I – O “Sistema dos Fundamentos Óbvios”
Alfredo Augusto Becker construi a teoria dos sistemas dos fundamentos óbvios, assim considerados aqueles “que costumam ser aceitos como demasiado óbvios para merecerem a análise crítica (1)”. Inclinamos a presente investigação sobre a premissa óbvia de que a boa-fé (seja objetiva, seja subjetiva) deve nortear a postura da Administração Pública. Verdadeiro “dogma doutrinário”, a boa-fé não será atacada, nem seus defensores hostilizados – afastamo-nos do discurso ad homonim -, porém reconhecemos que, mesmo sendo desmentidas todas as causas, restará ainda o fato; acaso sejam invalidadas as explicações, restará o dado a explicar (Olavo de Carvalho).
O sujeito que se põe em atitude cognoscente em face da Ciência-do-Direito depara-se com várias dificuldades, encontrando no direito positivo respostas seguras na (interminável?) busca pela verdade. Será esta a nossa postura. Quanto às posições doutrinárias em sentido diverso, ressaltamos que a ciência do “common sense”, a qual cria para si muitas ilusões em relação ao mundo, deve se deixar iluminar sem reservas pelas ciências (Habermas).
Embuídos de um espírito franciscano (Souto Maior Borges), iniciamos a análise da congruência entre a boa-fé e o regime jurídico-administrativo, forte nas lições de Becker, constatando, de início, um fenômeno de majestosa ressonância em nossa cultura jurídica: a proliferação dos “princípios-álibis”.
II – Princípio-Álibi (2)
Os princípios estão na moda. Invocar um princípio é prática louvável, enquanto seu afastamento é iniciativa retrógrada. O Juiz Hércules de Dworkin tornou-se o ideal de justiça, porquanto alcança a melhor solução, alheio às “amarras” do direito positivo. A “prescritibilidade dos ilícitos administrativos” (art. 37, §5º da CF) é melhor vista quando tomada como princípio. Fala-se, exclusivamente, em princípio da prescritibilidade dos ilícitos administrativos, pois “violar um princípio é mais grave do que violar uma regra”. Estamos vivendo um “fetiche do axiológico”.
O apelo ao principiológico soa simpático. Dá um ar de progressismo, de pós moderno, à tese defendida. Manejar princípios, ao invés de “simples” regras provoca maiores repercussões no discurso defendido. E, ainda, ressalte-se que recorrer a um princípio é mais fácil e cômodo do que pugnar pela aplicação de uma regra, porquanto “o uso do signo princípio oferece farta variedade conotativa, de tal sorte que alcança todas as circunscrições de objetos, atuando nas quatro regiões ônticas (3)”.
Esse discurso sofre a pecha de positivista sempre que expendido. Porém a defesa da segurança jurídica, invocando-se o apego à lei, está longe do nosso itinerário.
Não se olvida da importância dos princípios enquanto valores encampados por uma sociedade. A eficácia social de uma norma jurídica depende, no mais das vezes, de sua ressonância com os valores fundantes da sociedade, fato intimamente ligado com a noção de justiça de cada povo. Os princípios, nessa perspectiva, lograram alcançar autonomia – principalmente na obra de Miguel Reale – onde suas características intrínsecas (ontológicas) culminaram com a vinda à lume da chamada “Axiologia” ou “Teoria dos Valores”.
Evidentemente são eles importantes. São normas – especiais – dotadas de um grau elevado de abstração. Sobremais, a relação entre direito e moral (valores) é vislumbrada, inclusive, em sistemas proposicionais nomológicos, nos modernos estudos da lógica deôntica paraconsistente (4), de grande valia ao deslinde de “hard cases”.
Reafirme-se que recriminamos, unicamente, a manipulação de regras (tidas como princípios), na intenção de provocar uma maior aceitação da posição defendida. Ou, ainda, quando se forja um princípio ao escopo de lhe outorgar significado (e sentido) previamente concebido, valendo-se, para tanto, desse chamado “fetiche do axiológico”. A proporcionalidade, por exemplo, visualizada em sua ambigüidade, pode fundamentar julgamentos em diversos sentidos, rendidos, singularmente, ao alvedrio do Juiz (5). Desse modo, embute-se na interpretação de uma regra um princípio (algumas vezes dispiciendamente), apenas para alterar-lhe o sentido ou para fins meramente retóricos.
