Dignidade humana e direito penal

Antonio Carlos Santoro Filho

Juiz de Direito em São Paulo

1. Conceito

O direito penal, seja qual for a sua época e local de vigência, tem sempre por objetivo a preservação do modelo de Estado adotado e, conseqüentemente, dos “bens” que lhe são mais relevantes. O modelo de Estado a se preservar é que implicará um direito penal mais ou menos comprometido com os direitos e liberdades individuais, com os valores socialmente vigentes e com a sua própria legitimação. Trata-se, portanto, de uma criação do Estado, que tem por missão primeira a sua própria preservação.
Também no Estado Democrático de Direito, que adota a dignidade humana como um de seus fundamentos, tem o direito penal a missão de preservá-lo. As suas notas características – garantias, objetivos e princípios -, contudo, têm como ponto de partida o ser humano, transformando o poder em instrumento para a sua garantia e plena realização, e não um fim em si mesmo.
A dignidade humana, entretanto, talvez por sua recente – em parâmetros históricos – positivação constitucional, embora ressaltada a sua relevância na maioria das obras penais modernas, não conta com vasta e minuciosa análise pela doutrina criminal pátria, não se encontrando, também, pacificado o seu conceito.
Chaves Camargo, a par de tomar a dignidade humana como princípio norteador de todo o direito penal, afirma que tal fundamento não possui uma definição, e constitui um “sentimento comum”. Quando violada a dignidade de um ser humano, aflora-se este sentimento na sociedade, circunstância que demonstra ser esta a natureza do princípio constitucional e desnecessária a sua conceituação (1).
Este conceito – ou afirmação de sua desnecessidade – contudo, a nosso ver, peca pela imprecisão.
Isto porque a noção de sentimento não comporta, pela sua própria natureza, análise objetiva, dependendo, para a sua compreensão, de juízos de valor de ordem estritamente subjetiva, sem fundamentação dogmática.
De fato, como aferir, no caso concreto, se há violação à dignidade humana? Com base em que dados pode o intérprete, diante das situações postas, apreciar se se aflorou o sentimento de repulsa a um ato ou fato, por contrariar o princípio do respeito ao ser humano?
A nosso ver, não há como se extrair da sociedade este sentimento para cada hipótese, pois ausentes critérios para a sua apreensão. Assim, perde a dignidade humana a sua função de garantia material, para se tornar um conceito puramente formal e retórico.
Nilo Batista, por sua vez, sustenta que a humanidade das penas – que para o autor nada mais é do que a consagração do princípio da dignidade humana em matéria penal – revela-se pela proporcionalidade e racionalidade das sanções penais, isto é, que impliquem estas “um sentido compatível com o ser humano e suas aspirações” (2).
Em sentido próximo posiciona-se Luiz Luisi, para quem o princípio da humanidade é o postulado reitor do cumprimento da pena privativa de liberdade e consiste no reconhecimento do condenado como pessoa humana e que como tal deve ser tratado. É no não esquecimento de que o réu é pessoa humana que repousa o princípio em questão (3).
Ainda que mais objetivos estes dois conceitos, também não traduzem de forma plena a garantia material que deve representar o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, a proporcionalidade e racionalidade, apesar de encerrarem formas de garantia do indivíduo contra a atuação sancionadora do Estado, não caracterizam a essência da humanidade, mas apenas a conseqüência de um direito penal que tenha a dignidade humana como elemento norteador. Constituem, desse modo, dois dos aspectos exteriores da dignidade humana no sistema punitivo, mas não representam o conteúdo do fundamento constitucional.
Quanto à afirmação de que o princípio da humanidade consiste na regra a ser observada no cumprimento da pena privativa de liberdade, com o reconhecimento do condenado como pessoa humana, que assim deve ser tratado, também não caracteriza, de forma adequada, o princípio em questão.
Em primeiro lugar porque limita a incidência da dignidade humana às penas privativas de liberdade, o que não é correto, pois se trata de princípio sistematizador, que se estende por todo o direito penal.
Mas além disso, o conceito apresentado tem uma natureza apenas formal, na medida em que não responde à questão que lhe é fundamental, pois imprescindível à verificação da existência da ofensa à dignidade humana: como o ser humano deve ser tratado?
A nosso ver, embora não tenha o legislador constitucional positivado uma definição de dignidade humana, o seu conceito extrai-se da própria Constituição Federal, a partir do rol de direitos e garantias fundamentais estabelecidos ao indivíduo.
A possibilidade de exercício desses direitos e garantias individuais sintetiza a condição de ser humano, pois o torna distinto como ser racional único e insubstituível e, portanto, provido de dignidade.
Em sentido próximo, Fábio Konder Comparato (4), lembrando Kant, sustenta que “a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. Daí decorre, como assinalou o filósofo, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível; não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma”.
Logo, por força deste fundamento, possui a pessoa humana a garantia de ver resguardados os seus direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade (C.F., art. 5º, caput), ressalvadas as exceções constitucionais limitadoras, mas jamais absolutamente excludentes, e os demais direitos previstos pela Constituição, tais como, dentre outros, o acesso à saúde e à educação, o convívio familiar, o livre exercício de culto e religião, a inviolabilidade do pensamento e da intimidade e o acesso aos Poderes públicos (direito de petição, de acesso à jurisdição, etc.).
Portanto, com base nestas considerações, podemos elaborar o seguinte conceito de dignidade humana: o complexo de direitos e garantias indispensável ao ser humano para a satisfação de suas múltiplas necessidades básicas, isto é, aquelas que o diferenciam como ser racional e provido de individualidade; a possibilidade de exercício dos direitos fundamentais – constitucionais – para o desenvolvimento pleno do indivíduo como ser humano (5).

