Anulação do certame licitatório e ampla defesa

A anulação, consoante orientação firmada pela doutrina e jurisprudência de Direito Administrativo, corresponde ao desfazimento do ato administrativo em decorrência de razões diretamente resultantes de sua ilegalidade. A anulação pode ser promovida pelo Judiciário ou pela própria Administração, de ofício o mediante provocação de terceiros, sempre que se detectar a causa de invalidação que vicia determinado ato praticado em desconformidade com as normas e regulamentos em vigor.

Nesse sentido, aliás, é a orientação que dimana das Súmulas 346 e 473 do Colendo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tais súmulas afirmam, respectivamente, de modo explícito e claro que “a Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos” e que “a Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados o direitos adquiridos e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.”

Declarada a nulidade do ato, estabeleceu-se, outrossim, que os efeitos gerados retroagem à data em que ele foi praticado, desconstituindo-se todas as conseqüências geradas a partir de sua edição (efeitos ex tunc).

Em sede de licitação, a Lei 8.666/93 ao se referir ao tema em comento, o que faz também tratando da revogação do certame, estabelece, ipsis verbis, que: “A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado” (art. 49).

A anulação resultará, pois, de haver a constatação de ilegalidade, sendo ela imposta à Administração sempre que detectar-se vício que impeça os efeitos do ato praticado. Não se confere à Administração, como visto, mera faculdade ou qualquer poder para deliberar acerca da oportunidade e conveniência da anulação; a ela se impõe o dever de declarar nulo o ato praticado em desconformidade com a norma, desconstituindo, em seguida, os efeitos que então foram gerados.

Embora se discuta na doutrina a possibilidade de convalidação do ato praticado em desconformidade com a orientação normativa, não é ela aceita de modo pacífico, até porque aceita essa tese estar-se-ia, como apontam alguns, negando o princípio da legalidade. Discorrendo acerca do assunto, Maria Sylvia Zanella de Pietro (in, “Direito Administrativo” – Ed. Atlas, 9ª ed., pág. 195), assevera que “… a Administração tem, em regra, o dever de anular os atos ilegais, sob pena de cair por terra o princípio da legalidade”. Em seqüência ao raciocínio formulado, acrescenta que “… No entanto, poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante da anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal; nesse caso, é o interesse público que norteará a decisão”.

Observa-se, entretanto, que a orientação expressada pela ilustre administrativista não é a que prepondera, senda negada por autores de nomeada, como é o caso de Hely Lopes Meirelles, que não aceitam sequer a existência de atos administrativos anuláveis ante a necessidade de que venha a imperar sempre a legalidade administrativa em detrimento do interesse privado.

Apurando-se a ilegalidade, impõe-se à Administração a decretação de nulidade do ato, assim como a desconstituição dos efeitos gerados.

Cumpre rememorar, no entanto, que a anulação deve estar fundada em motivos que se prestem a justificar o ato respectivo. Não se anula por mero capricho ou conveniência, ou por pressupor a existência de ilegalidade. Há necessidade de fundamentação aceitável e pertinente. Tudo isto para evitar os atos abusivos reiteradamente vistos no âmbito da Administração Pública que, não desejando levar adiante determinado ato administrativo, invoca razões de legalidade do ato para desconstituí-lo e, assim, fazer cessar os seus efeitos.

Atenta a tais atitudes e buscando coibi-las, porque em geral contrárias ao interesse público e economicamente lesivas ao erário, estabeleceu a Lei de Licitações e Contratos em seu art. 49 a necessidade de fundamentar a Administração o ato de anulação em “parecer escrito e devidamente fundamentado”.

Significa dizer que, pretendendo anular o certame licitatório, necessário será indicar, previamente e de modo expresso, os motivos que se prestam a dar suporte ao ato que, obviamente, devem estar relacionados ao próprio procedimento e ainda assim serem suficientes para justificar o ato de anulação que se pretende praticar.