Esta conduta se mostra factível porque os “limiares imprecisos” do direito positivo a que aludiu Karl Larenz (6), percebidos nos domínios do axiológico, tomam maiores proporções, repercutindo nos limites à cognoscibilidade – em vista da patente trivialidade dos princípios -, vale dizer, incrementa-se (ardilosamente?) a margem de discricionariedade de juízo criando-se uma certeza etíope do Direito. Em homenagem a um “princípio-álibi”, facilmente se transfigura certa regra, ou a afasta, tudo com ares de progressivo e inconteste (7).
Frise-se, por fundamental, que o nosso estudo não tem o objetivo de fulminar a aplicação dos princípios, nem poderia, em vista da grande repercussão da principiologia. Pugnamos, isso sim, por um estudo mais acurado do fenômeno, como o fez Roberto Wagner Lima Nogueira (8), numa análise semiótica onde os enunciados prescritivos são vistos como signos jurídicos; a norma jurídica, como seu objeto jurídico imediato; e os princípios – contidos em um rol muito restrito –, são os objetos jurídicos dinâmicos, sofredores de um déficit simbólico, eis que não se esgotam nos limites dos signos jurídicos.
O desenvolvimento de um descrímen deste jaez se nos afigura essencial. Tal estudo teria a pretensão de promover uma discussão objetiva (factual) para a não disseminação do fenômeno que, na seara dos direitos fundamentais, foi chamado de “vulgarização dos direitos” (9).
III – Os chamados Princípios Constitucionais da Administração Pública
Acerquemo-nos dos chamados princípios constitucionais da Administração Pública (10), principalmente em sua maior referência: o caput do artigo 37 da CF. Passando ao largo de discussões sobre a factibilidade de uma pretensa positivação de princípios (11), é certo que o caput do artigo 37 possui conteúdo sobremodo didático, sobressaindo-o à evidência, a nosso ver, quando do controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário.
No entanto, seus enunciados jurídico-prescritivos não estão imunes às críticas doutrinárias, fato que não pode ser desprezado, merecendo destaque algumas censuras expendidas: i) a legalidade está consagrada no art. 5º, inc. II da CF, sendo apoditicamente imposta aos atores do Sistema Jurídico (12), vale dizer, se vincula a todos, se-lo-á cogente, da mesma sorte, à Administração Pública; ii) a impessoalidade amálgama dois cânones constitucionais, a saber, a legalidade e a igualdade, sendo tida por Hely Lopes Meirelles (13) como corolário do princípio da finalidade (fim legal); iii) a moralidade, a seu turno, foi considerada abrangida pelo princípio da impessoalidade e pela teoria do desvio de finalidade (14); iv) a publicidade mereceu de Celso Antônio Bandeira de Mello uma ressalva especial: não há falar, pois, em Estado Democrático de Direito sem a publicidade que lhe é imanente (15); v) a eficiência, inserida pela EC n.º 19/98, teve sua essência ligada à finalidade da Administração Pública, sendo considerada despicienda sua enunciação (16).
Pois bem. A empresa de realizar, ainda que exemplificadamente, o elenco destes chamados “princípios” não pode ser olvidada, notadamente por seu caráter redutor de complexidades, importantíssimo à uma melhor compreensão do Estado Democrático de Direito, aqui representado pela Administração Pública direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Então, pergunta-se: Poder-se-ia inferir os colecionados “princípios” a partir de uma única premissa basilar? Cremos que sim. O caput do artigo primeiro da Constituição Federal, ao estabelecer o Estado Democrático de Direito, pressupõe, per se, uma série de antecedentes identificáveis, tudo por força de um processo anafórico (17) de interpretação do discurso do direito positivo. Em que pese o grande esforço intelectual e emocional a ser empreendido pelo intérprete, entendemos que, por interpretação anafórica do conceito (seletor de propriedades, no léxico de Lourival Vilanova) de Estado Democrático de Direito, é possível a identificação de diversos “princípios constitucionais da Administração Pública (antecedentes necessários), a começar pela finalidade pública (18). Cuida-se, pois, de uma nova feição lingüistica da experiência exegética. Alterando-se o termo anafórico, diga-se que a partir da finalidade pública poder-se-á identificar outros antecedentes – de maneira indireta e mediata: impessoalidade, publicidade, prescritibilidade dos ilícitos administrativos dentre outras regras insertas no regime jurídico-administrativo. Desenvolvendo o raciocínio anafórico, não se vislumbraria o termo anafórico “Estado Democrático de Direito” na inexistência de seus precedentes essenciais, vale dizer, tal enunciação quedar-se-ia sem o seu sentido existencial.