2. Dignidade Humana e Pena

Acolhida a dignidade humana como princípio norteador de todo o sistema de direito brasileiro, foi a humanidade especificada e concretizada, em matéria de penas, mediante diversos dispositivos do rol de direitos e garantias individuais da Constituição Federal (art. 5º).
De início estabeleceu o art. 5º, inciso III, da Constituição Federal, que ninguém – inclusive o condenado ou o preso – será submetido a tortura, tratamento desumano ou degradante.
A tortura despoja a pessoa de sua condição de ser humano, pois lhe retira por completo as faculdades de agir e de pensar livremente; sujeita-a ao arbítrio do torturador, o que é incompatível com o conceito de dignidade. Tanto a degradação como a desumanidade do tratamento representam o oposto da noção de humanidade, desrespeitam a característica de ser do indivíduo, transformando-o em mero objeto de fins espúrios.
O art. 5º, inciso XLVII, da Constituição Federal veda, ainda, a instituição de cinco espécies de penas, por não encontrarem consonância com os postulados do Estado Democrático de Direito.
Excluída, assim, a possibilidade de adoção das penas de morte, perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis.
A pena de morte é contrária à dignidade humana porque extermina a sua própria essência, isto é, o ser humano. Sem a pessoa humana, extinta pela morte, não há como se preservar a dignidade.
A pena de morte, conforme observam Zaffaroni e Pierangelli (6), não possui qualquer função de prevenção especial, “não se trata de uma pena, mas de um simples impedimento físico, como amputar uma mão do batedor de carteiras ou erguer um muro que impeça o avanço de pedestres e veículos. Seu tratamento já não é atribuição do direito penal”.
Some-se a isso que a pena de morte, ainda que não dolorosa fisicamente, constitui tortura contra o condenado, na medida em que o submete ao suplício de aguardar pela sua execução.
A prisão perpétua também não se coaduna com o conceito de dignidade, pois retira do ser humano algo que lhe é essencial, a esperança. “Pena excessivamente elevada gera desestímulo e revolta ao condenado; perde a vontade, o alento para um dia, ainda útil, recomeçar a vida em liberdade” (7).
Indigna esta pena, ainda, por não atender a qualquer função preventivo-geral ou especial, tendo, da mesma forma que a pena de morte, como único pressuposto a exclusão do indivíduo da sociedade, em concepção puramente retributiva, vingativa.
Os trabalhos forçados não se subsumem aos postulados de um Estado Democrático de Direito, pois transformam o indivíduo em um escravo da sociedade ou do Estado, retirando-lhe por completo o poder de escolha. O ser humano, quando desprovido das mínimas opções, perde a sua natureza, para se transformar em mero objeto. Sem humanidade não há dignidade e, portanto, esta espécie de pena contraria os princípios constitucionais penais instituídos.
Quando da reforma da Parte Geral de 1984, que introduziu em nosso sistema a pena de prestação de serviços à comunidade, houve aqueles que levantaram dúvidas a respeito de sua constitucionalidade, sob o argumento de que equivaleria à sanção de trabalhos forçados ou à imposição de trabalho escravo.
Estas dúvidas, entretanto, afastadas de forma pacífica pela doutrina e pela jurisprudência, não podem subsistir.
A prestação de serviços à comunidade não se confunde com trabalhos forçados, pois enquanto nesta sanção a pessoa é privada de sua liberdade de ir e vir, da forma mais intensa, aquela tem por fim, exatamente, evitar essa privação, substituindo-a por atividade que não prejudique a vida normal do indivíduo e que traga vantagens à sociedade.
Por fim, no que tange à afirmação de que se estaria criando espécie de trabalho escravo, vale lembrar a precisa explanação de Miguel Reale Jr. (8), que assim afastou, na oportunidade, por completo a ressalva: “Aqueles, que viram uma fonte de trabalho escravo na prestação de serviços à comunidade, esqueceram-se de que essa constitui, antes de mais nada, uma pena, não um emprego. É um ônus, não uma fonte de vencimentos, a não ser que se queira, impensadamente, pelo gosto da crítica, descuidar da dignidade do direito penal.”
O banimento, por sua vez, priva o indivíduo de direitos constitucionalmente garantidos e que não podem ser excluídos por completo, tais como a possibilidade do condenado conviver com sua família, ainda que de forma limitada, e de permanecer em seu país de origem. Desse modo, contraria também a dignidade humana.
Quanto às penas cruéis, desnecessária seria a positivação constitucional dessa vedação, pois se incluem na proibição contida no inciso III, do art. 5º, supracitado. Reportamo-nos, portanto, aos comentários feitos àquele inciso para justificar a contrariedade entre estas espécies de penas e a dignidade do ser humano.
Por fim, o inciso XLIX, do art. 5º, da Constituição Federal, traz a derradeira garantia da aplicação do princípio da dignidade humana em matéria de penas, ao dispor que “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”.
Por respeito à integridade física não se compreende apenas a proibição de agressões contra os presos, mas também o direito de receberem assistência médica, hospitalar e odontológica, e tudo o mais que seja necessário para que a sua condição de preso não afete a sua garantia de acesso à saúde.
Da mesma forma, “integridade moral” não constitui apenas a vedação de humilhações ao preso, mas representa, ainda, o direito que lhe deve ser proporcionado de possuir um mínimo de privacidade e intimidade, de conviver, ainda que com as dificuldades resultantes de sua condição de privado do direito de ir e vir, com a família, de poder receber instrução, de exercer a liberdade de culto e religião, e de todos os outros direitos que não se incluam nas privações diretamente conseqüentes da pena privativa de liberdade imposta.
O princípio da dignidade humana, portanto, ao informar todo o sistema punitivo exige, para a sua concreção, não exclusivamente o afastamento de qualquer sanção cruel ou degradante – expressamente discriminadas e repelidas pela Constituição Federal – , mas, ainda, que o indivíduo seja tratado como ser humano. E, para tanto, a pena imposta deve garantir-lhe o exercício, mesmo que não de forma plena, de seus direitos fundamentais, ser proporcional ao ato praticado, de modo a observar o valor justiça, e respeitar a pessoa humana como ser único e insubstituível em sua racionalidade, portador de características essenciais que o diferenciam dos demais.
Todas as penas – e tratamentos indignos – analisadas neste sintético artigo estão definitivamente proscritas de nosso ordenamento jurídico, pois a sua vedação está inserida entre os direitos e garantias individuais, que, nos termos do art. 60, § 4º, inciso IV, da Constituição Federal, não estão sujeitos a proposta de emenda tendente à sua abolição. Emenda neste sentido, como dispõe o citado dispositivo constitucional, não será objeto de deliberação.
Assim, por atingirem o núcleo irreformável da Constituição, qualquer proposta de emenda que tenha por fim adotar, por exemplo, a pena de morte ou de prisão perpétua, não poderá ser objeto de votação pelo Congresso Nacional, e, se o for, estará eivada de nulidade por ultrapassar os limites concedidos ao poder constituinte derivado.

