Depósito para garantia de instância administrativa

A Medida Provisória n. 1621, cuja 31ª reedição foi publicada no DOU do dia 14.1.98, p. 5, com base no parecer da PGFN/CAT Nº 2078/97, introduziu alterações aos artigos 33 e 34 do Decreto nº 70.235/72, que regula o processo administrativo fiscal na esfera federal (art. 32), e estabeleceu o prazo de 180 dias para a propositura de ação judicial de desconstituição da exigência fiscal fixada em primeira instância (art. 33). Atualmente, a matéria é regulada pela MP nº 1.770-45 de fevereiro de 1999.

Para justificar essas inovações o ilustrado parecerista sustentou que o depósito total ou parcial do valor reclamado, como condição para o recebimento do recurso, visa, de um lado, “a agilização na realização dos valores em disputa, por inibir as irresignações meramente protelatórias”, e de outro lado, “fixaria considerável segurança quanto aos ingressos destes recursos nos cofres públicos, nos casos de manutenção da exigência fiscal”. Quanto ao estabelecimento de prazo decadencial para ingresso em juízo o mesmo ilustrado parecerista aduziu que o depósito não basta para inibir “uma prática relativamente corriqueira de repetir em juízo os argumentos e óbices postos perante a Administração”. Essa prática corriqueira, segundo o ilustrado parecer, prejudicaria tanto o Judiciário “com acúmulo de autos nos escaninhos, … o atraso na prestação jurisdicional”, bem como, a Administração “com a postergação do ingresso dos recursos acaso devidos”. Acrescentou, ainda, que prejudicaria “a sociedade e o contribuinte com a perpetração do estado de insegurança jurídica”.

Difícil de acreditar, mas essas justificativas estão todas elas expressas no parecer da PGFN/CAT2078/97, publicado no DOU do dia 12-12-97, p. 29562, que embasou a edição da Medida Provisória enfocada.

Logo levantaram-se vozes contra essas inovações inoportunas, acoimadas de inconstitucionais. Parte dos doutrinadores entende que a exigência de depósito para recurso fere o princípio constitucional da ampla defesa, ao passo que, a fixação de prazo decadencial de 180 dias para o exercício da ação afronta o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, insertos no art. 5º, incisos LV e XXXV da CF, respectivamente. Outros estudiosos entendem, ainda, que essas restrições vulneram, também, os princípios do devido processo legal e do contraditório. É possível que esses estudiosos tenham levado em conta os injurídicos argumentos alinhados no parecer da PGFN, por sinal, até contraditórios, que não se afinam com o estado de Direito. Só faltou propor a abolição do procedimento administrativo para agilizar o ingresso de recursos aos cofres públicos. Mas a MP 1621 há de ser analisada à luz de seus textos, com total abstração das equivocadas motivações de seu proponente.

Por isso, convém transcrever os textos introduzidos pela citada MP para melhor exame.

O art. 32 da MP alterou os artigos 33 e 34 do Decreto 70.235/72 nos seguintes termos:

“Art. 33………………….

§ 1º – No caso em que for dado provimento a recurso de ofício, o prazo para a interposição de recurso voluntário começará a fluir da ciência, pelo sujeito passivo, da decisão proferida no julgamento do recurso de ofício.

§ 2º – Em qualquer caso, o recurso voluntário somente terá seguimento se o recorrente o instruir com prova do depósito de valor correspondente a, no mínimo, trinta por cento da exigência fiscal definida na decisão”.

“Art. 43………………….

§ 3º – Após a decisão final no processo administrativo fiscal, o valor depositado para fins de seguimento do recurso voluntário será:

a) devolvido ao depositante, se aquela lhe for favorável;

b) convertido em renda, devidamente deduzido do valor da exigência, se a decisão for contrária ao sujeito passivo e este não houver interposto ação judicial contra a exigência no prazo previsto na legislação.

§ 4º – Na hipótese de ter sido efetuado o depósito, ocorrendo a posterior propositura de ação judicial contra a exigência, a autoridade administrativa transferirá para conta à ordem do juiz da causa, mediante requisição deste, os valores depositados, que poderão ser complementados para efeito de suspensão da exigibilidade do crédito tributário”.