No entanto, sabe-se que a solução seria muito simplista acaso a enunciação do processo legiferante se tornasse dispensável em homenagem a uma (utópica?) intelecção, plenamente satisfativa, sobre a idéia de Estado Democrático de Direito. Não é essa, porém, a nossa proposta. Ressaltamos, isso sim, a relação de dependência que os “princípios” da Administração Pública possuem do conceito de Estado Democrático de Direito. Pretendemos destacar, outrossim, a série de precedentes identificáveis a partir do termo anafórico finalidade pública, para ulterior aferição do enquadramento ou não da boa-fé nesta cadeia interpretativa.
De forma similar, Paulo de Barros Carvalho entende que os “princípios implícitos” (v.g., supremacia do interesse público ao do particular) são obtidos por derivação lógica dos enunciados expressos, independente do número de formulações expressas que venham a servir-lhes de fundamento (19). Relacionando esta visão dos “princípios implícitos” com a fícta inexistência de previsão dos “princípios da Administração Pública”, percebe-se que a nossa proposta pressupõe um prius, ao revés de buscar um posterior.
Noutra banda, certo é que o Poder Constituinte Originário pôs em relevo e às claras o intuito de criar um novo Estado sob a forma Democrática e com a chancela do Direito. Fê-lo quando talhou o artigo 1º da Lei Fundamental de 1988, estrutura mínima de significação do ordenamento constitucional positivo, local apropriado para extrairmos antecedentes necessários do Estado que se criou.
IV – A Boa-Fé e a Administração Pública
A Administração Pública deve ser entendida dentro de um certo regime jurídico, i.é., um regime jurídico-administrativo, dotado de poderes-deveres; prerrogativas e sujeições caracterizadas pela submissão ao princípio da legalidade, incidência da responsabilização objetiva, constituição de obrigações por ato unilateral, presunção de legitimidade, auto-executoriedade, unilateral declaração de nulidade e revogabilidade dos atos praticados, continuidade das atividades havidas como públicas, dentre outros. Tecidas tais considerações, se impõe a essa altura a seguinte indagação: Seria o conceito de boa-fé compatível com o regime jurídico-administrativo, numa interpretação anafórica do Estado Democrático de Direito sob a ótica da Administração Pública? Tudo leva crer que não.
Amelia González Méndez abriu um subcapítulo em seu recente “Buena Fe y Derecho Tributario” intitulado Buena fe y Administración tributaria (20), o qual tomamos como referência para o presente trabalho. Neste subcapítulo – dedicado à relação jurídico-tributária porém ora utilizado por se relacionar ao nosso itinerário – propõe a Professora Espanhola que a atuação da Administração Pública deva ser pautada pela boa-fé, ou seja, em diversas situações a boa-fé nortearia a conduta da Administração Pública na qualidade de antecedente necessário, quando da aplicação e observância de enunciados jurídico-prescritivos.
De las reflexiones anteriores se colige que si la ley contiene previsiones generales, la buena fe tiende a subjetivizar su aplicación al supuesto de hecho, de manera que realiza una función correctora de su defectuoso o incompleto encaje en la norma legal para ajustarlo al criterio de justicia que subyace en ésta. A tal efecto obliga a la Administración a particularizar cada una de las relaciones tributarias en que está involucrada, en el sentido de relacionar sus tomas de decisión con las circunstancias concurrentes a fin de promover el mejor desarrollo posible de la relación y el cumplimiento de la obligación tributaria (21).
De plano, fica evidente que a boa-fé não pode servir de álibi para o afastamento do cânone da impessoalidade, nem interferir na elaboração da norma jurídica, pois se esvaziaria a regra da legalidade. Ora, invocar a boa-fé para justificar arbitrariedades desta natureza é medida em frontal descompasso com a premissa do Estado Democrático de Direito (22).
Por todo o aludido subcapítulo diversas questões são ordenadas, pugnando-se sempre pela possibilidade da Administração Pública valer-se da boa-fé na consecução dos fins públicos: A necessidade de motivação dos atos administrativos (23); a existência de Consultas Tributárias precisas (24); o direito à informação; a não obstaculização do exercício dos direitos dos contribuintes (25); a observância dos prazos de duração dos processos tributários (26); a vedação ao abuso da Potestade Pública (27); o repudio ao exercício tardio de direitos (28), dentre tantas outras situações casuísticas.
