Algumas considerações sobre o princípio do interesse público no âmbito do Direito Administrativo

I – INTRODUÇÃO

O presente ensaio objetiva explicitar os contornos do princípio do interesse público, cuja incidência é de capital importância na seara do Direito Público, em especial no Direito Administrativo.

Inicialmente, procuraremos fazer um breve comentário acerca da importância dos princípios não só como método para uma adequada aplicação da lei, mas também como medida decisiva para uma interpretação e compreensão sistemática da ciência jurídica como um todo. Consignada essa ressalva de caráter preambular, faremos uma sucinta exposição dos elementos fundamentais à construção do regime jurídico-administrativo, para, logo após, ingressarmos na temática de fundo, atinente ao exame do princípio do interesse público.

Entendemos que tais aspectos preliminares são relevantes, na medida em que, mais importante do que compreender qual a definição de “interesse público” no âmbito do direito administrativo, é dimensionar qual a relevância que assume uma visão principiológica do ordenamento jurídico. De forma que não adianta conceituar interesse público sem realçar, com a devida ênfase, a força da incidência de suas conseqüências como efetivo “princípio” reitor do direito administrativo.

De modo que, lidando diretamente com a temática proposta, no intuito de cumprir satisfatoriamente com o mister do qual nos incumbimos, recorreremos às ponderações que a doutrina nacional faz a respeito do assunto. De outro lado, com amparo nesses conhecimentos dogmáticos, não poderíamos deixar de externar uma leitura própria sobre o assunto proposto, observação direcionada aos aspectos que, ao nosso sentir, se afiguram mais relevantes para uma adequada compreensão da matéria.

Apesar de estarmos cientes do risco assumido, preferimos teimar pela inconsistência de nossas conclusões, fruto de nossa natural e inarredável limitação, – a pecar por mera reprodução do pensamento alheio e, assim, incorrer em flagrante tautologia, razão pela qual, no presente opúsculo, temos a ousadia e o firme propósito de, pelo menos, lançar uma compreensão própria e pessoal das idéias desenvolvidas pelos ilustres tratadistas que voltaram sua atenção para o estudo desta árida temática do direito administrativo.

II – A IMPORTÂNCIA DE UMA LEITURA PRINCIPIOLÓGICA E SISTEMÁTICA DO DIREITO

A compreensão do ordenamento como sistema foi gradualmente sendo disseminada em nosso país, tendo atingido seu ápice fundamentalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Ainda que com significativo atraso, passados quase quinze anos de vigência da Constituinte Cidadã – a percepção do fenômeno da ciência jurídica como conjunto de regras de convivência que necessariamente devem estar em harmonia com uma série de princípios, sob perspectiva unitária, ao que nos parece, somente hoje encontrou sua sedimentação plena. Vencidas as resistências remanescentes, a compreensão de que as normas constitucionais são hierárquica e axiologicamente superiores em relação as demais espécies legislativas, e de que os princípios devem informar e iluminar a interpretação e aplicação da lei em sentido estrito, embora longe de se constituir em novidade, no nosso modesto entendimento, somente ficou evidenciada após a Carta Federal que, antes de mais nada, foi uma “Carta de Princípios”.

Isso fundamentalmente porque a diversidade e peculiaridades das situações que o cotidiano nos apresenta, somada ao significativo aumento do número de demandas em razão da facilidade de acesso ao Judiciário – e que bom que assim seja – revela ser tarefa impossível querer disciplinar todas as situações da vida prática que têm a potencialidade de gerarem conflitos de interesses que oportunamente serão levados à apreciação do Poder Judiciário, por mais que o legislador pátrio tenha uma indisfarçável e confessa vocação para o casuísmo. Neste aspecto, são os princípios que resolvem determinados casos em que existem lacunas normativas que necessariamente devem ser colmatadas pelo intérprete e pelo julgador, especialmente em relação a este último, a quem a lei não permite denegar jurisdição.

Ao lado disso, cresce a importância dos princípios como veículo para a transmissão dos valores e das escolhas entendidas como relevantes num determinado tempo, no seio de uma certa sociedade, cujo alcance e aplicação não só é capaz de abranger um número indiscriminado de situações, como imprescindível para aplacar o conflito entre normas e, via de conseqüência, preservar a lógica e coerência interna de cada ordenamento jurídico.

