I – Introdução
Através da Mensagem nº 397/97, o Chefe do Executivo Federal encaminhou à Câmara dos Deputados Projeto de Lei propondo alterações na Lei nº 4.898/65 (Lei do Abuso de Autoridade), sob o pretenso fundamento de ajustá-la à Constituição e a tratados internacionais subscritos pelo Brasil, em especial a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
A proposta de mudança legislativa tem enorme repercussão prática sobre a atuação institucional do Ministério Público, posto que, uma vez aprovada, importará no esvaziamento das garantias e prerrogativas asseguradas à Instituição pela Constituição da República. No presente estudo, onde serão comentados alguns dos novos delitos insertos no PL nº 2.961/97, apontaremos a existência de várias inconstitucionalidades que o tornam um natimorto.
II – Análise da figura típica prevista na alínea “j”
“instaurar inquérito civil, policial ou administrativo ou propor ação de natureza civil, criminal ou de improbidade, com propósito de perseguição, ou para satisfazer simples sentimento pessoal ou convicção política”.
A previsão tem como destinatários imediatos os membros do Ministério Público, eis que a deflagração dos procedimentos supracitados está compreendida entre as atribuições institucionais que lhes foram conferidas expressamente pelo Texto Magno (art. 129, I, III, VI e VIII). Excepcionalmente, poderão ser sujeito ativo do crime o magistrado – quando requisitar a instauração do inquérito policial – e o delegado de polícia, desde que a instauração do procedimento investigatório não decorra de requisição do Ministério Público ou da Autoridade Judiciária, hipótese em que, como é sabido, por consistir numa ordem, não pode ser desatendida, salvo, evidentemente, a flagrante ilegalidade da requisição.
Na verdade, sob o pretexto de criar uma outra figura típica de abuso de autoridade, o Projeto prevê uma nova modalidade de delito de prevaricação (art. 319 do Código Penal), de natureza comissiva, tendo como sujeito ativo, via de regra, o membro do Ministério Público. O especial fim de agir (“com propósito de perseguição, ou para satisfazer simples sentimento pessoal ou convicção política”), à evidência que está inserido na cláusula genérica da prevaricação (“com o de fim de satisfazer sentimento ou interesse pessoal”), mais precisamente na expressão “sentimento pessoal”, visto que “perseguição ou convicção política” são estados anímicos, afetivos, decorrentes de uma “paixão ou emoção (afeto, simpatia, amor, ódio, desejo de vingança, servilismo, rivalidade política, temor dos poderosos, etc.)”, como bem observado pelo escólio do Prof. Paulo José da Costa Jr. (Dos Crimes Contra a Administração Pública, ed. Malheiros, 1997, p. 140).
É óbvio que essa especificação teve por escopo impregnar de motivação político-partidária a atuação do Ministério Público, possibilitando sempre qualificar a instauração de um inquérito civil público ou o oferecimento de uma denúncia, por exemplo, como fruto de “perseguição” ou “convicção política” do órgão ministerial. Tal dispositivo traz à lembrança um período recente e triste da história brasileira, onde visualizava-se a existência de interesse político em qualquer ação de exercício da cidadania que questionasse a atuação dos poderes constituídos. Já se pode antever, na eventualidade de ser aprovado o Projeto, uma enxurrada de representações de investigados – incluindo diretores de órgãos públicos ou privados que tenham seus atos lesivos apurados em procedimentos cíveis ou criminais – contra membros do Ministério Público, supostamente amparadas na indigitada conotação política da atuação ministerial, como se a formulação de “opinião política” não fosse um ato inerente ao cotidiano de todo cidadão.(1)
Vê-se, pois, que, ao agasalhar nova espécie de crime de prevaricação, o Projeto vulnera a Carta Magna, sendo, via de conseqüência, inconstitucional. Não em razão do representante do Ministério Público ter sido eleito como agente principal do crime, já que o tipo penal do art. 319 do Código Penal aplica-se indistintamente a qualquer funcionário público, para usarmos a linguagem legal, seja magistrado, delegado de polícia, defensor público, procurador estadual. Basta que esses servidores públicos ajam com o intuito de “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfaz interesse ou sentimento pessoal”.
