Crime organizado como atividade econômica

Ricardo Antônio Lucas Camargo

Pareceria estranho que ao juseconomista interessasse o estudo das organizações criminosas. Entretanto, desde que se tenha em consideração que tais organizações se dedicam tanto a atividades lícitas como ilícitas, e que destas, muitas vezes, vêm as fontes para o custeio daquelas, entende-se perfeitamente onde residiria o interesse. A Lei 9.034, de 1995, consoante José Laurindo de Souza Netto, “dispõe sobre meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas. Define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre crime de quadrilha ou bando, permitindo a ação controlada, consistente no retardamento da interdição policial na ação supostamente praticada por organização criminosa para a formação da prova, com o fornecimento das informações, bem como o acesso a bancos de dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais; a lei prevê que tal procedimento necessita autorização do juiz ainda que o juiz se encarregue pessoalmente da diligência […]. Regula ainda a redução da pena de um a dois terços para a colaboração espontânea do agente que leve ao esclarecimento de infrações penais e de sua autoria. Fixa, também, prazo de 81 dias para o encerramento da instrução criminal, estando o réu preso, e de 120 dias, se estiver solto (redação dada pela Lei 9.303/96); assim como a insuscetibilidade de liberdade provisória e de fiança aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa” [Lavagem de dinheiro. Curitiba: Juruá, 1999, p. 95-96]. Não deve ser confundido com o simples concurso de pessoas, previsto no artigo 29 do Código Penal. Há a associação de mais de três pessoas para a prática de crimes, em caráter permanente, no caso do crime de quadrilha e no crime de associação criminosa, ao passo que no concurso de pessoas a reunião é episódica, voltada ao cometimento de um ou alguns crimes definidos. O crime definido na Lei 9.034/95, ainda, reclama, além dos requisitos do artigo 288 do Código Penal, a presença destes outros, desenvolvidos por LUIZ FLÁVIO GOMES & RAÚL CERVINI: “atividades ilícitas, atividades clandestinas, hierarquia, previsão de lucros, divisão de trabalho, uso da violência, simbiose com o Estado, mercadorias ilícitas, planejamento empresarial, uso de intimidação, venda de serviços ilícitos, clientelismo, lei do silêncio, monopólio pela violência, controle territorial” [Crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.95]. Procurando sintetizar a doutrina, diz Graziela Palhares Torreão Braz: “a expressão em apreço está sendo usada para se referir àquela modalidade de organização criminosa que, atuando de forma empresarial e transnacional na exploração de uma atividade ilícita, impulsionada por uma demanda de mercado, utiliza, para tanto, os modernos meios tecnológicos colocados à nossa disposição, as práticas mercantis usuais e, principalmente, a conivência dos órgãos responsáveis pela sua repressão, os quais restam imobilizados por força da corrupção” [Crime organizado x direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 35-36]. Cezar Roberto Bittencourt, outrossim, alerta para o equívoco que poderia constituir a confusão entre criminalidade de massa e criminalidade organizada: “criminalidade de massa compreende assaltos, invasões de apartamentos, estelionatos, roubos e outros tipos de violência contra os mais fracos e oprimidos. Esta criminalidade afeta diretamente a toda a coletividade, quer como vítimas reais, quer como vítimas potenciais. Os efeitos desta forma de criminalidade são violentos e imediatos: não são apenas econômicos ou físicos, mas atingem o equilíbrio emocional da população e geram uma sensação de insegurança. […] A definição conhecida de criminalidade organizada é extremamente abrangente e vaga, e ao invés de definir um objeto, aponta uma direção. Como sustenta Hassemer: ‘a criminalidade organizada não é apenas uma organização bem feita, não é somente uma organização internacional, mas é, em última análise, a corrupção da legislatura, da magistratura, do Ministério Público, da polícia, ou seja, a paralisação estatal no combate à criminalidade. Nós conseguimos vencer a maria russa, a máfia italiana, a máfia chinesa, mas não conseguimos vencer uma Justiça que esteja paralisada pela criminalidade organizada” [Princípios garantistas e a delinqüência do colarinho branco. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v. 3, n. 11, p. 123-124, jul/set 1995]. A possibilidade da expansão do poder econômico por parte do agente privado em virtude da prática da atividade ilícita, no campo das organizações criminosas, encontra mais um argumento em prol de não se poder admitir, mesmo em tempos de “globalização”, o absolutismo da vontade do particular. Que esta atividade se converte, inclusive, em uma estratégia do particular para obter lucros à margem da lei, é a tese de Carlos Rodolfo Fonseca Tigre Maia: “o sistema nesta fase cria em suas próprias entranhas, mercê de suas inúmeras contradições antagônicas e suas crises cíclicas, parciais e globais, decorrentes da tendência decrescente da taxa de lucro, uma crescente demanda por bens e serviços ilegais – drogas, jogos de azar, pornografia, prostituição, armas etc. -, que conformam um mercado mundial clandestino e próspero, cujas necessidades são supridas pelos capitalistas do crime organizado” [O Estado desorganizado contra o crime organizado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 22]. Com efeito, é aqui que o poder econômico privado reina soberano, sem quaisquer peias heterônomas. É onde os princípios do mais puro liberalismo econômico, paradoxalmente, se verificam: o parâmetro para a atuação do agente econômico é justamente a sua conveniência pessoal. A convivência social se pauta por uma espécie de convenção, pela qual esperamos que o nosso semelhante nos dê tratamento similar ao que lhe damos e que admite a sua remoção caso não se mostre conveniente aos nossos interesses. Foi ela bem exposta pelo saudoso civilista gaúcho João Alberto Leivas Job: “todo estudo da doutrina econômica de Adam Smith deve começar pelos seus trabalhos de ética, pois raramente se observará uma compenetração tão íntima de uma concepção ética do mundo com o campo da economia. […] Para Adam Smith, o móvel comportamental básico do homem é o egoísmo e, nesse sentido, não traz nenhuma originalidade de contribuição para as concepções éticas inglesas, pois Hobbes, com muito mais vigor e talento, bem como Mandeville já tinham destacado o egoísmo como o impulso natural, irredutível e prevalente no homem, de maneira que o estado de beligerância surge como manifestação primária, assim que a coação externa pelo Estado leviatânico é o único meio de conduzir o homem à realização de atos sociais e virtuosos. A expressão homo homini lupus tornou-se mundialmente conhecida desde a filosofia de Hobbes. Para Adam Smith, a moral, como regulação harmoniosa da convivência, não poderá, evidentemente, fundamentar-se no egoísmo, porquanto isto tornaria impossível a própria idéia de sociedade. Embora seja o egoísmo o móvel natural do comportamento individual, o fundamento da ética – que, para Adam Smith, exprime uma relação apenas sociológica – deverá ter sua fundamentação no que ele conceitua como simpatia, que é um modo de nos projetarmos nos outros, de maneira que lhes damos o tratamento que gostaríamos que nos fosse dispensado. A verdade e o valor dos sentimentos dos outros são julgados pela medida dos nossos próprios sentimentos. Para que este individualismo moral não se deixe seduzir pelas preferências de um estrito egoísmo – com que se identificaria então – esta simpatia procura assumir uma natureza intermediária, ou melhor, uma posição honrada, mas nunca de fato imparcial. Hobbes já havia advertido que a simpatia por alguém deixa de existir
quando sentimos que esse alguém contraria nossos interesses. […] Entretanto, o que Adam Smith necessitava era de um fator psicológico individualista que, paradoxalmente, harmonizasse a convivência social, malgrado a legitimidade e o valor natural das tendências egoístas” [Da nulidade da partilha. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 572-573]. Não é, pois, casual que, de acordo com Washington Peluso Albino de Souza, “os lucros ilícitos constituem outra preocupação do legislador e do juiz moderno, e ambos atestam a dificuldade verificada no sentido de se encontrar uma trilha segura na sua definição e repressão” [Lições de Direito Econômico. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 45]. Com efeito, a partir do momento em que as atividades produtivas lícitas se mostram deficitárias, em que o próprio Poder Público se mostra impotente no combate ao crime organizado, já que aquele se encontra estruturado de acordo com a lógica exposta por Adam Smith, segundo o qual lhe incumbiria defender os poucos proprietários contra a inveja dos muitos que nada têm, observa-se que a mais rentável das atividades econômicas passa a ser justamente aquela que não tem quaisquer parâmetros “extra-econômicos” a balizá-la. E, efetivamente, não há como deixar de reconhecer que a sobrevivência da espécie humana depende, fundamentalmente, de recordar que, para além da conveniência econômica, existe uma dimensão transcendente, que em Kant se colocou como a dignidade do ser humano, que não pode nunca ser considerado como um simples meio, mas sempre como um fim em si mesmo.

Ricardo Antônio Lucas Camargo é Doutor em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais

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