Anotações sobre a desconsideração da personalidade jurídica

Luiz Cláudio Carvalho de Almeida

Sumário
1) Apresentação

2) Da Personalidade Jurídica e do Princípio da Autonomia Patrimonial

3) Da Responsabilidade dos Sócios e Administradores

4) Da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (Disregard of Legal Entity). Origens Históricas e Teóricas.

5) Da Aplicação da Disregard Doctrine no Brasil

6) Conclusão

7) Bibliografia

1) Apresentação
Antes que qualquer análise seja feita sobre a desconsideração da personalidade jurídica, necessário se faz a determinação de algumas premissas sobre a localização do Direito Comercial no sistema jurídico.

A criação do Direito Comercial como disciplina autônoma possui raízes históricas que inicialmente determinaram seus contornos, mas que apresentam-se, atualmente, fora do contexto econômico.

A idéia da criação de um ordenamento jurídico próprio dos comerciantes partia do pressuposto da necessidade de se dar um tratamento diferenciado à emergente classe burguesa e aos seus valores, num contraponto aos valores da nobreza feudal, vencidos na Revolução Francesa.

Daí a construção de uma teorização calcada na pessoa do comerciante e nos atos de comércio.

Não é por acaso que são excluídas as negociações com imóveis do universo regulado pelo então novel direito comercial.

O centro identificador da riqueza desloca-se da propriedade de terras, típica do período feudal, para a acumulação de dinheiro, própria da classe burguesa.

Cria-se, portanto, um estatuto dos comerciantes.

Muito embora se vislumbre em eras mais remotas a origem do direito comercial, é, sem sombra de dúvida, o Código Napoleônico de 1807, o grande marco sistematizador de nossa disciplina, e que adota a teoria dos atos de comércio.

No Brasil, as repercussões do Código Francês não tardaram a se fazer sentir com a promulgação de nosso Código em 1850.

Na busca de identidade, o direito comercial tradicionalmente procurou dissociar-se de institutos do direito civil, relegando-os à regulamentação em sede própria.

Dentre esses institutos insere-se a personalidade jurídica.

2) Da Personalidade Jurídica e do Princípio da Autonomia Patrimonial
Decorre da personalidade jurídica a separação patrimonial entre os bens afetados à composição do capital social e os bens particulares dos sócios, o que tem possibilitado grande incremento das atividades econômicas nas sociedades capitalistas.

Isto porque o comprometimento do patrimônio pessoal do sócio em caso de derrocada do empreendimento inibiria sobremaneira a iniciativa privada face o elevado risco que ensejariam determinadas atividades econômicas.

A proteção do patrimônio individual do sócio consubstancia medida saudável ao desenvolvimento econômico.

Registra-se, por oportuno, a lição de Fábio Ulhoa Coelho[1]: “O princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, observado em relação às sociedades empresárias, socializa as perdas decorrentes do insucesso da empresa entre seus sócios e credores, propiciando o cálculo empresarial relativo ao retorno dos investimentos.”

Contudo, há que se tecer limites a que tal autonomia patrimonial não seja usada como escudo para a fraude e o abuso de direito.

A distinção entre o patrimônio social e o particular dos sócios representa o motivo principal do instituto da personalidade jurídica.

No direito brasileiro, não há campo para discussões acerca da consagração do instituto desde a edição do Código Civil de 1916, que prevê em seu art. 20, caput, que “as pessoas jurídicas têm existência distinta de seus membros”.

Consoante lição de Fábio Ulhoa Coelho[2] “muito embora alguma doutrina ensine o inverso (Correia, 1975:240/251), da personalização da sociedade empresária segue-se a separação dos patrimônios desta e de seus sócios. Os bens integrantes do estabelecimento empresarial, e outros eventualmente atribuídos à pessoa jurídica, são de propriedade dela, e não de seus membros”.

3) Da Responsabilidade dos Sócios e Administradores
Consagrada a separação patrimonial no ordenamento brasileiro, exsurge como fonte de preocupação dos operadores do direito o uso da pessoa jurídica como instrumento de fraude e do abuso do direito.