A primeira inconstitucionalidade exsurge da manifesta ofensa ao princípio da reserva legal (art. 5º, XXXIX), face à opção por uma formulação típica aberta, indeterminada, vaga e imprecisa, que permite o preenchimento do conteúdo da ação criminosa ao sabor da conveniência do intérprete ou aplicador da norma, resultando numa intolerável insegurança jurídica, bem ao gosto dos regimes de exceção. A falta de taxatividade e certeza do tipo penal poderá ocasionar a conseqüência supramencionada, tornando possível o enquadramento de toda a ação ministerial – e dos outros agentes públicos alcançados pela disposição – sob o manto da locução “perseguição ou convicção política”.
O PL nº 2.961/97 apresenta-se inconstitucional, igualmente, ao tolher, manietar, coarctar a atuação do Ministério Público no desempenho das atribuições naturais que lhe foram cometidas pelo constituinte originário, visando a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127). Uma simples leitura dos incisos do art. 129 da Carta Política é suficiente para deixar claro que a restrição imposta ao exercício da atividade-fim do Ministério Público de “instaurar inquérito civil, policial ou administrativo ou propor ação de natureza civil, criminal ou de improbidade” não encontra amparo na Lex Maxima, violando, a um só tempo, os princípios da proporcionalidade (ou razoabilidade) e da independência (autonomia) funcional da Instituição (§ 1º do art. 127).
Uma lei não é inconstitucional apenas quando contraria direta e imediatamente a Constituição (contraste formal ou material), juízo positivo resultante do mero exame superficial do seu texto. Muitas vezes, contudo, a inconstitucionalidade somente é detectada a partir de uma investigação mais aprofundada do intérprete, através “da verificação da compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins”, consoante argutamente pontificado pelo Prof. Luís Roberto Barroso (Interpretação e Aplicação da Constituição”, ed. Saraiva, 1996, p. 200). É dentro desse contexto que está inserido o princípio da proporcionalidade, já reconhecido pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como princípio limitador da atividade legislativa restritiva (ou aniquiladora) de direitos fundamentais ou institucionais assegurados pela Constituição (cf. Suzana de Toledo Barros, O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, ed. Brasília Jurídica, 1996).
O Projeto causa lesão irreparável ao postulado da proporcionalidade, vez que adota cargas coativas desmedidas, desproporcionais, desarrazoadas, inadequadas e incompatíveis com o fim espúrio visado pelo Poder Executivo ao encaminhar a proposta ao Poder Legislativo – não expressamente declinado na Mensagem nº 397/97, embora seja evidente que pretendeu impedir o crescente questionamento judicial dos atos do poder público -, esvaziando injustificadamente a atuação do Ministério Público, na medida em que sujeita os seus membros a constante ameaça da instauração de um processo penal condenatório, em decorrência do exercício regular de um dever funcional.
Decorre, portanto, que a proposta governamental coloca uma espada de Dâmocles sobre as cabeças dos membros da Instituição, impedindo que exerçam, na sua plenitude, as prerrogativas e os poderes que lhes foram conferidos pelo texto constitucional, necessários e indispensáveis para o fiel desempenho da sua atividade fiscalizatória dos poderes constituídos, eis que não pode o membro do Ministério Público quedar-se intimidado pelo receio de represálias por contrariar interesses subalternos. Destituir o Ministério Público de garantias mínimas para o cumprimento da sua destinação constitucional significa desconhecer, por outro lado, um dos princípios informadores da atuação ministerial (cível e criminal), qual seja, o princípio da obrigatoriedade, que impõe a intervenção do órgão do Ministério Público tão logo provocado pelo interessado, ou quando tome conhecimento pessoal de fatos que demandem apuração imediata.
Nessa linha de raciocínio, salta aos olhos, mais uma vez, a inconstitucionalidade da proposta legislativa, por tornar letra morta a garantia da independência e autonomia do Ministério Público, além de não guardar adequação com o princípio da razoabilidade, haja vista a ilegitimidade dos fins visados com a edição da lei, repita-se, impedir que o parquet investigue os atos lesivos do poder público, sobretudo na esfera cível, levando a controvérsia ao Poder Judiciário, como determinado no inciso XXXV do art. 5º da Constituição.