Não nos parece razoável outorgar à boa-fé a função de condutora da Administração Pública na observância dos preceitos normativos – no mais das vezes expressos no direito positivo ou obtidos pela exegese anafórica. Por isso fala-se em legalidade, ou ainda, em aplicação ex officio da Lei.
Divisar uma supervalorização da boa-fé em prejuízo da regra de calibração não está longe de acontecer – acaso seja seguido o entendimento da Professora Titular de Direito Financeiro e Tributário da Universidade de Santiago de Compostela -, com nítidos reflexos negativos na própria imperatividade da Lei. Ademais, colocar a boa-fé como precedente apodítico dos atos da Administração Pública se nos apresenta incongruente com o conceito de finalidade pública, porquanto se emascula a viga mestra da Potestade Pública – inclusive na qualidade de principal termo anafórico da Administração Pública.
Ainda, diga-se que no processo anafórico de obtenção dos antecedentes do conceito de Estado Democrático de Direito – na perspectiva da Administração Pública -, não parecem coadunar com a noção de boa-fé as características de restrições e privilégios do regime jurídico-administrativo (responsabilização objetiva do Estado, legalidade, impessoalidade, p.ex.). Estas peculiaridades afastam-se da idéia de boa-fé, a qual, entendemos, só será invocada na qualidade de “princípio-álibi”, na construção de uma tese pré-concebida (29).
Note-se, por essencial, que não se está a refutar a boa-fé sob a ótica do cidadão, ao contrário, pensamos que a boa-fé tanto se presume que não é construída pela Administração Pública (ou, a fortiori, pelo Poder Judiciário), mas existe independentemente em favor do cidadão, até que se prove o contrário. A construção de um “sistema de fundamentos óbvios” na relação entre cidadão e Administração Pública é que merece repulsa.
Para finalizar, reafirme-se que qualquer ato inquinado poderá ser levado ao crivo do Judiciário, este sim, aplicador da Justiça ao caso concreto.
Notas
1 BECKER, Alfredo Augusto, Teoria Geral do Direito Tributário, 3ª Ed., São Paulo: Lejus, 1998, p. 11. O mestre gaúcho traduz sua teoria com sábias palavras. “Esclarecer é explicitar as premissas. O conflito entre as teorias jurídicas do Direito Tributário tem sua principal origem naquilo que se presume conhecido porque se supõe óbvio. De modo que de premissas iguais em sua aparência (a obviedade confere uma identidade falsa às premissas) deduzem-se conclusões diferentes porque cada contendedor atribui um diferente conceito às premissas “óbvias”’. (Idem, ibidem).
2 Em expressa referência ao que Marcelo Neves – apoiado em Kindermann – chamou de “Legislação-Álibi”, assim considerada aquela onde “o legislador, muitas vezes sob pressão direta, elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições de efetivação das respectivas normas”. NEVES, Marcelo, A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 37). Por “princípio-álibi” entendemos a característica eminentemente retórica que certos princípios tomam quando manejados – prática, algumas vezes, ardilosa – ao talante do intérprete, para fundamentar teses pré-visualizadas, numa empreitada que se vale da plurivocidade tão constante nos domínios das ciências sociais (v.g. dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, boa fé subjetiva etc). Força-se o enquadramento de um princípio em determinada situação pré-definada, deturpando-o retoricamente para fins que muitas vezes o esvazia.
3 CARVALHO, Paulo de Barros, O Princípio da Segurança Jurídica em Matéria Tributaria, RDT n.º 61, p. 74.
4 Valendo-se da lógica paraconsistente, teoria desenvolvida pelo Professor curitibano Newton da Costa, Cesar Antonio Serbena e José Renato Gaziero Cella produziram didático estudo apontando soluções ao desfecho de decisões jurídicas contraditórias, mesmo dentro de sistemas proposicionais nomológicos (Marcelo Neves). (SERBERA, Antonio Serbera; GRAZIERO CELLA, José Renato, A lógica deôntica paraconsistente e os problemas jurídicos complexos, cella.com.br, Acessado em 24 de abril de 2003).
5 “Por sua vez, o uso da palavra se altera quando aos homens lhes parece conveniente alterar o significado da palavra. Os homens, deliberada e conscientemente, passam a usar erradamente a palavra a fim de – com esse uso errôneo – alterar o seu significado. E Stephen Ullmann adverte de que as mudanças de significado da palavra pelo deliberado uso errôneo da mesma são freqüentíssimas na época atual durante períodos de mudança de mentalidade pública”. (BECKER, Alfredo Augusto, Carnaval Tributário, 2ª Ed., São Paulo: Lejus, 1999, p. 116).
