Alexandre Demetrius Pereira
Mais uma vez temos oportunidade de observar a erronia dos órgãos legislativos do Estado brasileiro, numa iniciativa que, se por um lado esperada pela população como um todo, fez-se nela incluir mais um elemento para deixar ainda mais indefesa a já insegura e cambaleante sociedade em que vivemos.
De fato, caro leitor, refiro-me à recente Lei 9.807/99, recentemente aprovada no Congresso e sancionada pelo Presidente da República.
Sem qualquer pretensão de exaurir o tema em tela, nem mesmo de ser dono da verdade absoluta, acredito seja mister algumas considerações sobre o assunto, que ocupou alguns espaços na mídia recente.
Do objeto da Lei 9.807/99
Referido diploma é dividido em dois capítulos: 1) a proteção à testemunha; 2) a proteção aos réus colaboradores.
No primeiro capítulo trata da proteção à testemunha, iniciativa a qual aplaudimos com todo o empenho, haja vista a real necessidade da medida.
É verdade que a execução dos dispositivos constantes da lei dependerão efetivamente da iniciativa do Poder Executivo, principalmente quanto à sua execução orçamentária.
O ponto mais intrigante de tal diploma é seu segundo capítulo, que trata da proteção ao réu que colabora na persecução criminal. Sobre tal ponto discorreremos em capítulo autônomo.
Da proteção aos criminosos
Diz a lei em seu art. 13 (grifos nossos):
Art. 13 – Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:
I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;
II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.
Art. 14 – O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.
Art. 15 – Serão aplicadas em benefício do colaborador, na prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, considerando ameaça ou coação eventual ou efetiva.
§ 1º – Estando sob prisão temporária, preventiva ou em decorrência de flagrante delito, o colaborador será custodiado em dependência separada dos demais presos.
§ 2º – Durante a instrução criminal, poderá o juiz competente determinar em favor do colaborador qualquer das medidas previstas no art. 8o desta Lei.
§ 3º – No caso de cumprimento da pena em regime fechado, poderá o juiz criminal determinar medidas especiais que proporcionem a segurança do colaborador em relação aos demais apenados.
Analisemos as novas questões postas na lei.
Inicialmente, confere a lei o direito subjetivo ao réu de obter o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade quando, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:
I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa;
II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada;
III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
Assim, temos como requisitos ao perdão judicial: 1) colaboração voluntária e efetiva; 2) resulte da colaboração a identificação dos co-autores, a localização da vítima com sua integridade física preservada ou a recuperação parcial ou total do produto do crime.
É realmente uma situação iníqua, em que o Estado mais uma vez reconhece sua incompetência para investigar e punir a criminalidade.
De fato, não vislumbro outra maneira de entender a proposta contida em tal artigo, senão como a confissão pública e expressa do Estado, que parece dizer: “Não tenho como investigar o crime. Não tenho como punir o criminoso. Se, não obstante, houver o criminoso vontade de delatar seus comparsas, identificando-os ou dizendo onde está a res, receberá a clemência do Estado, ficando impune”.
Imagine o leitor o réu que pratica um crime de roubo, com causas de aumento de pena relativas ao emprego de arma, concurso de agentes e privação da liberdade da vítima, isolada ou alternativamente impostas.
Pois bem. Basta ao réu que praticou o roubo (crime da mais alta gravidade e que vem alarmando os grandes centros urbanos), ficando com parte dos bens roubados, dirigir-se à Delegacia de Polícia e dizer, por exemplo, onde se encontra o depósito das demais coisas roubadas, que, se forem parcialmente recuperadas, ensejarão o perdão judicial do acusado.
Figure-se ainda, no caso citado, que a polícia apreenda os bens no depósito, mas não consiga efetivamente identificar os demais co-autores: teremos bens apreendidos, (parcialmente recuperados), autoria conhecida do roubo quanto ao delator e desconhecida quanto aos demais. Resultado ? Crime sem punição, ante ao perdão judicial a que fará jus o delator.
Ora, é absurdo ao extremo.
Façamos ainda outro exemplo, para que fique bem claro ao leitor o absurdo que resultará na aplicação da lei.
