No exame da questão jurígena advinda das múltiplas agressões à liberdade de locomoção, circulação e à integridade física das pessoas, cumpre, de início, enfatizar as sábias lições do jurisconsulto Edmond Picard, – professor da Universidade Nova de Bruxellas, que nos idos de 1942, lecionava: “… O Direito, organismo de deveres, é uma província moral, concebida no sentido mais largo da palavra. Os deveres jurídicos, multiplicando-se pelo advento de novas categorias de necessidades sociais reais, como: o vapor, o telégrafo, e até o humilde velocípede, suscitando legislações especiais, vão diminuindo em cada categoria à medida que a humanidade progride. A própria coação vai suavizando-se, como testemunham as leis penais cada vez menos cruéis, senão cada vez menos abundantes em infrações puníveis. Na sua história da baronia de Castle Combe, Strope assinala que na Idade Média, punia-se o delito de passeio indiscreto às paredes donde se podia ouvir o que se passava do outro lado, e o caráter rabujento nas mulheres. A lei sálica estabelecia na sua tarifa penal do Werhgeld, uma engenhosa hierarquia da gravidade dos contatos com as mulheres, desde a ponta dos dedos até os seios, passando pelo pulso, antebraço e cotovelo. Tudo isto desapareceu, tudo isto nos parece extravagante .
Talvez, um dia, os deveres jurídicos venham a realizar-se todos sem coação, unicamente pela energia de consciência; será a Integração do Direito, a sua consubstanciação, a sua instauração, a sua solidificação salutar nas almas. A força já não existirá senão nominalmente, tal como o gladio pendurado que nunca se tira, e talvez venha a desaparecer. A Moral então terá reabsorvido o Direito por um retreinamento constante da superfície jurídica, por uma eliminação gradual dos deveres de coerção e, finalmente, por um desaparecimento. O papel que arde é o símbolo desse fenômeno. Podemos entrever uma época em que as coisas antijurídicas já não poderão ser realizadas por um homem de bom senso, senão cortando-lhe a língua ou tirando-lhe os olhos. A obediência material à Lei não será já um cálculo ou um esforço porque a lei terá a adesão das almas. O Direito trabalha na sua própria destruição. Pouco a pouco transforma as suas prescrições em costumes, depois em livre obediência, e, finalmente, em Instinto. É então espontâneo e reflexo. Já não há necessidade de Autoridade, realiza a Anarquia, no sentido nobre e puro desta terrível palavra ainda em estado selvagem.
Mas quantos dias, quantas noites veladas ou firmamentais verá passar ainda o Globo antes que os cérebros humanos, essas frágeis flores de carne, sejam capazes de realizar semelhantes beleza …” ( obra o Direito Puro, editora Ibero-Americana, página 182).
A metafísica emprega pelo eminente jurisconsulto, está à revelar, uma plena harmonia natural entre a autoridade e a liberdade, ideais que se encontram na maioria das legislações consagradas formalmente, mas, de habitualidade não muito frequente, como é o caso brasileiro, gerando a dicotomia entre o formal e o ideal de praticidade.
A Constituição Federal, trilha de forma evidenciadora a liberdade em seu sentido positivo e negativo, compreendida como imposições que exigem soluções práticas do Poder Público e limitações as tentativas de violações.
Recentemente, a imprensa, cumprindo o seu mister de informar fatos reais do cotidiano das pessoas, além de servir de bússola para a formatação da opinião pública, retrata no conteúdo dessas informações uma verdade que sem sensacionalismo, merece considerável atenção das autoridades públicas.
A questão reside nos diversos ataques praticados por cães, especialmente da raças rottweiler, pit-bull, fila e mastim napolitano, que seriam consequências oriundas do resultado genético obtido com a finalidade específica de produzir animais de guarda e combate e a forma pela qual são diariamente instigados por seus donos
Na hipótese da raça pit-bull, a questão fica extremamente agravada, pois, esse cão costuma vencer pela resistência, até a morte, reagindo e atacando aleatoriamente, tendo ampla facilidade de se desvencilhar de focinheiras pela persistência. O seu peso varia entre 23Kg a 36Kg, possuindo ainda um focinho quadrado e longo, crânio largo e altura entre 41.5cm a 56 cm.
Alguns estudos materializados em projetos de lei municipal estão sendo desenvolvidos, cujas medidas se destinam a erradicar a raça pelos métodos da castração e proibição de venda, aplicando-se elevada multa nas hipóteses de descumprimento, além da apreensão do animal.
Sugere-se ainda, que apenas maiores de dezoito anos possam conduzir esses cães ferozes pelas vias públicas, bem como sejam identificados.
De fato, as restrições em exame, trazem em seu cotejo ampla constitucionalidade e legalidade, protegendo a liberdade de locomoção e circulação das pessoas, exercendo o devido poder de polícia em sentido amplo e preservando a incolumidade pública de forma preventiva.
Na verdade além do aspecto genético, há de se considerar a forma pela qual são domesticados e criados esses animais ferozes, muitas das vezes instigados em rigoroso treinamento para atacar outros animais e pessoas, gerando uma conduta de perigo social, cuja autoria mediata recaia sobre o agente ativo – proprietário-.
A reportagem da Revista Veja, de 18 de novembro de 1998, página 119, afirma que no Estado de São Paulo, mais de cem mil pessoas foram atacadas em 1997, salientando um vigoroso caso de ataque contra a vítima Edésia dos Santos, numa manhã de domingo, que teria recebido cerca de trinta mordidas, numa verdadeira carnificina, causando-lhe à morte por hemorragia.