6 LARENZ, Karl, Metodologia da Ciência do Direito, 2º Ed., Trad. José de Souza e Brito e José Antônio Veloso, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 326.
7 Para compor um prosaico exemplo, relembre-se algumas decisões monocráticas que, em homenagem à isonomia, afastaram a regra da tramitação mais célere aos demandantes com idade superior a 65 anos (Lei 10.173/2001), ao argumento de que os demais pleitos não poderiam ser prejudicados (nem a Serventia sobrecarregada) no escopo de priorizar os litigantes idosos. Quer nos parecer que a razão de fundo destas decisões, ao revés de visarem o benefício dos demais litigantes, objetivaram, unicamente, a comodidade do Juízo, o qual, neste entendimento, não teria logística para operacionalizar tal descrímen. O princípio-álibi da isonomia, neste caso, foi manejado astuciosamente para privilegiar uma visão pré-concebida.
8 LIMA NOGUEIRA, Roberto Wagner, Fundamentos do Dever Tributário, Belo Horizonte: Del Rey, 2002. Não teremos a ousadia de propor, neste arrazoado, uma nova perspectiva para esta intrincada divisão construída pela Teoria Geral do Direito. Restringimo-nos, singelamente, aos apontamentos expostos, unicamente com o fito de convidar a doutrina para uma maior reflexão sobre o tema.
9 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, Direitos Humanos Fundamentais, 4ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p. 67.
10 Não se olvida que o próprio artigo 37 contenha, em seus parágrafos e incisos – além de outros esparsos no corpus da CF -, enunciados jurídico-prescritivos que a doutrina qualifica como princípios. Entretanto, a análise pormenorizada do fenômeno e sua ressonância sobre todas as regras constitucionais-administrativas não tem lugar neste momento, porquanto tangência da tônica deste estudo.
11 Como preleciona Jesus Gonzales Perez, citado em decisão do Pretório Excelso no voto do relator, Ministro Marco Aurélio, quando do julgamento do RExtr n.º 160.381-SP: “El hecho de su consagración en una norma legal no supone que con anterioridad no existiera, ni que por tal consagración legislativa haya perdido tal carácter. (El principio de la buena fe en el Derecho Administrativo, Madrid: Civitas, 1983)”.
12 “A vinculação à legalidade é imperativo condicionado ao sistema jurídico e, de conseguinte, muito mais forte e profundo do que supõem os defensores da vinculação como mero extrato da legalidade”.(FREITAS, Juarez, O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 60-64). Fala-se, igualmente, em limitação aos juízos disjuntivos (mormente a disjunção excludente) da competência discricionária da Administração Pública. A idéia de liberdade é deixada de lado e os limites legais da atuação administrativa são realçados, mesmo quando a estrita vinculação não é exigida: “Quais serão os limites do poder discricionário da Administração? Os limites são os da própria lei. O limite é a legalidade, e só a legalidade. Os limites do poder discricionário serão aquêles comandos legais que vedem certas interpretações das condições do agir e imponham certas outras”. (QUEIRÓ, Afonso Rodrigues, A Teoria do “Desvio de Poder” em Direito Administrativo, RDA v. VII, jan/mar de 1947, p. 54).
13 MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro, 21ª Ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 82.
14 Fábio Medina Osório noticia a posição assumida por Almiro do Couto e Silva em parecer encomendado pelo Prefeito de Porto Alegre/RG, assim sintetizado: “O princípio da moralidade administrativa estaria abrangido pelo princípio da impessoalidade e pela teoria do desvio de finalidade, culminando por refutar a existência de uma utilidade prática em tal princípio constitucional”. (Existe uma Supremacia do Interesse Público sobre o Privado no Direito Administrativo Brasileiro, RT n.º 770, p. 77, Nota 30). Em sentido diametralmente oposto, consulte-se, por todos; FRANCO SOBRINHO, Manoel de Oliveira, O princípio constitucional da moralidade administrativa, 2ª Ed., Curitiba: Genesis, 1993, p. 157.
15 “Não pode haver em um Estado Democrático de Direito, no qual o poder reside no povo (art. 1º, parágrafo único, da Constituição), ocultamento aos administrados dos assuntos que a todos interessam…” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Curso de Direito Administrativo, 6ªEd., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 59).