Implica dizer, é através da escorreita aplicação dos princípios que, ao invés de um emaranhado de leis, pode-se idealizar a construção de um genuíno sistema jurídico com alguma cientificidade, justamente porque os princípios são diretrizes com alto grau de abstração que subsidiam não só a hermenêutica jurídica como possuem marcante ingerência sobre a própria ordem normativa, vez que também estão impregnados de força normativa. Corroborando este entendimento, o jurista italiano NORBERTO BOBBIO (1), em seu clássico literário “Teoria do Ordenamento Jurídico” aduz o seguinte comentário:

“Para sustentar que os princípios gerais são normas os argumentos vêm a ser dois, e ambos válidos: antes de mais nada, se são normas aquelas das quais os princípios gerais são extraídos, através de um procedimento de generalização sucessiva, não se vê por que não devam ser normas também eles: se abstraio de espécies animais obtenho sempre animais, e não flores ou estrelas. Em segundo lugar, a função para a qual são abstraídos e adotados é aquela mesma que é cumprida por todas as normas, isto é, a função de regular um caso. E com que finalidade são extraídos em caso de lacuna? Para regular um comportamento não-regulamentado: mas então servem ao mesmo escopo a que servem as normas expressas. E porque não deveriam ser normas?”.

Portanto, os princípios servem de instrumento para uma percepção unitária e sistemática do direito, razão pela qual, certa feita, já se disse – aliás com extremo acerto – que conhecer as normas jurídicas sem a adequada compreensão dos princípios que as informam é mais ou menos como conhecer as árvores sem conhecer a própria floresta, ou seja, conhecer o particular sem ter a noção do que seja o todo, primar pela individualidade em detrimento do conjunto. Não foi à toa que igualmente coube ao mesmo jurista italiano (2) afirmar que “as normas jurídicas não existem isoladamente, mas sempre em um contexto de normas com relações particulares entre si”.

Em se tratando do nosso próprio arcabouço jurídico, não se pode olvidar que a Carta Federal de 88, em capítulo próprio, cuidou especificamente da Administração Pública, estruturando-a com base nos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, especificamente no seu artigo 37. A par disso, em reforço ao que já foi dito, a Lei Maior também introduziu uma série de garantias ao direito penal. Igualmente, mitigou a ótica essencialmente individual e privatística sobre a qual repousava o direito civil. De modo que a “constitucionalização” do direito administrativo, evidenciada na assimilação das diretrizes básicas antes elencadas, também passa pela assimilação de princípios, cuja ciência, consoante adiante se verá, é pressuposto fundamental para que possamos definir o nosso regime jurídico-administrativo e, assim, partirmos para o direto enfretamento do tema proposto.

Exemplo notável dessa ingerência é que diversos doutrinadores, na tentativa de conceituar o direito administrativo, adotaram o “critério da administração pública”, definindo o direito administrativo como conjunto de princípios que regem a administração pública, como bem adverte MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, em sua obra Direito Administrativo (Atlas, 2001, 13ª Edição, São Paulo, p. 51) – ao mencionar como prosélitos deste entendimento doutrinadores de escol, tais como, ZANOBINI, CIRO VITTA, LAUBADÈRE, GABINO FRAGA, OTTO MAYER, RUI CIRNE LIMA, FERNANDO ANDRADE DE OLIVEIRA e HELY LOPES MEIRELLES, dentre outros.

III – REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO

Feita essa advertência preliminar, no tocante a importância dos princípios para a compreensão da ciência jurídica, antes mesmo que possamos falar no princípio do interesse público propriamente dito, indispensável traçar alguns breves comentários sobre o regime jurídico-administrativo, na medida em que ambos assuntos estão intimamente relacionados, consoante veremos em momento oportuno.

Ao se falar em regime jurídico-administrativo fica subentendido que a ciência da Administração Pública, ou seja, a relação entre o administrador público e seus administrados reclama um tratamento próprio e particular, diferente, portanto, das relações que os particulares travam entre si. Neste sentido, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (3), definindo que o conjunto das prerrogativas e restrições a que está sujeita a Administração e que não se encontram nas relações entre os particulares constitui o regime jurídico administrativo. Elucidando melhor essa idéia, LÚCIA VALLE FIGUEIREDO (4) sustenta que o regime jurídico-administrativo, na verdade, corresponde a regras próprias que, por força da diferença das situações tuteladas, hão de ter aspectos inteiramente diversos do Direito Privado.

