por Raul Haidar
Em recente reportagem publicada na revista Consultor Jurídico, atribuiu-se ao presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, afirmação de que seria criado na entidade um cadastro dos “violadores das prerrogativas” dos advogados, aos quais seria, no futuro, negada inscrição como advogados, “por conduta incompatível com a advocacia”.
O ilustre presidente da OAB-SP, a quem me orgulho de ter apoiado na sua eleição, certamente está equivocado ou mal assessorado. Mas, sendo doutor em Direito Penal, provavelmente mudará de opinião depois de estudar com mais profundidade a questão.
São altamente louváveis os esforços do conselho na defesa das nossas prerrogativas, devendo ser apoiada a iniciativa de que o desrespeito a elas seja considerado crime, posto que se tratam de garantias ao amplo direito de defesa, que a Carta Magna e a Declaração Universal dos Direitos Humanos garantem.
O equívoco da afirmação, contudo, se vê quando se examina o nosso precário Estatuto, que está a exigir ampla reforma.
A Lei 8.906/94, em seu artigo 34, inciso XXXIV, considera infração ética “manter conduta incompatível com a advocacia”, o que, aliás, não vem claramente definido na lei. O mesmo artigo, em seu parágrafo único, inclui no conceito a “prática reiterada de jogos de azar” ilegais, a chamada “incontinência pública e escandalosa” e a “embriaguez ou toxicomania habituais”.
Para inscrever-se como advogado, o bacharel deve preencher várias condições, dentre as quais a “idoneidade moral”, como se vê no artigo 8º daquela lei, o que se apura mediante processo disciplinar e para negar a inscrição exige-se o voto de pelo menos dois terços dos conselheiros.
Diz ainda a lei que não atende àquele requisito quem tenha sido condenado por “crime infamante”, o que também não se define.
Em síntese, não cabe ao presidente da OAB-SP negar inscrição a qualquer bacharel. Isso é competência exclusiva do conselho seccional, por maioria absoluta (dois terços), além do que, da negativa, caberá recurso ao conselho federal da OAB e mesmo à Justiça Federal.
Na gestão anterior, por exemplo, a OAB-SP negou inscrição a um juiz de direito aposentado que estava sendo processado criminalmente por peculato e a quem se atribuía, igualmente, desrespeito às prerrogativas.
Fui o primeiro relator daquele processo e votei pela concessão da inscrição, por entender que violação de prerrogativas não é razão para a negativa e porque, também, não havia condenação nem prova de que estava ausente a tal “idoneidade moral”.
Mais de dois terços do conselho, no entanto, rejeitou de forma democrática meu voto, o que aceitei com humildade, pois, como se sabe, a democracia consagra o que a maioria decida, ainda que a maioria erre com freqüência.
O juiz aposentado obteve na Justiça Federal liminar em Mandado de Segurança e a OAB-SP foi obrigada a conceder-lhe a inscrição que o conselho negara. Alguns conselheiros afirmaram à época que preferiam que a inscrição fosse dada pela Justiça, colocando assim a entidade na mesma condição em que nós colocamos as autoridades que cometem arbitrariedades e desrespeitam direito e líquido e certo do cidadão.
Por outro lado, criar uma espécie de “lista negra” de autoridades ou pessoas que tenham desrespeitado prerrogativas tem dois aspectos negativos. Primeiro, que a criação de tal lista é uma espécie de vingança e a advocacia é a profissão da liberdade, da igualdade e da fraternidade, não podendo compactuar com essa prática, que tanto tem criticado.
Mais triste ainda é quando o nosso presidente fala em criar um cadastro que seria “a nossa Serasa”, tentando equiparar o comportamento da entidade a uma empresa comercial que, com muita freqüência, comete atos que a Justiça define como irregulares e causadores de danos morais aos cidadãos.
Ora, ao negar inscrição a alguém, não se atinge somente essa pessoa, mas a toda a sua família, que se vê prejudicada materialmente quando o bacharel se veja impedido de trabalhar. Isso para não falarmos nos óbvios prejuízos morais que a decisão possa causar.
Esperamos que D’Urso reconsidere a posição no que tange a esse tal “cadastro”, totalmente ilegal e que contraria as tradições de nossa entidade. Caso a mantenha, o conselho, com sua independência e soberania, deve rejeitar a proposta. O presidente não manda no conselho, mas o contrário pode ocorrer. Quem assim não pensa, deveria ler o Estatuto da Advocacia com mais atenção.
Isso, é claro, nada tem a ver com a defesa das prerrogativas, que deve continuar com o máximo rigor.
Sabe o nosso presidente que a possibilidade de negar inscrições a bacharéis com base nisso não vai prevalecer ante o exame do Judiciário. Sabe, ainda, que insistir nesse engano é expor a OAB-SP ao grave risco de, no futuro, ser obrigada a responder a indenizações por danos materiais e morais aos que eventualmente venham a sofrer prejuízo com a negativa.
Como advogado e ex-conselheiro da OAB-SP, penso que a entidade não pode enveredar pelo campo do ilícito e do injusto. Ainda que isso possa, momentaneamente, “mostrar serviço” aos advogados, nossa entidade não precisa desviar-se dos nossos princípios maiores.
Os que ofendem nossas prerrogativas podem ser processados na forma da lei vigente. Os ofendidos têm à disposição o instituto do desagravo que, em alguns casos, já foi concedido até a quem não o merecia. Mas, francamente, uma “Serasa da OAB” é o fim da picada…
Esta manifestação não representa “oposição” ao nosso presidente, que me honra com sua amizade e a quem posso chamar de irmão. Mas prefiro escrever, pois as palavras voam e a escrita permanece. Além disso, sei que o verdadeiro amigo, como Cícero já ensinava, é aquele que diz a verdade que pode doer, mas não o afago cínico dos que só sabem bajular.
Fonte: Revista Consultor Jurídico