16 “… inicialmente cabe referir que eficiência, ao contrário do que são capazes de supor os próceres do Poder Executivo federal, jamais será princípio da Administração Pública, mas sempre terá sido – salvo se deixou de ser em recente gestão política – finalidade da mesma Administração Pública”. (LOPES, Maurício Ribeiro, Comentários à reforma administrativa, São Paulo: RT, 1998, p. 108).
17 Por anafórica, entenda-se toda expressão em cuja interpretação se lança mão da anáfora: “Anáfora: processo de interpretação pelo qual uma expressão deriva seu sentido do texto que procede (Em “Pedro embebedou-se e José não fez por menos, há anáfora entre embebedou-se e fez por menos”. (ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Wanderley, Semântica, 8ª Ed., São Paulo: Ática, 1998, p. 86).
18 Obtido em uma dedução específica à Administração Pública, longe de afastar outras perspectivas.
19 “São exemplos de enunciados expressos: homens e mulheres são iguais em direito e obrigações, nos termos desta Constituição (art. 5º, I, da CF); Brasília é a capital Federal (art. 18, §1º, da CF). Outros, porém, não têm forma expressa, aparecendo na implicitude do texto, fundados que são em enunciados explícitos. São os implícitos, obtidos por derivação lógica dos enunciados expressos, como por exemplo, o da isonomia jurídica entre as pessoas políticas de direito constitucional interno (produzido a partir do enunciado expresso da Federação, combinado com o da autonomia dos Municípios); o princípio da supremacia do interesse público ao do particular (reconhecido pela leitura atenta dos enunciados explícitos, relativos à disciplina jurídica da atividade administrativa do Estado”. (negrito nosso) (CARVALHO, Paulo de Barros, ob. cit., pp. 58-59).
20 MÉNDEZ, Amelia González, Buena Fe y Derecho Tributário, Madrid: Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, 2001, pp. 171-184.
21 Idem, p. 179.
22 Firmamos entendimento no sentido de que, à luz do artigo art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, somente o Poder Judiciário poderá, plenamente, sopesando os argumentos colhidos na dilação probatória (ou mesmo na desnecessidade desta), verificar todos os argumentos prós e contra cidadão (boa-fé na conduta, inconstitucionalidade de normativo, observância das garantias processuais, publicidade etc). Dessa forma, tão-somente na feitura da norma individual e concreta da sentença poder-se-á analisar todas as questões necessárias, em consonância com o Texto Constitucional, ao deslinde do embate entre cidadão e Administração Pública.
23 “… hay que entender que el principio de buena fe obliga a la motivacion de cualquier actuación administrativa con relevancia para la situación jurídica del obligado tributário” (Ob. cit., p. 172).
24 “El caso de las consultas tributarias requiere alguna precisión puntual, aunque ya se relacionó alguno de sus aspectos con la existencia de buena fe”. (Idem, p. 173).
25 “En la Ley de Derechos y Garantías de los Contribuyentes se pueden encontrar positivados gran parte de tales deberes cuya realización há de adecuarse a los criterios de la buena fe. Así, los deberes de información (arts. 5.1, 6 y 7, 26), de asistencia (arts. 8, 20, 25, 27) y de colaboración (arts. 9, 28), la no obstaculización del ejercicio de los derechos del contribuyente o del cumplimento de la obligación tributaria”. (Idem, p. 171).
26 “Otro supuesto en que la buena fe exige de la Administración que no estorbe los derechos del sujeto pasivo se relaciona con el adecuado cumplimento de los plazos de duración de los procedimientos tributarios”. (Idem, p. 176).
27 Idem, p. 180.
28 “Infringe el principio de buena fe el ejercicio tardío e intolerable de un derecho que ocasiona un prejuicio a la outra parte de la relación”. (Idem, p. 181).
29 Desse modo, quer nos parecer que o inciso IV, do artigo 2º da Lei 9.784/99 – Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal – ao exigir a boa-fé na conduta da Administração Pública, se apresenta sem um sentido jurídico. Ainda, condicionar a prevalência do interesse público ao exercício da boa-fé pela Administração Pública – como o fez Juarez Freitas – quando da mantença (convalidação) de ato cuja anulação seria imperiosa por força da legalidade, revela-se desarrazoado, porquanto a supremacia do interesse público não requer a presença ou não da boa-fé (princípio-álibi) para surtir seus efeitos. Veja-se a posição encampada pelo professor gaúcho em: Estudos de Direito Administrativo, São Paulo: Malheiros, 1995, pp. 20-1.
Fernando Andreoni Vasconcellos
Advogado em Curitiba-PR