada e estabelecem deveres sociais no desenvolvimento da atividade econômica privada. As Constituições passam a abordar temas antes exclusivos do Código Civil, como a função social da propriedade e a organização da família e o Estado inicia uma obra de intervencionismo na economia através de dirigismo contratual e programas assistenciais.

Em nosso ordenamento, tal tendência foi introduzida solidamente com a Constituição de 1988. O Código Civil assumiu um novo papel a ser valorado e interpretado em conjunto com outros diplomas setoriais. É a fase que se denomina a “era dos estatutos”.

Ditos estatutos não enfocam apenas o direito substantivo, ao contrário, contém dispositivos processuais e de direito administrativo, criam tipos penais e estabelecem princípios interpretativos. Constroem, assim, um verdadeiro edifício normativo. Tal edifício, todavia, deve ser interpretado não isoladamente e sim de forma conjunta, sempre baseada na Constituição. Há que se estabelecer uma conexão entre os chamados microssistemas, que formam uma unidade denominada sistema, privilegiando a análise das normas em confronto com as outras existentes, examinando o conteúdo de cada uma delas e verificando a sua coerência constitucional.

A fragmentação do sistema conduz à necessidade de uma atenta atividade interpretativa, merecendo ser realçada a afirmação de PIETRO PERLINGIERI de que “as leis especiais não são mais consideradas atuativas dos princípios codicísticos, mas daqueles constitucionais, elas não podem ter lógicas de setor autônomas ou independentes das lógicas globais do quadro constitucional. Elas também devem ser sempre concebidas e conhecidas obrigatoriamente no âmbito do sistema unitariamente considerado” (Perfis do Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 79).

As leis especiais não podem ser visualizadas como compartimentos estanques, autônomos e independentes das lógicas globais do quadro constitucional e hoje não exprimem apenas os princípios do Código Civil. Hoje, as leis especiais são microssistemas que formam uma unidade, denominada sistema. Com base nessa unidade, a Constituição assume a importante função de oxigenar a legislação ordinária, redefinindo e ampliando conceitos privatísticos.

Neste ponto, mais uma vez, impõe-se registrar a lição de PIETRO PERLINGIERI, que afirma que “o direito especial tem sua peculiaridade e sua limitada autonomia, mas sempre derivada e vinculada pelas diretrizes e pelos valores do sistema” (Ob. Cit.).

Nessa ordem de idéias, segue-se que a nova Constituição e a propagação dos microssistemas fez com que o pólo das relações de direito privado abandonasse o Código Civil e se concentrasse na Constituição, que unifica o sistema. Como bem exposto por MARIA CELINA BODIN DE MORAES, “acolher a construção da unidade (hierarquicamente sistematizada) do ordenamento jurídico significa sustentar que seus princípios superiores, isto é, os valores propugnados pela Constituição, estão presentes em todos os recantos do tecido normativo, resultando, em conseqüência, inaceitável a rígida contraposição direito público-direito privado” (“A Caminho de um Direito Civil Constitucional”, in Revista de Direito Civil, vol. 65, p. 24).

Com efeito, a dicotomia precisa entre público e privado se ofusca, diante da interpenetração dos seus conteúdos, que é concretizada através, por exemplo, da atribuição constitucional da função social da propriedade, do reconhecimento constitucional da igualdade de todos os filhos e do dirigismo contratual.

Nessa realidade contemporânea, há que se fazer uma releitura do Código Civil, harmonizada com a Constituição, que contém princípios de observância e aplicação obrigatória, não restritos somente às relações Estado-indivíduo, mas também abrangendo as relações interindividuais privadas. É imprescindível a busca na Constituição dos princípios fundantes, notadamente a dignidade da pessoa humana, para nortear o operador do direito.

Não se pode deixar de invocar, para concluir, o registro do professor GUSTAVO TEPEDINO de que “a perspectiva de interpretação civil-constitucional permite que sejam revigorados os institutos de direito civil, muitos deles defasados da realidade contemporânea e por isso mesmo relegados ao esquecimento e à ineficácia, repotencializando-os, de molde a torná-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual” (“Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil” in Temas do Direito Civil, Rio de Janeiro, Renovar, p. 21).

Por fim, observa-se que a tarefa da aplicação direta das normas constitucionais nas relações privatísticas deve ser feita também pela jurisprudência. No entanto, o nosso Supremo Tribunal Federal não tem realizado o necessário trabalho de adequação das normas civis ao espírito da Constituição da República. Tal Corte tem dado aplicação restritiva à Constituição. As potencialidades interpretativas da Constituição da República estão sendo limitadas pelo STF, que não vem concebendo o direito em uma perspectiva principiológica, não enfocando a Constituição como centro de integração do sistema jurídico de direito privado.

Relatório de Pesquisa apresentado na disciplina Constituição e Direito Civil do Programa de Mestrado da Faculdade de Direito de Campos, sob a orientação do Professor Dr. Gustavo Tepedino.

Cláudia Martins Quaresma é Promotora de Justiça Titular da 2ª Curadoria de Família e Juventude da Comarca de Campos dos Goytacazes e professora da Faculdade de Direito de Campos.

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