Contudo, quem melhor discorreu sobre o tema foi o brilhante CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, 13ª edição, 2001, p. 26/27), a quem coube definir o regime administrativo como sendo o ponto nuclear de convergência e articulação de todos os princípios e normas de direito administrativo, assumindo roupagem de um efetivo regime jurídico-administrativo cujas “pedras de toque” consistem na (1) supremacia do interesse público sobre o privado e na (2) indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração.

Segundo o abalizado doutrinador, ambos princípios constituem-se em força-matriz do sistema jurídico-administrativo, sendo efetivas premissas sobre as quais se assenta a edificação do direito administrativo, sendo que a supremacia do interesse público – objeto precípuo de nossa atenção – tem como conseqüência não só uma posição privilegiada como preeminente de parte dos órgãos componentes da Administração Pública. Contudo, como bem adverte o ilustre jurista (na melhor acepção do termo contempla), isso não quer dizer haja total e irrestrita liberdade para que o administrador público desempenhe suas atividades ao sabor e talante de seus interesses, na medida em que a função administrativa, repetindo ao que certa vez já se disse, consiste em aplicar a lei de ofício, tendo em vista sempre o aspecto finalístico que a informa, produto de inexoráveis limitações.

Como sustenta HELY LOPES MEIRELLES, in sua clássica obra “Direito Administrativo Brasileiro” (Malheiros, 23ª edição, p. 88), a finalidade terá sempre um objetivo certo e inafastável de qualquer ato administrativo: o interesse público. É justamente este escopo que deve pautar todas as ações do administrador público, qual seja, a finalidade pública, premissa fundamental da gestão da res publica. O importante, por ora, é deixar bem caracterizada a autonomia do direito administrativo, consubstanciada no regime jurídico-administrativo, do qual emergem alguns princípios essenciais, dentre os quais tem-se o princípio do interesse público, que a partir de agora passamos a expor com maior minúcia.

IV – PRINCÍPIO DO INTERESSE PÚBLICO

Compulsando-se os manuais amiúde encontrados na doutrina nacional o pesquisador se depara, inicialmente, com uma certa dificuldade, na medida em que na quase totalidade dessas obras não há um capítulo próprio no qual o “interesse público” seja tratado como efetivo princípio. Muito mais comum é, por exemplo, encontrar a expressão “supremacia do interesse público” como viga mestra sobre a qual se assenta o sistema jurídico-administrativo, consoante fizemos expressa referência no capítulo anterior. Perceber que o princípio do interesse público encontra-se inserido dentro desse contexto é o primeiro passo para começar a compreendê-lo na sua inteireza.

O simples fato do princípio do interesse público não ter sido objeto de catalogação expressa de parte do nosso legislador constituinte – que, ao construir a redação do artigo 37 da Constituição Federal, explicitou tão-somente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência como sendo as premissas constitucionais regentes da Administração Pública – não quer dizer que ele não tenha sido contemplado. Muito antes pelo contrário, embora não haja referência específica, resta óbvio que sua adoção encontra implícita recepção em nosso ordenamento, assumindo, de igual parte, status constitucional, na medida em que, como vimos anteriormente, todas as ações adotadas pelo administrador público devem ter como motivação de fundo a obediência ao interesse da coletividade. Cumpre apresentar quais os suportes que autorizam nossa afirmação.

O próprio princípio da legalidade, que encabeça a relação das prescrições gerais e abstratas inscritas no mencionado art. 37 da nossa Lei Fundamental, ao estipular que o administrador tem sua vontade submetida à lei – dentro da idéia de “interesse público” – também tem o objetivo de atender o interesse da sociedade, tanto é que a “lei” caracteriza-se por ser uma prescrição geral, imperativa, impessoal e abstrata, um veículo em serviço da sociedade como um todo. Quer-se dizer, com isso, que o princípio da legalidade não está dissociado da idéia de atender ao interesse público, e nem poderia ser diferente.