O art. 33 da MP, por sua vez, prescreveu:

“Art. 33 – O direito de pleitear judicialmente a desconstituição de exigência fiscal fixada pela primeira instância no julgamento de litígio em processo administrativo fiscal regulado pelo Decreto nº 70.235, de 1972, extingue-se com o decurso do prazo de 180 dias, contados da intimação da referida decisão.

§ 1º – No caso em que for dado provimento a recurso de ofício, o prazo previsto no caput começará a fluir a partir da ciência da primeira decisão contrária ao sujeito passivo.

§ 2º – ………………….

§ 3º – A decisão administrativa final que eventualmente fixe exigência superior à definida pela primeira instância de julgamento, enseja a abertura de novo prazo, como previsto no caput, para desconstituição da exigência fiscal”.

No que tange ao depósito para garantia de instância entendo que apenas o princípio da ampla defesa tem pertinência com o tema sob exame. O princípio do devido processo legal estará satisfeito sempre que a lei estabelecer previamente o procedimento administrativo a ser observado. Seu objetivo é evitar que o aplicador da lei improvise regras a seu talante no curso do processo. O princípio do contraditório, também, estará satisfeito com a ciência dos fatos e da imputação com a respectiva fundamentação legal, à vista do processo e a oportunidade que se dá ao sujeito passivo da obrigação tributária de contestar, de impugnar a pretensão do fisco. Assim, resta examinar o princípio da ampla defesa.

A garantia de instância não pode ser confundida com o princípio do solvet et repete, já abolido de longa data. Sua finalidade é a de preservar a Fazenda contra futura insolvência do devedor. Não importa o que o parecerista da PGFN tenha dito para justificar tal medida. Por isso, nada tem a ver, também, com a suspensão da exigibilidade do crédito fiscal de que cuida o art. 151, III do CTN, invocado pelos opositores do depósito. Para tanto, basta a impugnação ou o recurso, com ou sem depósito, conforme dispuser a legislação competente.

O que a jurisprudência não admite, e nem deve admitir, é a exigência prévia do depósito para ingresso em juízo, por afrontar o princípio da inafastabilidade da jurisdição. Outra coisa, bem diversa é a sua exigência em grau de recurso, em procedimento administrativo, quando já exercitado o princípio do contraditório, assim mesmo, limitado o depósito a 30% do débito. Dir-se-á que o contraditório mantém profunda interação com o princípio da ampla defesa que envolve o direito a recursos. Sustenta-se que sem recurso o contribuinte não estaria exercitando plenamente o seu sagrado direito de defesa, porque decisões administrativas de primeira instância, normalmente, são favoráveis ao fisco. Somente por via do recurso, a ser apreciado pelo órgão colegiado de que participa o representante do contribuinte, é que o defendente teria a oportunidade de provar o seu ponto de vista. Certo. Só que depósito de 30% do valor da exigência fiscal, fixado em decisão de primeira instância, não limita nem restringe as hipóteses de recursos.

Até a primeira metade da década de sessenta a legislação tributária, em geral, exigia o depósito integral do débito desde a defesa de primeira instância administrativa; nem por isso essa legislação foi acoimada de inconstitucional ao longo de sua vigência. Ao contrário, inúmeras decisões dos diversos tribunais do País determinando a restituição, com juros e correção monetária, dos depósitos feitos para garantia de instância administrativa são bem indicativas da regularidade e validade desses depósitos. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, inúmeras vezes, e em recentíssimos acórdãos quer em grau de recurso extraordinário, quer em sede de Adin proclamou a tese de que o depósito prévio para admissibilidade do recurso administrativo não ofende o art. 5º, LV da CF. Além do julgado mencionado no parecer da PGFN (RE 210246-GO) pode-se acrescentar os seguintes: RREE ns.210.229/DF e 210.242/PA, Rel. Min. Carlos Velloso; RE 210.235/MG, Rel. Min. Maurício Correa; Adimc 1049/DF, Rel. Min. Carlos Velloso; RREE ns., 210234, 210369, 210380, 218752, 210248, 210370 etc.

As multas impostas no âmbito do INSS e da SUNAB sempre se sujeitaram ao regime do depósito prévio para recorrer. Nenhuma oposição há a respeito. Contudo, o princípio é o mesmo. A própria decisão judicial, no âmbito trabalhista, apesar do expresso princípio constitucional da universalidade da jurisdição, só comporta recurso mediante depósito das verbas incontroversas. Já tive oportunidade de apresentar anteprojeto, exigindo depósito do valor da indenização fixada nas expropriatórias, como condição para apelar, com o fito de evitar desapropriações descriteriosas que levam o poder público à insolvência.