Note-se que, a despeito da autonomia entre a pessoa jurídica e a pessoa física do sócio a legislação prevê um sem número de hipóteses em que se afigura possível ao credor lançar mão do patrimônio pessoal do sócio para fazer frente a dívidas contraídas em nome da sociedade.

Abstraindo-se das sociedades comerciais em desuso previstas pelo vetusto Código Comercial, várias são as hipóteses de responsabilidade pessoal do sócio.

Relativamente às sociedades por cotas de responsabilidade limitada preceitua o Decreto n° 3.708/19, em seu art. 10, que “os sócios-gerentes ou que derem o nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei”.

De teor semelhante o art. 158, da Lei n° 6.404/76, que prevê para os administradores de sociedades anônimas responsabilidade pessoal pelos danos causados por atos praticados em violação à lei ou ao estatuto.

Em ambas situações acima descritas não se permite cogitar da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, vez que a própria lei, sem que se faça necessário a aplicação da referida teoria, possibilita o alcance do patrimônio pessoal do sócio ou administrador que tenha praticados atos ilegais.

Na seara tributária, por igual, já existe disposição legal expressa responsabilizando diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado pelas obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração a lei, ao contrato social ou ao estatuto (art. 135, inciso III, do Código Tributário Nacional).

Todavia, existirão situações em que, a despeito da regularidade legal da operação, será possível vislumbrar o uso da pessoa jurídica como mecanismo de lesão a terceiros, o que repugna ao direito.

Surge então a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (Disregard of Legal Entity).

4) Da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (Disregard of Legal Entity). Origens Históricas e Teóricas.
A primeira notícia que se tem sobre o tema remonta ao caso Salomon vs. Salomon & Co., julgado pela justiça inglesa em 1897.

Valemo-nos do escólio de Rubens Requião, professor que entronizou no Brasil a teoria da desconsideração, para relatar em que consistia a demanda acima noticiada : “Este empresário havia constituído uma company, em conjunto com outros seis componentes da sua família, e cedido seu fundo de comércio à sociedade que fundara, recebendo em conseqüência vinte mil ações representativas de sua contribuição, enquanto para cada um dos outros membros coube apenas uma ação para a integração do valor da incorporação do fundo de comércio na nova sociedade. Salomon recebeu obrigações garantidas no valor de dez mil libras esterlinas. A sociedade logo em seguida se revelou insolvável, sendo o seu ativo insuficiente para satisfazer as obrigações garantidas, nada sobrando para os credores quirografários.

O liquidante, no interesse dos credores quirografários, sustentou que a atividade da company era atividade de Salomon, que usou de artifício para limitar a sua responsabilidade e, em conseqüência, Salomon deveria ser condenado ao pagamento dos débitos da company, devendo a soma investida na liquidação de seu crédito privilegiado ser destinado à satisfação dos credores da sociedade”[3].

Muito embora a Casa dos Lordes tenha considerada válida a operação realizada por Salomon, impedindo que seu patrimônio pessoal respondesse por dívidas contraídas pela company, duas instâncias inferiores acataram a tese da desconsideração o que gerou grande interesse pelo tema.

De maneira sistematizada, a teoria da desconsideração ganhará força com a tese de doutorado de Rolf Serick, defendida em 1953 perante a Universidade de Tübigen, intitulada Rechtsform und Realität juristischer Personem.

Formula o autor quatro princípios: o de que o juiz pode desconsiderar a separação patrimonial entre sócio e pessoa jurídica para impedir a prática de ato ilícito; o de que não basta a simples insatisfação do credor para justificar a aplicação da teoria em comento; o de que deve-se levar em conta a pessoa física para estabelecer normas aplicáveis à pessoa jurídica no que tange à capacidade ou valor humano, como, por exemplo, nacionalidade; e o de que “se as partes de um negócio jurídico não podem ser consideradas um único sujeito apenas em razão da forma da pessoa jurídica, cabe desconsiderá-la para aplicação de norma cujo pressuposto seja diferenciação real entre aquelas partes”[4].

