O CASO DO ALÉM

Prof. MÁRIO ANTONIO LOBATO DE PAIVA

Após alguns anos de advocacia aqui, na maravilhosa cidade das Mangueiras (Belém do Pará), tivemos a oportunidade de atuar e presenciar diversos casos interessantes que ocasionaram a transformação de vidas comuns em verdadeiros dramas que culminaram em prejuízos financeiros e sentimentais que muita das vezes arruinaram lares e famílias que até então viviam em paz e harmonia em seu habitat natural.

Apenas como exemplo poderíamos alguns casos como o de um Major da polícia Militar do Estado acusado de estupro de menor de 14 (quatorze) anos que encontra-se preso preventivamente, mesmo na ausência dos pressupostos legais que autorizam a medida cautelar, já que o acusado possui residência fixa, bons antecedentes e não causa nenhum óbice a instrução processual, por vários meses sem que tivesse sido dado ao mesmo qualquer defesa além do que, as provas carreadas no processo criminal e Habeas Corpus foram totalmente favoráveis a sua absolvição.

Outro caso interessante diz respeito a um médico que, durante toda a sua vida, poupou seus rendimentos para adquirir um apartamento e, em virtude de não ter registrado o imóvel no competente Cartório viu o mesmo ser penhorado por dívida do antigo proprietário titular do apartamento no Registro de imóveis.

Casos desse tipo também são comuns aqui na Justiça do Trabalho onde é aceita a reclamação trabalhista feita pessoalmente pelo trabalhador sob a lúdica alegação de acesso fácil a justiça. O que temos visto são episódios bizarros onde o reclamante muita das vezes não traz testemunhas, não consegue negociar em pé de igualdade seus direitos com a empresa, e algumas vezes não consegue nem sequer entrar na Justiça do Trabalho em virtude de sua vestimenta inapropriada.

Poderíamos nos estender por dias e utilizar diversas laudas relatando apenas os casos e mazelas que presenciamos todos os dias e que podem ser modificados de maneira simples, porém reservaremos este espaço para dar ênfase para um caso do Além o qual fizemos parte como advogado do réu.

No final de tarde chuvosa em Belém estávamos em nosso escritório no centro comercial quando recebemos a visita de uma senhora aflita que, desesperada, pedia-a-nos socorro. Tinha recebido um mandado de citação para contestar uma ação reivindicatória proposta pela proprietária do imóvel que residia.

Ao conversarmos a senhora informou que o imóvel era ocupado pela família por mais de 60 (sessenta) anos funcionando no local um tradicional Hotel da cidade e cedido pela proprietária constante no Registro de Imóveis.

Após a consulta começamos a vislumbrar uma série de caminhos para a realização de uma defesa satisfatória que viesse a garantir a manutenção de nossa cliente no imóvel em questão alegando vícios processuais e de questões de mérito. Dentre as argumentações da defesa nos posicionamos da seguinte forma:

a) Alegamos manifesta ilegitimidade passiva, requerendo o indeferimento liminar da inicial, nos termos do artigo 295, inciso II, do Código de Processo Civil, com a conseqüênte extinção do processo;

b) Argüimos preliminar de ilegitimidade da parte passiva;

c) Inépcia da inicial em virtude da falta de um dos requisitos de petição inicial mas especificamente, o estatuído no artigo 282 inciso II ….o domicílio e residência do autor e do réu” pois, na inicial, não verificamos o endereço da autora requisito este indispensável para a propositura de qualquer ação requerendo a emenda nos termos do art. 284 do Código de Processo Civil;

d) Requeremos a nulidade da citação nos termos do artigo 215 Código de Processo Civil uma vez que, no caso dos autos a citação não foi efetuada na pessoa da ré conforme pudemos comprovar pela certidão do Oficial de Justiça. Portanto a mesma devendo ser considerada nula nos termos do artigo 247 do CPC;

e) Alegamos a prescrição;

f) Contestamos os fatos relatados no mérito;

g) Impugnamos os documentos juntados na peça vestibular, inclusive os poderes conferidos ao patrono que estavam representados apenas por um substabelecimento.

Depois de esgotadas todas as argumentações submetemos a apreciação do juiz da 1º. Vara Cível de Belém que despachou o seguinte:

“Emende a inicial, sob pena de indeferimento, fornecendo a qualificação e domicílio da autora. Junte sob a mesma pena, prova da existência dos poderes substabelecidos”.

Após a resposta do autor começamos a desconfiar que alguma coisa de estranho estava acontecendo pois como seria possível que a autora da ação não tivesse repassado a seu advogado o endereço de sua residência, e mais, o autor, trouxe aos autos apenas um substabelecimento manuscrito para um senhor português em 1984. Outro dado interessante era que na certidão de registro de imóveis juntada pela autora consta que em 13.03.1913, a mesma, era menor de idade denotando assim que teria hoje, no mínimo, 90 (noventa) anos.

Eis que diante de tais questionamentos tivemos a idéia de realizar uma busca em Portugal nos Cartórios de Registro Civil para saber se a mesma ainda estava viva. Para nossa surpresa conseguimos descobrir que a autora já havia falecido exatamente no dia 21 de janeiro de 2002, ou seja, nove meses antes do ajuizamento da ação reivindicatória.

Assim, requeremos a juntada da cópia da certidão de óbito e com isso, a extinção do processo sem julgamento do mérito. O mais curioso foi a decisão proferida pelo juiz que em 05/05/2003 decidiu que:

“Procuração de morto só com poderes outorgados no Cartório do Céu. Celeste (nome da autora) é morte; Celeste não pode propor ação reivindicatória. Não há legitimidade no pólo ativo da ação. Julgo extinto o processo, nos termos do art. 267, VI do C.P.C. Por razões óbvias, deixo de fixar os ônus da sucumbência. Transita em julgado, arquivem-se.”

Portanto, concluímos com o relato dos fatos acima pela essencialidade do advogado no processo judicial, uma vez que nesse caso, foi necessário a utilização de todos os conhecimentos jurídicos e, ainda, os obtidos no dia-a-dia na militância para vencer o adversário que veio do Além e que, mesmo assim, conseguiu movimentar um processo e gerar toda esta situação de desconforto para nossa cliente que passou em claro várias noites de sono devido ao perigo do despejo. Resta-nos agora interpor competente recurso desta decisão no sentido de solicitar a Deus ou ao Diabo o pagamento dos honorários de sucumbência devidos a nós!!!!!!

Autor: Professor Mário Antônio Lobato de Paiva (*)
(*) Mário Antônio Lobato de Paiva é advogado em Belém; sócio do escritório Paiva & Borges Advogados Associados; Professor de Prática Trabalhista da Universidade Federal do Pará; Professor (pós-graduação em Direito de Informática) da Universidade Estácio de Sá em Minas Gerais; Sócio-fundador do Instituto Brasileiro da Política e do Direito da Informática – IBDI; Presidente da Comissão de Estudos de Informática Jurídica da OAB-PA; Membro do Conselho Editorial da Editora Oficina de Livros em Brasília; Autor e co-autor de nove livros jurídicos e mais de uma centena de artigos publicados em revistas especializadas nacionais e estrangeiras; Conferencista; e-mail: malp@interconect.com.br.

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