Outrossim, questão da má apreciação da defesa de primeira instância não tem pertinência com o tema sob análise. Se for argüir a inconstitucionalidade sempre que determinada norma ou lei estiver sendo mal aplicada por quem de direito, todo ordenamento jurídico deveria ser questionado. A solução para isso está na preparação de uma burocracia estável, sadia, competente e dedicada. E a reforma administrativa em curso não só deixou de se preocupar com esse aspecto, como também, criou um obstáculo insuperável a esse desiderato à medida em que plantou a semente da intranqüilidade e da instabilidade no seio do funcionalismo, pilar da burocracia.

No que diz respeito ao prazo decadencial de 180 dias, para invalidação judicial da decisão de primeira instância administrativa, em que pese a desprimorosa redação do texto, pode-se superar essa falha por via de interpretação lógica e sistemática. Aquele prazo se aplica, obviamente, para a hipótese de renúncia ao recurso administrativo. Tanto é que, na hipótese de recurso ex ofício, se reformada a decisão, a partir dessa decisão passará fluir o referido prazo, conforme está expresso no § 1º do art. 33 retro transcrito. Irrelevante o que o douto parecerista da PGFN tenha pensado ou escrito ao apresentar a propositura legislativa. Elaborado o instrumento normativo, este passa a ter vontade própria devendo sujeitar-se à interpretação segundo as regras da hermenêutica. Essa medida, na realidade, irá contribuir para prevenir o ajuizamento simultâneo de duas ações conflitantes: a execução fiscal, de um lado, e a ação de anulação do débito fiscal, de outro lado. Nesse particular, o proponente da medida atirou no que viu e acertou no que não viu, alcançando o objetivo involuntariamente.

O estabelecimento de prazo decadencial para o exercício do direito à ação, independentemente das esdrúxulas razões invocadas no parecer da PGFN, nem de longe, arranha o princípio constitucional de acesso ao Judiciário. Tanto é assim que as hipóteses de decadência do direito à ação acham-se espraiadas por todo o ordenamento jurídico pátrio (mandado de segurança, renovatória, anulação de casamento, ação civil de reparação por abuso na manifestação de pensamento etc).

Na verdade, esse prazo decadencial de 180 dias é medida que se articula e se completa com a primeira medida, ou seja, a exigência do depósito de 30%. Mantida esta exigência, torna-se conveniente a manutenção do prazo decadencial. Realmente, ocorrendo o insucesso do recurso o depósito será convertido em renda, se inexistente ação judicial (art. 33, § 3º, “b”); se proposta ação judicial o depósito será transferido à disposição do juiz da causa (§ 4º do art. 33). Essa sistemática, que é racional, não seria exequível se a Fazenda tivesse que aguardar indefinidamente a decisão do sujeito passivo de recorrer ou não à via judicial.

Enfim, se o sujeito passivo renunciou ao seu direito de recorrer deve ingressar, desde logo, com ação judicial a menos que se conforme com a decisão administrativa de primeira instância. Se recorrer administrativamente o prazo de 180 dias para invalidação da decisão administrativa passará a fluir da última decisão que lhe for desfavorável. É a única interpretação cabível, visto que, a propositura de ação judicial no curso do recurso administrativo importaria na desistência daquele recurso, conforme prescreve o parágrafo único do art. 38 da Lei nº 6.830/80. É de se lembrar, no entanto, por oportuno que o STF já manifestou entendimento de que a propositura de ação declaratória não implica na desistência do recurso administrativo, porque essa ação não corresponderia a qualquer daquelas previstas no citado art. 38 (RE 107698-RJ, Rel. Min. Neri da Silveira, DJ de 01.11.91, p. 15570.

Contudo, ressalvada a questão da inconstitucionalidade não há como deixar de reconhecer que seria conveniente que aqueles dispositivos, editados com a habitual impropriedade, obscuridade e inoportunidade pelo legislador palaciano, fossem banidos do ordenamento jurídico. Assim, espera-se que o Congresso Nacional aprecie e rejeite a MP nº 1621.

* Kiyoshi Harada
Advogado, diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo.

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