Exsurge do trabalho de Serick as linhas gerais que norteiam o tratamento até hoje dado pela legislação e jurisprudência à teoria da desconsideração, vinculando sua aplicação às hipóteses de fraude à lei e abuso do direito.

Todavia o posicionamento de Serick não é isento de críticas.

Calixto Salomão Filho classifica a tese em questão como unitarista, vez que não faz distinção entre os tipos de pessoas jurídicas em função de sua estrutura interna, e concebe um conceito unitário de desconsideração, “ligado a uma visão unitária da pessoa jurídica como ente dotado de essência pré-jurídica, que se contrapõe e eventualmente se sobrepõe ao valor específico da norma”[5].

O autor acima citado aponta Müller-Freienfels como maior opositor de Serick.

Müller-Freienfels defende um tratamento diferenciado das pessoas jurídicas segundo as diversas funções econômicas que desempenhem, concluindo, nas palavras de Calixto[6], que “a desconsideração não é, portanto, apenas uma reação a comportamentos fraudulentos, mas também uma técnica legislativa ou uma técnica de aplicação de normas (Regelungstecchnik) que permite dar valor diferenciado aos diversos conjuntos normativos”.

Há, ainda, os que entendem que a personificação das sociedades decorrem de um standard contract (nesse sentido Richard Posner), segundo o qual apenas os credores vinculados por relação contratual estariam obrigados a respeitar a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e seus sócios, vez que tal limitação surge como cláusula implícita dos contratos celebrados pela pessoa jurídica.

Caso o credor discordasse dessa cláusula deveria condicionar a concessão do crédito à fiança ou aval dos sócios.

5) Da Aplicação da Disregard Doctrine no Brasil
A aplicação da teoria da desconsideração no Brasil carece de contornos teóricos mais precisos.

Consoante permite-se depreender do acima discutido, não existe apenas uma teoria da desconsideração, sendo o discenso a característica marcante entre os doutos.

Mas nunca é demais lembrar que o escopo da disregard não é a destruição da personalidade jurídica, mas sim seu fortalecimento.

Tanto assim que sua aplicação deverá ser sempre pontual, ou seja, restrita ao ato praticado em fraude à lei ou com abuso de direito, mantendo-se intacta a validade dos atos constitutivos da sociedade.

Não prestigia o direito a utilização indiscriminada da teoria de que ora se cogita sob pena de desincentivar os empreendimentos mercantis, face a insegurança que seria gerada aos sócios das sociedades comerciais.

Apenas configurada a utilização da pessoa jurídica como instrumento para subtração do sócio dos efeitos jurídicos que normalmente adviriam da norma é que a teoria da desconsideração deve ser utilizada.

A teoria da desconsideração foi consagrada na legislação pátria em alguns diplomas legais, os quais não primam pela técnica[7].

O primeiro texto legal que a consagrou foi o Código de Defesa do Consumidor que previu em seu art. 28 o seguinte preceito :

Art. 28 – O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 5º – Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Não é difícil perceber que várias hipóteses previstas pelo artigo acima transcrito não dizem respeito à disregard doctrine.

Conforme mencionado no início do presente trabalho, a atuação do administrador em violação à lei ou ao contrato social gera sua responsabilidade pessoal, ex vi legis, independentemente da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, pois o que se vislumbra é tão-somente uma situação de responsabilidade civil do administrador em função do ato ilícito praticado.

Também no campo da responsabilidade civil se situam os danos causados a terceiros por conta da má administração, conceito, aliás, bastante vago.

No que tange à falência a responsabilidade dos administradores deverá ser apurada, consoante as regras determinadas pela legislação específica de cada tipo societário, devendo ser apurada no processo falimentar, conforme preceitua o art. 6° do Decreto-Lei n° 7.661/45.

Assim sendo, no texto do Código de Defesa do Consumidor apenas o abuso do direito representa possibilidade concreta de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica[8].

De semelhante teor o art. 18 da Lei n° 8.884/94, a Lei Antitruste, valendo para ela as mesmas observações.