______________
Notas

(1) Culpabilidade e reprovação penal, p. 29.
(2) Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 100.
(3) Os princípios constitucionais penais, pp. 31-2.
(4) A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 20.
(5) Posicionamento semelhante é adotado por Maurício Antonio Ribeiro Lopes (Direito Penal, Estado e Constituição, p. 184 e ss.). Apesar de conceituar a dignidade humana como a satisfação dos interesses do ser humano, do homem médio, denominada pelo autor, provavelmente inspirado em Kant, de “felicidade”, o que poderia parecer também um conceito meramente formal e subjetivo, não deixa de observar que a dignidade humana pressupõe a possibilidade de exercício dos direitos constitucionais fundamentais, tanto que, no capítulo por ele dedicado à questão, são estudados, de forma minuciosa, os corolários deste fundamento constitucional.
Também no sentido do texto inclina-se Gisele Mendes de Carvalho ao argumentar que “a dignidade humana possui dupla dimensão: uma negativa e outra positiva. A primeira impede que a pessoa humana venha a ser objeto de ofensas e humilhações. Já a dimensão positiva assegura o pleno desenvolvimento de cada ser humano, reconhecendo-se sua autodeterminação, livre de quaisquer interferências ou impedimentos externos” (Aspectos jurídico-penais da eutanásia, p. 114).
(6) Manual de Direito Penal Brasileiro, p. 789.
(7) Luiz Vicente Cernichiaro e Paulo José da Costa Jr. Direito Penal na Constituição, p. 113.
(8) Novos rumos do sistema criminal, p.53.

Antonio Carlos Santoro Filho é Juiz de Direito em São Paulo

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