No crime de latrocínio consumado (crime mais severamente apenado do Código Penal Brasileiro) o réu delator diz onde estão os bens roubados que são parcialmente ou até totalmente recuperados, não obstante a vítima violentamente morta. Segundo a literalidade da lei fará jus ao perdão judicial, pois basta que alternativamente se façam presentes uma das condições dos incisos do art. 13 (I – a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; OU II – a localização da vítima com a sua integridade física preservada; OU III – a recuperação total ou parcial do produto do crime.
E que reine a impunidade…
Poderia argumentar o leitor: “Mas não diz o parágrafo único que a concessão do perdão judicial levará em conta a personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso?”
De fato. Vejamos, no entanto tais requisitos genéricos e lacônicos.
Inicialmente, devemos salientar que os requisitos acima elencados já se encontram todos elencados no art. 59 do CP, como circunstâncias judiciais.
Como bem salienta HELENO CLÁUDIO FRAGOSO “As circunstâncias judiciais são aquelas a que se refere o art. 59, CP. Elas não estão especificadas na lei e seu reconhecimento, pela influência que apresentam, aumentando ou diminuindo a gravidade do malefício e sua reprovabilidade, é entregue à apreciação discricionária do Juiz” (Lições de Direito Penal, Ed. Forense, 13a Ed., pg. 323).
Assim sendo, e até mesmo pelo seu laconismo e ausência de definição precisa em lei, o Juiz deverá discricionariamente apreciar sua presença ou ausência no caso concreto.
Desculpem-me os leitores, mas não basta mera apreciação discricionária do juiz.
Isto porque, como se sabe, deixar à apreciação de uma única pessoa um critério que poderá deixar impune criminoso tão perigoso à já indefesa sociedade é critério dos mais temerários. Vemos, aliás, nos dias de hoje, uma escalada de doutrinadores, jurisprudência e demais aplicadores do Direito Penal, de cunho extremamente legalista e absenteísta, que parecem viver de controvérsias doutrinárias surgidas dos novos diplomas legais e de elaboração de teses “pro reu”, ou talvez melhor “pro crimine” ou “anti societate”.
Fazem isso talvez, sem pensar que amanhã poderão ser as próximas vítimas. Tanto é verdade, que poderá o leitor conferir a grande escalada da impunidade que vivemos sob o ponto de vista legislativo, doutrinário e jurisprudencial.
Sob o ponto de vista legislativo, temos a grande inovação da Lei 9.714/98, que “distribuiu penas restritivas de direitos”, chegando-se ao ponto de fazê-lo até ao réu reincidente, resultando no fato de que hoje somente poderá haver o cumprimento de penas privativas de liberdade nos crimes efetivamente mais graves. Nos demais, talvez haja (se houver órgão fiscalizatório) o cumprimento de uma pena restritiva de direitos.
Sob o ponto de vista doutrinário (que se originou de erro legislativo), podemos efetivamente citar a controvérsia gerada sobre a revogação do art. 32 da lei das contravenções penais pelo art. 309 do novo Código Nacional de Trânsito, onde a idéia de revogação da contravenção efetivamente faz com que aquele que dirige sem habilitação confortavelmente, se tiver e forem encontrados bens para garantir a obrigação, pague uma multa ou sofra eventuais outras “sanções administrativas”.
Na área da jurisprudência, outro equívoco gerado pelo descuido do legislador faz com que Tribunais julguem admissível pena restritiva de direitos para traficantes, crime equiparado a hediondo.
Diante de tal quadro, caro leitor, acreditaria, em sã consciência, que a sociedade estaria protegida por critérios lacônicos entregues à apreciação de uma única pessoa?
A impunidade na Lei 9.807/99 não pára por aí.
Diz o art. 14 (grifos nossos):
Art. 14 – O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.
Temos agora causa de diminuição de pena ao delator.
Agora os requisitos são outros: basta colaboração voluntária sem que dela resulte a efetiva localização da vítima, recuperação do produto do crime ou identificação dos co-autores.