Complementando tal idéia, cumpre aduzir que o princípio do interesse público não só subjaz o princípio da legalidade como, de certo modo, guarda estreita afinidade com os demais princípios que informam a atuação da Administração Pública em geral. A um, porque ao sustentarmos que o princípio da legalidade conforta interesse público, por conseguinte, estamos trabalhando com a idéia de que a noção de “interesse público” alcança os demais princípios, justamente pelo fato da legalidade estrita ter ampla abrangência e, conseqüentemente, estar francamente disseminada no âmbito do nosso regime jurídico-administrativo. Tanto é que a doutrina é tranqüila ao afirmar que, sob a rubrica da “legalidade”, pode-se enfeixar todos os demais princípios peculiares ao direito administrativo, sejam eles explícitos ou implícitos. A dois, porque, independentemente da aproximação do interesse público com a noção que se tenha de legalidade, aquele também encontra em seu interior amplo espectro de ação, abrangendo e tangenciando não só reflexa como diretamente os demais princípios, sendo indissociável para a compreensão e dimensionamento da impessoalidade, da moralidade e da publicidade, preceitos que originariamente foram impostos ao administrador público pela Carta Federal. Nesse aspecto não há como dizer o contrário.

Tanto é que, como vimos a pouco, o regime jurídico-administrativo tem como um de seus assentos a supremacia do interesse público, circunstância que, por si só, já seria suficiente para demonstrar que o nosso sistema alberga, com todas as luzes, o princípio do interesse público – ainda que não faça expressa referência e que, a priori, tal conclusão não seja lançada de plano. Percebe-se assim que, aos poucos, gradualmente, estamos situando o “interesse público” no nosso sistema de direito positivo.

RUI CIRNE LIMA (5), na sua notável obra Princípios do Direito Administrativo, de certa forma, alberga o interesse público sob denominação outra, qual seja, o princípio de utilidade pública que, segundo sustenta, dá-nos, por assim dizer, o traço essencial do Direito Administrativo. A utilidade pública é a finalidade própria da administração pública, enquanto provê à segurança do Estado, à manutenção da ordem pública e à satisfação de todas as necessidades da sociedade. Malgrado a correção das premissas, entendemos que ainda há de ser buscada uma explicação mais esclarecedora. E certamente há de haver uma que nos agrade.

A dificuldade em definir o que seja “interesse público”, longe de representar abstração e esvaziamento semântico, é decorrência não só da amplitude do seu campo de ação, mas, sobretudo, fruto da errônea percepção, não raras vezes idealizada, de que é possível encontrar uma noção fixa e imutável para a definição dos termos. Especialmente no que refere a este último aspecto, é de se ver que “interesse público” trata-se de um conceito indeterminado, que necessariamente precisa ser contextualizado. Contudo, consoante o ensinamento de MARIA LÚCIA VALLE DE FIGUEIREDO, isto não implica em dizer que ele não detenha um núcleo mínimo de compreensão, sendo que sua conotação e denotação deverão ser extraídas das normas dos princípios informadores do ordenamento. Conclui a eminente jurista no sentido de que seu conceito será dado à luz do instituto, que se examina, e do próprio sistema. Desse modo, já sabemos, de certa forma, onde procurar os elementos para a precisa definição do princípio do interesse público.

Prosseguindo no estudo do tema, cumpre abordar um aspecto fundamental. Aprioristicamente, quando falamos em interesse público, no objetivo de facilitar sua compreensão – e até mesmo por força da tradição romanística em diferenciar o direito público do direito privado, dicotomia cada vez mais ultrapassada – o imaginamos como residente num compartimento estanque e distanciando do interesse privado, o que, na preciosa lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, se constitui num rematado equívoco.

Isto porque, nas judiciosas ponderações do aludido doutrinador, consta que o interesse público – como o interesse do todo, nada mais é do que uma forma, um aspecto, uma função qualificada do interesse das partes, ou seja, não há como se conceber que o interesse público seja contraposto e antinômico ao interesse privado, caso assim fosse, teríamos que rever imediatamente nossa concepção do que seja a função administrativa. A vetusta idéia de que os indivíduos devem servir para o Estado encontra-se há muito superada, de modo que a concepção hodierna caminha no sentido de que é o ente estatal que deve atender e servir aos interesses da coletividade, sendo esta a verdadeira razão fundante do pacto social (6). Tomamos de empréstimo o acerto e a correção das conclusões alinhavadas pelo ilustre doutrinador, no intuito de perquirir o seguinte: “Poderá haver um interesse público que seja discordante do inexistente de cada um dos membros da sociedade?”. Decerto que não.

