Arrependimento Posterior e Extinção da Punibilidade

O art. 16 do Código Penal, nada obstante estar entre nós há 20 (vinte) anos, está a merecer uma reflexão que, após muito hesitar, resolvi trazer ao debate.

Cuida-se do denominado “arrependimento posterior”, introduzido no Código com a Reforma Penal de 1984, para estabelecer que “nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços”[1]. Como se vê, ao tempo em que o Legislador afirma que a reparação do dano antes mesmo da formação da relação processual impulsionada com a denúncia não é motivo suficiente para a extinção da punibilidade do réu, estabelece que, caso se trate de crime cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa e tendo isto ocorrido por ato voluntário do agente, será o mesmo contemplado com redução de sua pena, caso venha a ser condenado.

É uma causa especial de redução de pena[2] que, nada obstante aparentar ser exclusiva dos crimes contra o patrimônio, nada impede que seja aplicada a qualquer outro crime que tenha resultado dano para a vítima, ainda que tal dano não se relacione diretamente com o bem jurídico imediatamente protegido pelo delito em questão. Neste sentido, Waléria Garcelan Loma Garcia[3], levantando a hipótese de suspensão condicional do processo no crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, em virtude da incidência do art. 16, que traria a pena mínima cominada a patamar permissivo da medida, supondo que o agente, voluntariamente, tenha procurado minimizar os danos ocasionados pela infração penal, indenizando a família da vítima, antes do oferecimento da denúncia. Considera-se, como premissa, que, ao se referir aos crimes cometidos “sem violência ou grave ameaça à pessoa”, o dispositivo em comento tem em mente a violência dolosa, não a violência culposa, onde o que se pune não é o desvalor da ação, mas, sim, o desvalor do resultado que, in casu, foi minimizado pelo agente[4].

Não é demais destacar que a denominação “arrependimento posterior”, escolhida para rubrica do dispositivo, é um crasso pleonasmo, posto que, se é arrependimento, só pode ser mesmo posterior, vez que ninguém se arrepende do que ainda não fez[5], mas do que já fez. Pretendeu-se confrontar o dispositivo com aquele denominado “arrependimento eficaz”[6]. Todavia, o preço semântico que se pagou não justificou a heresia. À toda evidência, melhor seria ter denominado o art. 16 de “reparação do dano”, já que é disto que cuida, afinal, o dispositivo.

Fincadas essas prefaciais, é hora de trazer à colação o confronto entre este dispositivo – art. 16 do Código Penal – e aqueles que estabelecem a extinção da punibilidade nos crimes tributários, para saber se há alguma justificativa plausível que explique a diferença de tratamento entre situações absolutamente idênticas ou quiçá, um tratamento bem mais benevolente para uma situação muito mais grave.

A questão é: como contemplar o ladrão de galinhas que cometeu um simples furto apenas com a redução de pena decorrente do arrependimento posterior, enquanto que o sonegador que desvia milhões do Erário é premiado com a extinção da punibilidade, caso pague o tributo devido ou o negocie com o Fisco, antes do recebimento da denúncia?!

Sabe-se que o art. 14 da Lei nº 8.137/90 dispunha que: “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1° a 3° quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.”. Tal dispositivo foi revogado expressamente pela Lei nº 8.383/91[7]. Contudo, a situação de seriedade no trato do recolhimento de tributos durou muito pouco, já que, com a Lei nº 9.249/95, restabeleceu-se a regra da extinção da punibilidade nos crimes tributários, o que produziu efeitos retroativos no que concerne aos delitos cometidos quando ao desabrigo da benesse[8], já que, neste ponto, foi novatio legis in melius, sendo de se aplicar o art. 5º, XL, da Constituição Federal e o art. 2º, parágrafo único, do Código Penal. Tudo voltou a ser como antes: “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.”[9]. Regra idêntica a esta se encontra, hoje, dentro do próprio Código Penal, no art. 168-A, que trata da apropriação indébita previdenciária, acrescentado que foi pela Lei nº 9.983/00: “é extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal”[10].