III – Análise do tipo penal descrito na alínea “l”
“manifestar o magistrado, o membro do Ministério Público, o membro do Tribunal de Contas, a autoridade policial ou a autoridade administrativa, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre investigação, inquérito ou processo, ou revelar ou permitir que cheguem ao conhecimento de terceiros fatos ou informação de que tenha ciência em razão do cargo e que violem o interesse público e o sigilo legal, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”.
O dispositivo ora enfocado foi mais genérico, porque não visou, precipuamente, o membro do Ministério Público, dirigindo-se, também, a outros agentes políticos (magistrados, membros do Tribunal de Contas) e administrativos (autoridades policiais, autoridades administrativas). Estabelece duas figuras típicas autônomas e independentes entre si, pois, caso contrário, bastaria a previsão constante da segunda parte do texto, destinada às matérias cobertas pelo segredo de justiça.
A primeira parte do tipo penal veda que esses agentes públicos manifestem “opinião sobre investigação, inquérito ou processo”, englobando em sua tipicidade objetiva os processos judiciais cíveis e penais, processos administrativos, e inquéritos policiais, desde que não versem sobre matéria que a lei imponha o sigilo. A previsão colide frontalmente com os incisos XIV e LX do art. 5º do Texto Constitucional, que garantem o direito à informação e a publicidade dos atos do poder público, respectivamente. Com efeito, a atividade pública deve ser totalmente transparente, permitindo-se à sociedade civil o mais amplo controle dos atos estatais. As hipóteses em que a lei impõe o sigilo dos atos públicos são excepcionais, taxativamente previstas na legislação de regência (compreendo, inclusive, os casos de proteção à intimidade, honra e dignidade das pessoas), cujo rol não pode ser ampliado.
Pretender transformar a exceção (imposição do sigilo) em regra geral é subverter a ordem natural das coisas, além de afrontar o texto expresso da Constituição, que prescreve a publicidade dos atos públicos. Deveras, excetuado o caso de sigilo imposto pela lei, quando eventualmente o magistrado ou o membro do Ministério Público manifestam opinião sobre algum processo em que atuam, nada mais estão fazendo do que dando publicidade aos atos processuais, de molde a propiciar o acesso à informação aos jurisdicionados. Os ocasionais excessos já encontram sanções criminais e administrativas adequadas no Código Penal e nos diplomas regentes de cada carreira.
A segunda parte do dispositivo em comento não constitui matéria inédita em projetos legislativos. A sua essência já constava do Projeto de Lei (Senado) nº 126/95 (nº 913/95 na Câmara dos Deputados), que resultou na edição da Lei nº 9.249/95, festejada pelos sonegadores por ter reintroduzido no direito positivo brasileiro o pagamento do tributo como causa extintiva da punibilidade (art. 34). Estabelecia o seu art. 33 que: “Constitui crime a revelação pelo auditor fiscal, pelo procurador da Fazenda Nacional, por membro do Ministério Público, pela autoridade policial ou qualquer servidor, de informações contábeis, bancárias ou quaisquer outras protegidas pelo sigilo fiscal ou bancário, de que tenham ciência em razão do cargo ou função e que devam permanecer em segredo”. Pena: reclusão, de dois a três anos, e multa. § 1º. Se a revelação ou facilitação for culposa: Pena: reclusão de um a três anos, e multa”.
A previsão acabou vetada pelo Chefe do Poder Executivo Federal, com fundamento na contrariedade ao interesse público, merecendo destacar as seguintes razões do veto presidencial: “Registre-se que o art. 325 do Código Penal vigente já pune a violação do sigilo funcional, apresentando redação bem mais adequada. Da mesma forma, o art. 18 da Lei nº 7.492/86, de 16 de junho de 1986, tipifica como delito a conduta consistente em “violar sigilo de operação ou de serviço prestado por instituição financeira ou integrante do sistema de distribuição de títulos mobiliários de que tenha conhecimento em razão do ofício”, estipulando, para o caso, pena de um quatro anos de reclusão” (Mensagem nº 1.532, de 26 de dezembro de 1995, DOU de 27.12.95).
