Por: Marcelo José Araújo *
O Código de Trânsito Brasileiro continua criando polêmicas jurídicas, e um dos motivos principais é que essa Lei está longe de ser uma mera cartilha de perguntas e respostas, costumeiramente orientada e aplicada por autoridades de trânsito que ocupam cargos políticos, e agentes dessas autoridades instruídos a granel por pessoas nem sempre íntimos do conhecimento jurídico. O tema que abordaremos é um exemplo típico da importância desse novo enfoque, no qual faremos um comparativo entre essa análise jurídica e aquilo que está sendo vendido ao cidadão comum como verdade. A imprensa tornou notória a discussão, e esperamos que isso tenha despertado o interesse de juristas para discutir a procedência de penalidades irregularmente aplicadas.
O Código de Trânsito Brasileiro, Lei 9503 de 23/09/97 , (D.O.U. de 24/09/97) entrou em vigor no dia 22 de janeiro de 1998, ou seja, 120 dias após sua publicação. Aliás, a data correta da entrada em vigor do Código também foi uma polêmica, porém desde 04/10/97 já fazíamos a primeira publicação no “Jornal do Estado”, no Paraná, alertando que a informação dada pelo Governo Federal de que a Lei entraria em vigor no dia 23/01/98 estava errada. Isso porque o Código foi publicado no dia 24/09/97 e 22/01/98 é o centésimo vigésimo dia após sua publicação. Poderia haver alguma dúvida quanto à data porque no dia 25/09/97 houve uma retificação nos quatro incisos do parágrafo 4º do Art. 13, porém essa retificação não se constituiu em nova publicação, não iniciando nova contagem.
Explicado que a data de entrada em vigor foi realmente o dia 22/01/98, verificamos que até essa data a redação do Art. 281,parágrafo único, inc. II determinava que se no prazo de 60 (sessenta) dias não fosse expedida a notificação da autuação, ela se tornaria insubsistente e seria arquivada. Durante todo o período de vacatio legis foi essa a redação do Art. 281, parágrafo único, inc. II do CTB. Enquanto isso o Art. 316 do mesmo CTB determinava que tal prazo para notificação somente passaria a vigorar 240 dias da publicação da Lei, ou seja, no dia 22/05/98.
Ocorre que no dia 22/01/98, dia da entrada em vigor do CTB, a Lei 9602 de 21 de janeiro de 1998 foi publicada, passando a vigorar no próprio dia 22/01/98, promovendo alterações na redação original do CTB. No próprio dia da entrada em vigor da Lei, outra promoveu alterações em sua redação, entre elas o Art. 281,parágrafo único inc. II , que teve o prazo de 60 dias alterado para 30 dias, para expedição da notificação. Portanto, o prazo de 60 dias chegou a ter existência, mas nunca chegou a vigorar. De qualquer forma ele só passaria a ter eficácia em 22/05/98 por disposição do Art. 316 já mencionado.
O Art. 281, parágrafo único, inc. II do CTB teve o prazo modificado, mas o Art. 316 permaneceu inalterado, consequentemente permaneceu o prazo de 240 dias da publicação da Lei 9503, ou seja, 22/05/98, para eficácia da regra. Se a modificação fosse antes da Lei entrar em vigor, contar-se-ia novo prazo até para o CTB começar a vigorar como um todo, já que diversos dispositivos foram alterados pela Lei 9602. Como as alterações foram após (concomitante) à entrada em vigor modificou-se apenas a redação dos artigos, permanecendo os prazos originalmente estabelecidos.
Durante o período compreendido entre o dia 22/01/98 e 21/05/98 não havia prazo definido para expedição da notificação, já que o Art. 281, inc. II ainda não tinha eficácia. Poder-se-ia alegar que nesse período o prazo seria o da Resolução 812/96 do Contran, entendimento que discordamos.
A Resolução 812/96 do Contran – Conselho Nacional de Trânsito estabeleceu regras prescricionais de infrações de trânsito determinando prazos para notificação de um ano para multas dos Grupos 3 e 4, dois anos para as do Grupo 2, três anos para as do Grupo 1, quatro anos para as que implicassem na apreensão da CNH e cinco para as que previssem a cassação da CNH. A pretensão executória (fazer valer a penalidade) prescreveria em um ano para as advertências, em três para as multas, em quatro para apreensões de CNH e em cinco para as cassações.
Percebam que essa Resolução estabeleceu prazos tanto para ciênca da autuação quanto para sua execução. Entendemos que a parte relativa à ciência (notificação) não se aplicou no período de 22/01/98 a 21/05/98 porque o CTB não dividiu as multas em grupos (1,2,3 e 4) e sim em gravíssimas, graves, médias e leves, sendo, portanto, incompatíveis. Já a pretensão executória é aplicável a Resolução 812/96, já que advertência, multa, apreensão (suspensão do direito de dirigir) e cassação são penalidades do CTB.
A regra do Art. 281, inc. II do parágrafo único, do CTB, portanto, começou a valer a partir de 22/05/98. Ocorre que essa é uma regra de direito processual (estando inclusive no Capítulo relativo ao Processo Administrativo) e todos nós profissionais de Direito (incluídos os estudantes) sabemos que regras processuais trazem seus efeitos sobre os processos em curso, diferentemente das regras de direito material.
Ora, é simples concluir que as autuações não notificadas até 21/05/98 ficaram sujeitas à regra a partir de 22/05/98. Significa que se alguém foi autuado em 01/03/98 e notificado até 21/05/98 o auto de infração não será arquivado, pois foi válida. Porém, se foi feita no dia seguinte para diante, já havia sujeição à regra, pois a fase que se encontrava o processo era de autuação sem notificação. Essa foi a situação que ocorreu em diversos Estados no país, e que deveriam ser anuladas de ofício por disposição expressa da Lei.
As autoridades tentam defender-se alegando que a regra somente valeria para as autuações feitas a partir de 22/05/98, a exemplo da pontuação que só vale para autuações a partir dessa data. A justificativa é frágil. A pontuação só começou a valer a partir de 22/05/98 porque foi nessa data que se estabeleceu que a somatória dos pontos seria no prazo de 12 meses. Como se trata de regra de direito material (penalidade), só começa a valer para os fatos ocorridos a partir dela, pois até essa data não havia prazo de somatória definido. Já a notificação é regra processual, portanto atingiu os processos em curso.
Outra justificativa é de que o prazo é para “expedição da notificação”, e desde que a autoridade a tenha expedido até 21/05/98 independeria o tempo de demora na notificação. Esse argumento também não é lógico. Primeiro porque não há sentido em se considerar a data que a notificação deixe o órgão de trânsito, pois o processo é formado de diversas fases, desde a autuação até a entrega da notificação. Não adianta a autoridade expedir para o correio rapidamente se esse demora excessivamente. Não adianta o correio expedir rapidamente se o carteiro demorar para entregá-la. Somente podemos concluir que o prazo deva ser o da entrega no endereço que se encontra registrado o veículo, ou seja, da notificação e não da expedição, senão não haverá sentido na regra e a sua finalidade estará prejudicada. Outro argumento a favor de nosso entendimento é o próprio Art. 316 do CTB, que fala que o prazo para NOTIFICAÇÃO (e não da expedição ) do Art. 281, inc. II do parágrafo único…
As autoridades lutam para manter as penalidades que teriam sido prejudicadas pela aplicação da regra. Infelizmente o judiciário terá que ser provocado para dizer o óbvio. Esperemos que o judiciário esteja preparado para analisar questões óbvias como essa e outras de complexidade maior e que as autoridades administrativas insistem em interpretar da forma que melhor lhes convém.