Muito embora se encontrem na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal arestos decidindo que só o pagamento integral do Tributo sonegado é capaz de acarretar a extinção da punibilidade[11], existem, em outras Cortes, entendimentos que abrandam ainda mais a benesse, ao considerar que o parcelamento da dívida tributária, feito oportunamente, equivale ao pagamento, aproveitando-se da causa extintiva, por ter ocorrido novação da dívida, o que, segundo este entendimento, equivale ao pagamento. No próprio Superior Tribunal de Justiça vêem-se arestos assim decidindo[12], como, de resto, nos Tribunais Regionais Federais.

Ora, na sonegação fiscal o interesse público em jogo é muito maior do que em um simples furto. Enquanto que neste está envolvido o patrimônio particular, naquele outro caso tem-se um dano ao Erário que, em última análise, é patrimônio de todos. Não faz o menor sentido contemplar o ladrão que investe contra o patrimônio de uma única pessoa com uma mera causa especial de redução de pena, ao passo em que ao sonegador que investe contra o patrimônio público se assegura a extinção da punibilidade, ainda que ele não tenha pago todo o tributo sonegado de uma só vez e, sim, parceladamente. Isto sem falar que, não raras vezes, furta-se um bem de determinado valor, não necessariamente alto e, devolvendo-se-o, obtém-se apenas a redução da pena; ao passo em que sonegam-se milhões de reais e, ajustado com o Fisco o parcelamento, sabe-se lá em quantas vezes e se vai ser honrado, assegura-se a extinção da punibilidade. Neste último caso, o desvalor da ação é muito maior – sonegação de milhões de reais – e também o desvalor do resultado o pode ser – pagamento parcial. No primeiro caso, conforme o valor da res furtiva, o desvalor da ação e do resultado pode ser bem menor.

Como se pode continuar convivendo, em pleno século XXI, sob a égide do princípio da igualdade constitucionalmente assegurado – art. 5º, caput, Constituição Federal – com regras tão iníquas, que conduzem a situações paradoxais?!

Nenhum fundamento jurídico justifica a diversidade de tratamento dado pelo Legislador ao furtador e ao sonegador; ao ladrão de galinhas e ao empresário. A única coisa que explica – e ao mesmo tempo causa revolta ao jurista consciente – este paradoxo é o fato de que o ladrão de galinhas será sempre o inimigo, ao passo em que o sonegador pode estar sentado à mesa da gente. É a discriminação econômica em sua forma mais odiosa – reservando a punição para uns menos favorecidos e trazendo a impunidade para os mais abastados.

É hora de dar um basta nesta hipocrisia, devendo o Estado-Juiz dizer o seguinte para o Estado- Legislador:

– Se você, Legislador, quer continuar premiando o sonegador com a extinção da punibilidade, eu, Juiz, nada posso fazer. Tenho que reconhecer a causa extintiva. Todavia, enquanto isto me for imposto, saiba que levarei a benesse também àquele que você excluiu!

Em outras palavras, o que se defende neste artigo é que, a continuar e enquanto continuar vigorando a causa extintiva da punibilidade nos crimes tributários, este mesmo dispositivo deve ser aplicado, por analogia in bonam partem, aos casos de crimes contra o patrimônio cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, em que o dano for reparado antes do oferecimento da denúncia. Ao invés de simplesmente se aplicar a figura do arrependimento posterior, deve-se partir para a extinção da punibilidade do ladrão, com a mesma tranqüilidade com que se ignoram os milhões sonegados em tributos ao Erário, quando se procede, nas mesmas circunstâncias, ao pagamento ou, para uns, ao simples parcelamento do débito. E se deve fazer isto invocando a norma maior, que é a Constituição Federal, em homenagem ao princípio da isonomia, eis que não há a menor razão que justifique a diversidade de tratamento dado pelos textos legais infra-constitucionais.

Não se quer, com isto, amenizar a repressão aos crimes contra o patrimônio; mas tratá-la do mesmo modo como se tratam crimes muito mais graves do que estes, por atingirem o Erário público, que pertence a todos nós. Que fique com o Legislador a decisão acerca da benevolência ou da efetiva repressão para com ladrões e sonegadores[13]. Mas que os operadores do Direito – em especial, o Poder Judiciário – não tolerem mais, enquanto isto, conviver com a hipocrisia.