O texto atual mostra-se mais amplo, visto que não houve referência apenas ao sigilo bancário e fiscal, procurando-se tutelar, ainda, o interesse público, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. De qualquer sorte, sem embargo da ampliação da tipicidade penal, o dispositivo é, da mesma forma, ocioso. Os fundamentos são fornecidos pelo próprio veto presidencial antecitado, porquanto já existe na legislação pátria previsão normativa específica para coibir a conduta dos agentes públicos que violarem o sigilo funcional, revelando ou permitindo que cheguem ao conhecimento de terceiros fatos ou informações que tenham conhecimento em razão do cargo.
A propósito, o art. 325 do Código Penal reza que constitui crime: “Revelar fato de que tem conhecimento em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação”. Destarte, considerando que os verbos típicos são os mesmos (“revelar ou permitir”), forçoso concluir que é inteiramente inútil a nova figura delituosa, na medida em que a conduta nela descrita está contida no art. 325 do Estatuto Repressivo. Essa constatação impede que haja a discussão sobre a formulação do novo tipo penal, pois a atividade legislativa deve ser impulsionada para inovar a ordem jurídica!
III – Conclusão
Espera-se que, diante tantas inconstitucionalidades, a Câmara dos Deputados não dê seguimento a uma proposição legislativa tão perniciosa aos interesses da sociedade – destinatária final da atuação do Ministério Público -, a quem realmente interessa a existência de uma Instituição aparelhada com garantias básicas para o cumprimento de sua missão constitucional. Chancelar essa aberração jurídica, de inegável inspiração absolutista, representará um retrocesso histórico incomensurável, relegando ao esquecimento princípios garantistas já sedimentados na atual dogmática penal, arduamente conquistados ao longo do tempo.
(1) Sobre o assunto, com inteira razão o ilustre Subprocurador-Geral da República, Antonio Fernando B. e Silva de Souza, ao consignar que “… A democracia somente se realiza quando, além da escolha dos seus representantes, aos cidadãos são deferidas instâncias para sua co-participação no processo de gerenciamento do Estado e assegurados mecanismos para o exercício de uma permanente atividade fiscalizatória dos seus mandatários. Não se aceita mais apenas uma declaração formal de direitos e garantias, quer-se a concreção dos direitos e garantias prometidos. É nesse contexto que foi promulgada a Constituição de 1988 e é em face dessa nova concepção que foram atribuídas múltiplas funções ao Ministério Público. A leitura dos artigos 127 a 129 da Constituição Federal não deixa dúvida que o Ministério Público é o órgão estatal predisposto para atuar com a sociedade civil no exercício da atividade fiscalizatória permanente que lhe é reconhecida. A especificação de suas atribuições revela com clareza que, na maior parte das oportunidades, a sua atuação dar-se-á em face das autoridades do governo ou órgãos do Estado. Essa é a nossa missão constitucional. Não é um órgão de oposição ao governo. A relação situação-oposição ocorre exclusivamente na esfera política do governo, principalmente sob o influxo das siglas partidárias. Nesta relação o Ministério Público é e deve permanecer neutro, mas disso não conclua, como equivocadamente tem-se afirmado, que o Ministério Público é apolítico. Afirmar isto é desconsiderar a missão política que a Constituição expressamente lhe outorgou: a de instrumentalizar o poder fiscalizatório da sociedade civil. O eventual desencontro entre uma iniciativa do Ministério Público e uma política governamental, desde que grilhetado a tema que a Constituição exige a sua atuação, não pode ser confundido com aquela espécie de atividade política que se desenvolve na relação situação/oposição. É simples exercício da atividade política de fiscalização assegurada à sociedade civil…” (publicada no DJU de 22.09.97, Seção 1, p.46825).
Aloisio Firmo Guimarães da Silva
Procurador da República/RJ
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