Marcelo Lessa Bastos
Tenho acompanhado bem de perto o triste estágio a que chegou a Polícia Civil de nosso Estado, onde até mesmo uma Delegacia já pôde ser considerada o “quartel-general” do crime organizado, na Região Norte-Noroeste.
Os recentes levantamentos acerca da tortura de presos trazem à baila a necessidade de, cada vez mais, aprimorarem-se os mecanismos de controle, sobretudo externo, das coisas que acontecem no interior das Delegacias, porque é inconcebível que, malgrados os dois anos e meio de vigência da Lei de Tortura, pouquíssimas ações penais se tenham conseguido deflagrar em face dos policiais-torturadores, que, não é de hoje, sabe-se existirem aos montes.
Conforta-me ter podido ser o autor de uma dessas poucas ações penais e de ter conseguido contribuir para que outra tenha sido ajuizada, respectivamente nas Comarcas de Itaperuna e São Fidélis. Deus sabe, porém, à custa de que sacrifícios! – retaliações justamente por parte de quem teria o dever, em tese, de evitar que tais fatos ocorressem; renúncia a momentos de lazer e privacidade; obrigatoriedade de vigilância policial vinte e quatro horas por dia …
Nada paga, contudo, a consciência do dever cumprido e de não ter sido omisso na dura missão de fazer sentar no banco dos réus quem deveria dar o exemplo.
Lembro-me de que, meses atrás, esta coluna publicou dois artigos em que seus ilustres autores expunham seus argumentos jurídicos em torno da questão do Promotor de Justiça realizar, diretamente, as investigações criminais, colhendo as provas de que necessita para o oferecimento da denúncia.
Via de regra, até mesmo por tradição no sistema brasileiro, as investigações são feitas pela Polícia Civil e entregues ao Ministério Público para, analisando-as, oferecer ou não a denúncia, de acordo com o material que lhe fora enviado.
No caso que se enfoca, é mais ou menos assim: a Polícia tortura, depois ela mesma se auto-investiga, esclarece toda a atrocidade (normalmente longe dos holofotes da mídia, ou seja, por pura ideologia, sem qualquer pressão), depois submete suas conclusões ao Ministério Público para, com base no material que lhe foi enviado, decidir se oferece ou não a denúncia, iniciando o processo contra o policial-torturador.
Como dito, quase três anos já se passaram desde que foi sancionada a Lei de tortura. Diuturnamente, fala-se em casos de tortura policial. Pouquíssimas ações penais, desde então, O Ministério Público conseguiu deflagrar a tal respeito, no modelo acima apresentado.
Pergunta-se: a quem interessa brigar pelo monopólio da investigação policial? Que motivos reais se têm por detrás de um frágil arcabouço jurídico?
Decerto a Opinião Pública, ao se recordar de que as duas ações penais a que me referi só foram viabilizadas quando o Promotor resolveu postar-se à frente das investigações, já deve ter sua resposta na ponta da língua …
Não dá para “tapar o sol com a peneira” – em determinadas manifestações do crime organizado, sobretudo quando envolve a própria Polícia, a experiência tem demonstrado só ser possível trazer a Juízo os seus responsáveis quando a apuração se faz pelo Ministério Público, ou seja, de fora para dentro, para o bem da Sociedade Brasileira, que tem encontrado neste órgão estatal seu mais combativo defensor, guardião que é do Estado Democrático de Direito.
Artigo publicado no Jornal O Globo, parte de opinião, no dia 01/10/99.
Marcelo Lessa Bastos é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro e Professor de Direito Penal Especial e de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito de Campos e da FEMPERJ.