MARCELO LESSA BASTOS

O autor é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal e de Processo Penal da Faculdade de Direito de Campos, Mestre e Especialista em Direito Público.

[1] BRASIL, Código Penal, art. 16.

[2] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 344.

[3] GARCIA, Waléria Garcelan Loma. Código de Trânsito Brasileiro: o Crime de Homicídio Culposo e a Possibilidade de Suspensão Condicional do Processo. São Paulo: IBCCrim, boletim n° 63, de fevereiro de 1998.

[4] O mesmo raciocínio poderia ser aplicado aos crimes de lesão corporal culposa, quando o autor do fato resolve indenizar voluntariamente a vítima, reparando o dano oriundo de sua infração penal, antes do recebimento da denúncia.

[5] Ao menos não juridicamente falando.

[6] BRASIL, Código Penal, art. 15, segunda parte.

[7] Sancionada, curiosamente, pelo ex-Presidente Fernando Collor.

[8] Entre 1991 (em virtude da Lei nº 8.383/91) e 1995 (Lei nº 9.249/95).

[9] BRASIL, Lei nº 9.249/95, art. 34.

[10] BRASIL, Código Penal, art. 168-A, § 2º.

[11] Vide STF/Informativo nº 136 – “Nos crimes contra a ordem tributária (Lei 8.137/90), a extinção da punibilidade “quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia” (Lei 9.249/95, art. 34) pressupõe a satisfação integral do débito, e não apenas o seu parcelamento. Precedente citado: Inq (QO) 1.028-RS (DJU de 30.8.96); HC 74.754-SP (julgado em 4.3.97, acórdão pendente de publicação, v. Informativo 62). HC 77.010-RS, rel. Min. Néri da Silve ira, 24.11.98”; STF/Informativo nº 117 – “No crime previsto no art. 95, d, da Lei 8.212/91 (“deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida a Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público;”), a extinção da punibilidade “quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia” (Lei 9.249/95, art. 34) pressupõe a satisfação integral do débito. Com esse entendimento, a Turma indeferiu habeas corpus, confirmando acórdão do TRF da 3ª Região que revogara a extinção da punibilidade do paciente decretada pelo juiz de 1º grau, pela ausência de quitação da correção monetária do débito. HC 77.151-SP, rel. Min. Sidney Sanches, 23.6.98”.

[12] Vide STJ/Informativo nº 216 – “Parcelamento. Débito. Extinção da punibilidade. O denunciado, entre 1991 e 1993, na qualidade de ex-presidente de clube atlético, foi acusado da apropriação de contribuições devidas à Previdência Social (art. 95, d, da Lei n. 8.212/1991) e descontadas dos salários dos empregados daquela agremiação. Sucede que, antes da denúncia, houve o parcelamento do referido débito. Esse, porém, por situação alheia ao denunciado, não foi pago totalmente, o que ocasionou a posterior rescisão da transação. Isso posto, prosseguindo o julgamento, a Corte Especial, por maioria, entendeu que, para fins penais, o parcelamento se amolda na expressão “promover o pagamento” constante do art. 34 da Lei n. 9.249/1995 e, como restou comprovado que foi realizado antes da denúncia, ocasionou realmente a extinção da punibilidade. O Min. Gilson Dipp asseverou que esse instituto envolve transação, novação, que altera a natureza da relação jurídica, retirando o conteúdo criminal para atribuir-lhe caráter de ilícito civil lato sensu. Precedentes citados: RHC 11.598-SC, DJ 28/4/2003; HC 9.909-PE, DJ 13/12/1999; REsp 197.365-MG, DJ 6/9/1999; REsp 184.338-SC, DJ 31/5/1999, e REsp 441.866-RS, DJ 23/6/2003. INQ 352-ES, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 4/8/2004.

[13] Que, ontologicamente, não se distinguem, sendo apenas uma questão de classe social!

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