No Estado do Rio de Janeiro, na orla marítima das praias de Copacabana, Ipanema, Leblon, Camboinhas, Barra da Tijuca, Recreio dos Bandeirantes, Aterro do Flamengo e outras, são diversos os registros de ocorrência nas delegacias policiais locais noticiando os ataques caninos.
Na verdade, essa nova forma de criminalidade é evidenciada pela falta de controle na criação, treinamento, adestramento e guarda desses animais, havendo latente omissão do Poder Público na elaboração de norma positiva que trate especificamente do assunto, pormenorizando os aspectos penais, civis e administrativos.
A contravenção penal do artigo 31 do Decreto-lei n° 3.688, de 3 de outubro de 1941, disciplina o problema penal referente a questão, com uma tipicidade incompleta, vaga e extremamente carente de adequação proporcional: “Deixar em liberdade, confiar à guarda de pessoa inexperiente, ou não guardar com a devida cautela animal perigoso: Pena- prisão simples, de 10 (dez) dias a 2(dois) meses, ou multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem: a) na via pública, abandona animal de tiro, carga ou corrida, ou confia a pessoa inexperiente; b.) excita ou irrita animal, expondo a perigo a segurança alheia; c.) conduz animal, na via pública, pondo em perigo a segurança alheia.”
A Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, ao dispor sobre as sanções penais derivadas de condutas e atividades lesivas ambientais, disciplinou no artigo 22 o delito de maus-tratos e os atos de abuso concernentes aos animais silvestres, domésticos e domesticados, (sujeitos passivos) sejam eles nativos ou exóticos, estipulando uma sanção penal variável entre três meses e um ano, cumulada com a multa na forma da lei, em consonância ao imperativo constitucional disposto na tutela protetiva do inciso VII, do artigo 225 da Constituição Federal, que impede a crueldade com os animais.
Com o advento da Lei n° 9.099, de 26 de setembro de 1995, dispondo sobre os Juizados Especiais Criminais, aplica-se ao infrator vários benefícios, tais como: conciliação, transação penal e suspensão condicional do processo, e, à toda evidência, resta fragilizada a salvaguarda positiva da segurança pessoal, o direito de segurança em sentido amplo do termo, que deve ser tutelado como obrigação positiva exigível pelas vias legais cabíveis.
A penalização da conduta, poderá ser tipificada, quando materializado danos a incolumidade física ou a saúde do homem nas molduras dos artigos 129, parágrafo sexto (lesão corporal culposa) ou 121, parágrafo terceiro ( homicídio culposo), ambos os dispositivos do Código Penal, sendo ainda pertinente na análise dessas tipicidades a suspensão condicional do processo, na forma do artigo 89 da Lei n° 9.099/95. Como se nota, as tipificações penais da conduta se isolam da realidade hodierna, na medida em que são absolutamente inexistentes no plano pródromo da combinação genética para a formatação das raças, criação , adestramento, venda e transporte, quando no direito alienígena, v.g., na Inglaterra, a posse e guarda de uma cão dessa natureza, se assemelha a de uma arma de fogo.
Inadequado seria esquecer também, que na interpretação da recente Lei n° 9.714, de 25.XI.98, foram substancialmente alteradas as penas restritivas de direito, ampliando-se o rol existente com a diminuição da aplicação da pena privativa de liberdade – despenalização -, valendo sempre trazer à baila as sábias lições da doutrina hodierna: ” A Lei n° 9.714/98, que entrou em vigor no dia 26 de novembro de 1998, acaba de ampliar a possibilidade de aplicação das penas substitutivas, logo, em princípio, é mais favorável. É uma lei que se insere na linha político-criminal de despenalização, pressupondo-se que a prisão só deve recair em casos de extrema gravidade. A prisão, depois desse diploma legal, foi colocada no seu devido lugar: é medida de extrema ratio . Tudo que se puder fazer para evitá-la deve ser feito ( Penas, Medidas Alternativas à Prisão, editora Revista dos Tribunais, vol.1. Luiz Flávio Gomes).
Como feras desenjauladas, os cães são instados por seus altrozes e intransigentes proprietários para o combate, residindo na prova desse treinamento direcionado a tipicidade acima referida em sua modalidade dolosa, mas, essa é uma difícil tarefa na investigação penal.
Ainda no abrigo dessas considerações, entendemos que é impostergável o controle do registro por órgão oficial dos proprietários desses animais, formando-se um cadastro com circunscrição em todo o território nacional, identificando os animais, suas características, transferências nas vendas, e todas as anfractuosidades pertinentes ao tema, devendo ser concedida licença na forma da lei para qualquer modalidade de guarda e locomoção em vias e logradouros públicos.
Medidas mais essenciais de conservação da segurança social, como a garantia efetiva da liberdade de circulação e locomoção, e de ” ir, vir, ficar e permanecer”, estão à exigir urgentemente, uma prestação positiva pelo legislador e administrador público, cultivando as mútuas relações sociais sem praticar qualquer ato discriminatório em detrimento de pessoas ou grupos de criadores e proprietários desses animais, tutelando, através do poder de polícia essa atividade que está atingindo a incolumidade pública e a integridade física daquelas pessoas que não são responsáveis pelo poder de escolha no livre-arbítrio de terem um cão feroz.
Marcos Ramayana Blum de Moraes
Promotor de Justiça