Cumpre arrematar, enfim, o conceito do que seja “interesse público”. O interesse público, portanto, nada mais é do que uma dimensão, uma determinada expressão dos direitos individuais, vista sob um prisma coletivo. O aludido princípio obtém sua melhor definição mais uma vez por CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (7), que o cunhou como sendo o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelos simples fato de o serem.

Malgrado a separação entre direito público e privado perdure até hoje, é de muito mais por razões meramente didáticas, cumpre observar que tal delimitação não encerra uma segregação absoluta e definitiva dos objetos enquadrados numa ou noutra categoria, razão pela qual devemos conceber o interesse público como resultado de uma simbiose entre o interesse particular ou pessoal qualificadamente considerado e as prerrogativas da Administração Pública. Embora possamos decompô-los, até mesmo para melhor discernir a função pública da atividade privada, o fundamental é que não percamos a compreensão do que seja o todo.

O que ocorre, e isso sim é preciso deixar bem claro, é que nem sempre a Administração atua em estrita obediência à finalidade pública e, conseqüentemente, em não o fazendo, desatende o interesse público. Embora goze de presunção de legitimidade, o simples fato de determinado ato administrativo ser concebido no ente estatal não quer dizer que, fatalmente, aconteça o que acontecer, ele irá realizar interesse público. Isto porque existe uma subdivisão importante, que fala em interesses primários e secundários da Administração, cujo exame, agora, se mostra oportuno.

Os interesses primários englobam a Administração Pública no real e genuíno exercício do seu ofício, como ente imparcial, enquanto que os interesses secundários são decorrência do desempenho das suas atividades de gestão, desta feita como certa parcialidade, não objetivando fins tão nobres, mas, isto sim, a própria sobrevivência ou higidez dos cofres públicos, ainda que isto potencialize afronta à lei.

Em mais uma primorosa lição de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (8), cuja remissão é mais uma vez inevitável, superada a questão de considerar o interesse público como um interesse exclusivo do Estado, evita-se a errônea identificação do interesse público como sendo aquele externado pela entidade que representa o Estado, consistente em qualquer das pessoas jurídicas de direito público interno, na medida em que é imperioso reconhecer que, tal qual acontece com os cidadãos, existem meras individualidades que encarnam no Estado enquanto pessoa e, portanto, assemelham-se aos interesses de qualquer outro sujeito – com a diferença fundamental que, enquanto o particular pode fazer seu interesse individual, o Estado só poderá promover a defesa dos seus interesses particulares (“interesse secundário”) quando estes não conflitarem com o interesse público propriamente dito (“interesse primário”).

Na nossa modesta compreensão, digerindo as inteligentes conclusões encetadas pelo renomado doutrinador, a mesma distância que separa a “administração pública” do “governo”, também afasta o “interesse primário” do “interesse secundário”. Isto implica dizer que o interesse primário está mais para a administração publica, assim como o interesse secundário está mais para o governo, guardadas as devidas proporções. Enquanto aquele visa a atender as necessidades coletivas propriamente consideradas, este assume cunho político e, de certa forma, visa a atender os interesses relacionados à gestão do próprio ente estatal.

V – O PRINCÍPIO DO INTERESSE PÚBLICO E A SUA CORRESPONDÊNCIA NO DIREITO POSITIVADO

Visto que o princípio do interesse público é uma dos pilares de sustentação do nosso direito administrativo, cumpre declinar, ainda que superficialmente, alguns dos institutos sobre os quais o aludido princípio irradia seus efeitos. Até mesmo porque a definição jurídica do interesse público deve encontrar correspondência no direito positivo para que se afigure útil e servível ao estudo do direito administrativo.

Assim, no que atine as restrições que recaem sobre a propriedade privada, insta ter presente que o instituto da servidão e da desapropriação, por exemplo, retratam com fidelidade uma das facetas do interesse público. Neste momento, aproveitamos para pôr em xeque a definição de interesse público e ver se, efetivamente, a definição alinhavada é adequada e, conseqüentemente, está imune a qualquer sorte de distorção para continuar aplicável ou se, ao contrário, precisamos reformular ou reconstruir o conceito esboçado sob algum aspecto para que o encaixe das idéias se afigure possível.