Como vê o leitor, a lei exige apenas que haja a colaboração na investigação policial ou na instrução na identificação dos co-autores, localização da vítima e na recuperação total ou parcial do produto do crime, sem que seja necessário que a colaboração tenha qualquer resultado.
Vê-se, pois, que bastará ao criminoso colaborar.
E o que se entenderia por colaborar?
Segundo a interpretação gramatical, considera-se como colaborar, na lição constante do DICIONÁRIO AURÉLIO (Ed. Nova Fronteira, versão Cd-rom):
Verbete: colaborar [Do lat. collaborare.]
V. t. i.
1 – Prestar colaboração; trabalhar na mesma obra; cooperar: Todos colaboramos na campanha.
2 – Escrever ou prestar colaboração (3 e 4): “Eu não encontrei na redação do Jornal do Porto, enquanto colaborei naquela folha, senão cavalheiros” (Ramalho Ortigão, Primeiras Prosas, p. 44); Colaborou no Novo Dicionário desde o início da obra.
3. Concorrer, contribuir: A luz e a sombra colaboram para a grande expressividade dos quadros de Rembrandt.
V. int.
4. Prestar colaboração; cooperar: Cumpre que toda a equipe saiba colaborar.
5. Auxiliar ou ajudar a fazer alguma coisa.
Assim, caso o criminoso tenha auxiliado (de qualquer forma, pois a lei não a restringe) ou ajudado a polícia ou o Poder Judiciário na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida ou na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, (caso não tenha direito ao perdão judicial que lhe será mais benéfico) fará jus à redução da pena.
Vejamos o montante da redução, comparando-a com outras existentes na lei penal pátria.
Como diz a lei, a redução será de um a dois terços.
Ora, a redução é a mesma existente na tentativa (CP, art. 14, II) e no arrependimento posterior (CP, art. 16).
Logo teremos: se o criminoso decide nos crimes sem violência ou ameaça à pessoa restituir o produto do crime ou reparar o dano, terá redução de um a dois terços. Se auxiliar de qualquer forma os órgãos do Estado a recuperar o produto do crime, ainda que não tenham sucesso, terá a mesma redução.
Se o criminoso não passa da esfera da tentativa, terá redução de um a dois terços. Se auxiliar de qualquer forma os órgãos do Estado a recuperar o produto do crime, ainda que não tenham sucesso, terá a mesma redução.
Temos então que a delação terá o mesmo efeito do crime tentado ou do arrependimento posterior, o que realmente não corresponde ao mesmo desvalor social das condutas de cada caso.
Para que fique claro ao leitor, citemos novamente os exemplos dados acima.
Inicialmente o réu que pratica um crime de roubo, com causas de aumento de pena relativas ao emprego de arma, concurso de agentes e privação da liberdade da vítima, isolada ou alternativamente impostas.
Bastará agora ao réu dirigir-se à Delegacia de Polícia ou dizer em juízo onde estão as coisas roubadas, quem são os co-autores ou ainda onde se encontra a vítima viva, que, ainda que não se obtenha sucesso na empreitada estatal, fará jus a benefício semelhante ao crime tentado ou com arrependimento posterior.
Ainda, no crime de latrocínio consumado (crime mais severamente apenado do Código Penal Brasileiro) o réu delator diz onde estão os bens roubados que não são parcialmente ou totalmente recuperados, não obstante a vítima violentamente morta. Segundo a literalidade da lei fará jus à redução de pena, pois basta que alternativamente se façam presentes uma das condições dos incisos do art. 14 (colaboração com a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; OU a localização da vítima viva; OU a recuperação total ou parcial do produto do crime).
Veja bem o leitor:
O réu que cometeu roubo terá pena variante de: 3 anos 6 meses e 20 dias a 1 ano 9 meses e 10 dias (já terá direito até ao “sursis”)
E viva a impunidade !!!!
Mas, caro amigo leitor, uma coisa há de se reconhecer na lei que se comenta: logo que for conhecida no ramo criminoso, teremos uma nação de colaboradores…
Revista Consultor Jurídico, 28 de julho de 1999.
Alexandre Demetrius Pereira
promotor de Justiça em São Paulo.