Melhor sorte teve a lei n° 9.605/98, que ao tratar dos crimes ambientais, dispôs em seu art. 4°:

“Art. 4° Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente”.

Muito embora o texto da preceito incluso na legislação de defesa do meio ambiente não mencione expressamente o abuso do direito ou a fraude à lei como motivadores da aplicação da teoria da desconsideração, não cometeu o equívoco de confundi-la com hipóteses que com ela não se relacionam, nesse aspecto se diferenciando do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Antitruste.

Permite, ainda, através de uma interpretação coerente com as bases do instituto que consagra, a aplicação da disregard nos moldes mais próximos dos idealizados por seus criadores.

Peca, entretanto, por não definir parâmetros que permitam divisar qual a concepção adotada pelo legislador, haja vista as polêmicas existentes sobre o tema e expostas acima.

6) Conclusão
Em linhas gerais, a teoria da desconsideração vem sendo aplicada lastreada em alguns pressupostos já pacificados na doutrina e jurisprudência.

O primeiro deles é o de que sua aplicação não implica a negação da pessoa jurídica afetada, limita-se a desconsideração a atingir o patrimônio da pessoa física pontualmente em relação aos fatos em que tiver se valido da sociedade comercial para furtar-se das conseqüências legais que normalmente seriam esperadas.

Outro pressuposto é o de que a disregard se presta a coibir hipóteses de fraude à lei e abuso de direito em que a sociedade é o obstáculo à imputação do responsável.

No dizer sempre claro de Fábio Ulhoa Coelho[9], “admite-se a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária para coibir atos aparentemente lícitos. A ilicitude somente se configura quando o ato deixa de ser imputado à pessoa jurídica da sociedade e passa a ser imputado à pessoa física responsável pela manipulação fraudulenta ou abusiva do princípio d autonomia patrimonial.”

A doutrina ainda está longe de estabelecer, com a precisão técnica que a ciência do direito exige, os limites da teoria da desconsideração.

Mas, é certo também, que sua aplicação afigura-se imprescindível para a solução dos conflitos do direito societário moderno, como forma de proteção contra a utilização desvirtuada do instituto da personalidade jurídica.

7) Bibliografia
1- BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 5ª edição. Rio de Janeiro: Renovar. 1999.

2 – COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. Vol. 2. São Paulo: Saraiva. 1999.

3 – GRINOVER, Ada Pellegrini et alli. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1998.

4 – MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol 1. 28ª edição. São Paulo : Saraiva, 1989.

5 – REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. Vol. 1. 22ª edição. São Paulo: saraiva. 1995.

6 – SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros. 1998.

Luiz Cláudio Carvalho de Almeida é Promotor de Justiça e Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Campos.

[1] In “Curso de Direito Comercial”. Vol. 2. São Paulo: Saraiva. 1999. p.38

[2] Op. cit. p.14

[3] REQUIÃO, Rubens. “Curso de Direito Comercial”. Vol. 1. 22ª edição. São Paulo: saraiva. 1995, p. 277.

[4] COELHO, Fábio Ulhoa. “Curso de Direito Comercial”. Vol. 2. São Paulo: Saraiva. 1999. p.36

[5] SALOMÃO FILHO, Calixto. “O Novo Direito Societário”. São Paulo: Malheiros. 1998, p. 79.

[6] Op. cit., p. 86.

[7] O Projeto de Código Civil em trâmite pelo Congresso Nacional consagra a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nos seguintes termos :

Art. 50. A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.

Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.

[8] Fábio Ulhoa Coelho (Op. cit., p. 52) entende que o parágrafo 5° do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor deve ser interpretado não para autorizar a desconsideração frente a simples demonstração de prejuízo por parte do consumidor, o que eqüivaleria a negar a aplicação do princípio da autonomia patrimonial em sede consumerista, mas tão-só em situações de atuação empresarial em descumprimento a impedimentos decorrentes da aplicação de sanções de caráter não pecuniário, como as previstas pelo art. 56, incisos V, VI e VII, do CDC.

[9] Op. cit. , p. 43.

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