A desapropriação, em condições normais, consabidamente, nada mais é do que o procedimento pelo qual o Poder Público, objetivando atender a uma necessidade ou utilidade pública ou, ainda, um interesse social, após prévia notificação, despoja o proprietário de seu bem, impondo a incorporação deste ao patrimônio público mediante o justo e adequado ressarcimento do particular.

Imaginemos hipótese em que, para o fim de aperfeiçoar a malha viária, o Poder Público municipal resolva, mediante a expedição de decreto expropriatório, despojar determinado sujeito do imóvel no qual habitava por mais de 20 anos com sua família. Suponhamos que dito bem tenha servido de residência às gerações passadas da referida família e, mais, que a sua localização seja próxima ao estabelecimento comercial que, presumamos, seja a fonte da qual decorre a atividade produtiva da família. Como se vê, com toda a clareza, não resta dúvida de que o ato administrativo determinante a expropriação irá causar um transtorno tremendo a estas pessoas que, de uma forma ou outra, ficarão privadas de desfrutar da propriedade que, afora a facilidade e conforto que apresentava – um deles consistente no fato de situar-se próxima ao empreendimento da família, – tinha um relevante e insubstituível valor estimativo, fundamentalmente porque serviu de abrigo aos antepassados daquela casta familiar. Individualmente, e, com bastante segurança, podemos dizer que a expropriação forçada não atende interesse individual desses indivíduos que, até então, residiam no imóvel, na medida em que eles terão de curvar-se à prevalência do interesse público, desocupando o imóvel com os predicados antes mencionados, diante da determinação de que o mesmo seja compulsoriamente incorporado pelo Estado. Contudo, se deixarmos de lado as questões pessoais e subjetivas – mantido o aspecto individual, percebe-se que a melhora do sistema viário municipal, ao pretender melhorar o fluxo do trânsito, é compatível do interesse daqueles sujeitos, senão como pessoas individualmente consideradas, mas enquanto cidadãos residentes naquela municipalidade, de modo que o escopo motivador da expropriação beneficia toda a coletividade, inclusive as próprias vítimas do decreto expropriatório, embora essa idéia fique obnubilada num primeiro momento, ostentando difícil visualização.

Concluindo, não há dúvida de que, em remissão ao que já se disse, o interesse público, longe de se constituir numa categoria oposta, convive com o direito individual propriamente considerado, não estando divorciado dos seus interesses. Mais, exsurge cristalino que o princípio do interesse público encontra patente aceitação nos institutos próprios do direito administrativo. De modo que, assim como mencionamos hipótese de desapropriação, poderíamos falar no poder ordenador da administração, usualmente conhecido como poder de polícia, ou até mesmo na característica dos contratos públicos, que ensejam rompimento unilateral de parte da Administração – existindo vários exemplos da repercussão do princípio do interesse público no âmbito do direito administrativo.

De modo que, encaminhando o fecho de nossa conclusão, o que devemos ter por certo é que não faltará instituto do direito administrativo em que não esteja presente, com maior ou menor força, os ditames decorrentes do interesse público, princípio basilar que, consoante procuramos demonstrar ao longo do presente opúsculo, apresenta fundamental prestígio para o adequado desempenho da Administração Pública enquanto função estatal que visa a atender aos interesses e necessidades da coletividade.

VI – UM CASO EXTRAÍDO DA JURISPRUDÊNCIA

Neste último tópico, ilustrando a temática exposta, reproduzimos a seguir decisão que retrata um precedente jurisprudencial oriundo do Supremo Tribunal Federal, cujo julgamento conduziu ao exame da indisponibilidade do interesse público e de suposta ofensa ao princípio da legalidade. O aresto referido foi ementado nos seguintes termos:

“Poder Público. Transação. Validade. Em regra, os bens e o interesse público são indisponíveis, porque pertencem à coletividade. É, por isso, o Administrador, mero gestor da coisa pública, não tendo disponibilidade sobre os interesses confiados à sua guarda e realização. Todavia, há casos em que o princípio da indisponibilidade do interesse público deve ser atenuado, mormente quando se tem em vista que a solução adotada pela Administração é a que melhor atenderá à ultimação deste interesse. Assim, tendo o acórdão recorrido concluído pela não onerosidade do acordo celebrado, decidir de forma diversa implicaria o reexame da matéria fático-probatória, o que é vedado nesta instância recursal (Súm. 279/STF). Recurso extraordinário não conhecido.”

(STF – 1ª Turma; RE n° 253885/MG; Recurso Extraordinário, Relatora Ministra Ellen Gracie Northfleet, julgado em 04/06/02)

Examinando o inteiro teor dessa decisão, depreende-se que a interposição do recurso extraordinário deu-se sob a alegação de que determinado acordo firmado entre a Municipalidade recorrente e seus agentes teria violado o princípio da legalidade e o princípio do interesse público, diante da inexistência de lei autorizadora. Considerando que “o acordo serviu a uma mais rápida e efetiva consecução do interesse público”, ao destacar o caráter alimentar do pacto destinado ao pagamento de salários dos servidores municipais, a nobre julgadora entendeu que não houve a caracterização de ofensa ao art. 37 da Constituição Federal, muito antes pelo contrário – de modo que, reconhecendo a procedência do pedido dos servidores e providenciando a pactuação com os beneficiários, a Administração nada mais fez do que o elogiável exercício da autotutela estatal, dispensando o recurso ao Judiciário.

Parece-nos que a decisão foi posta na forma adequada. A indisponibilidade do interesse público decorrente da transação entre administrador e administrado deve ser relativizada, contanto que a solução última adotada tenha atendido plenamente à consecução do interesse público que, no caso, consistia na observância dos direitos dos servidores beneficiários à percepção de resíduos salariais que lhes cabiam. Seria estranho que, sob o argumento da indisponibilidade do interesse público, a Administração estivesse impedida de anular ato administrativo e, conseqüentemente, reconhecer a procedência de pedido formulado pelos respectivos servidores. Mais uma vez, na nossa modesta ótica, evidencia-se aqui a distinção entre interesse primário e interesse secundário, ponto sobre o qual já discorremos. Somente a título deste último é que encontraria justificativa a eventual resistência da Administração em revisar os seus próprios atos como forma nítida de protelar o julgamento de uma pendência judicial cuja derrota já estava mais do que anunciada. No momento em que a administração celebra acordo com seus servidores, no qual reconhece procedência do pleito contra si formulado, atitude merecedora dos maiores encômios, é que está efetivamente arcando com as suas responsabilidades e, conseqüentemente, honrando e prestigiando a tutela do interesse público propriamente dito.

VI – CONCLUSÃO

O presente trabalho procurou dimensionar o princípio do interesse público no direito administrativo, expondo, ainda que em apertada síntese, alguns de seus contornos fundamentais.

Partindo dos estudos da doutrina, especialmente das judiciosas conclusões de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO – em nossa modesta ótica, um dos melhores juristas brasileiros – procuramos conciliar a assimilação teórica e abstrata do princípio sem, com isso, nos afastarmos de cotejar tais premissas no direito positivo. Com o fim de explicitar a efetiva consagração do princípio em tela, elegemos um caso da jurisprudência para ilustrar temática tão importante para a compreensão do direito administrativo.

Com base no que vimos, tem-se que o princípio do interesse público é onipresente, devendo, em tese, pautar a essência de todo e qualquer ato administrativo. Estamos seguros de que a matéria, ao contrário da primeira impressão que se possa ter, não é tão singela quanto parece, de forma que, sem sombra de dúvida, o tema em questão tem potencial para ensejar uma abordagem mais aguda e, por conseqüência, muito mais competente do que a nossa. De qualquer forma, estamos satisfeitos por lançar a nossa tinta, embora saibamos que cores muito mais vivas ainda mereçam ser lançadas para que a matéria tenha um estudo condizente com a sua importância.

Notas

1. BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 9ª edição, Brasília, UNB, 1997, p. 158/159.

2. Obra citada, p. 19.

3. Obra citada, p. 66.

4. Curso de Direito Administrativo, Ed. Malheiros, p. 32.

5. LIMA, RUI CIRNE. Princípios do Direito Administrativo. 5ª edição. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1982, p. 15/16.

6. Como bem salienta MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, em sua obra anteriormente citada (p. 69), “O Direito deixou de ser apenas instrumento de garantia dos direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem estar coletivo.

7. Obra citada, p. 59.

8. Obra citada, p. 63.

* Márcio Soares Berclaz
Bacharel de Direito em Porto Alegre-RS

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