Constata-se, ademais, que a preocupação com a regularidade de tais atos não se esgota no fato de exigir-se a sua motivação satisfatória. Além da razoável motivação – decorrente de parecer escrito e devidamente fundamentado – deve-se garantir aos interessados no certame que se pretende invalidar as garantias decorrentes do contraditório e da ampla defesa.

Em realidade, ao referir-se ao assunto faz uso a lei de termo até mais abrangente, não cuidando apenas das hipóteses de anulação e revogação, mas sim do “desfazimento do processo licitatório” (art. 49, § 3º). Tudo isso, pelo que se percebe, com o escopo de evitar que, valendo-se de figuras estranhas ao Direito Administrativo, venha o agente público a invalidar o certame sem a invocação de motivos relacionados à sua revogação ou anulação. Em qualquer situação, estando o certame em curso ou encerrado e deliberando o gestor público no sentido de desconstituí-lo, necessário será que se dê expressa ciência do fato aos interessados no procedimento para que, se assim o desejarem, contraponham argumentos e ofereçam documentos que se prestem a impedir ou a inibir a intenção externada.

Não se admitem, assim, atitudes administrativas que, olvidando a garantia legal – e que é também constitucional (CF: art. 5º, LV) – importe em invalidar-se o certame licitatório sem prévia oitiva daqueles que foram para ele convocados e que, mediante a realização de despesas específicas, dele participaram com a finalidade de estabelecerem, no futuro, uma parceria com a Administração, consubstanciada na execução de uma obra, na prestação de um serviço ou no fornecimento de um bem.

Pode-se dizer, portanto, que a expectativa gerada pelo procedimento instaurado por iniciativa da própria Administração não pode se desfazer por despacho simples e desfundamentado, a exclusivo critério do agente público, com a invocação de uma suposta supremacia de poder do interesse público sobre o interesse privado.

Há de se dar ao interessado necessariamente – pena de nulidade do ato – prévia ciência dos motivos invocados para esse fim, oportunizando-se a ele o direito de questionar as razões invocadas pela Administração e até mesmo o de produção de provas que se prestem a descaracterizar as razões sustentadas para a invalidação do certame.

Merece destaque o fato de que, quando vigia a sistemática imprimida ao tema pelo Decreto-lei 2.300/86, a orientação que então subsistia não possuía o mesmo conteúdo. Por intermédio da disposição contida no art. 39, dispunha o revogado Estatuto das Licitações e Contratos Administrativos que “A Administração poderá revogar a licitação por interesse público, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou mediante provocação de terceiros”. Bem menos exigente em sua redação, não cuidava ele da necessidade de motivação, embora, segundo entendo, não a afastasse. Mas como não exigia isso de modo explícito e claro, comum ver-se, durante sua vigência, despachos que apenas se limitavam a declarar a nulidade do certame licitatório, “por razões de ilegalidade”.

Colhe-se, de todo o exposto, que o ato de anulação do certame licitatório exige motivação e é vinculado, não comportando qualquer juízo discricionário por parte do agente público, a quem compete explicitar os fundamentos da anulação em parecer formalmente emitido e calcado em fundamentação hábil. Hely Lopes Meirelles (in, “Licitação e Contrato Administrativo” – Malheiros Editores, 1996 – pág. 141), com a conhecida e respeitada sapiência, preleciona que “… Não há, nem pode haver, discricionariedade na anulação, porque ela só se justifica quando a motivação da decisão anulatória evidencia a ilegalidade do ato anulado”.

Orientação que dimana da norma atual, implica em que, tendo a autoridade administrativa a intenção de anular o certame licitatório – assim como revogá-lo – deverá firmar previamente os motivos que o levam a assim concluir, notificando, em seguida, todos os interessados no certame licitatório para que, querendo, dentro em um prazo estabelecido, formulem razões que convençam a autoridade de que não possui ela motivos hábeis a justificar a anulação pretendida. Recebidas as argumentações pelos interessados expendidas, deverá a autoridade competente avaliá-las de modo cuidadoso, assim como exigir os pronunciamentos técnicos que venha a entender necessários. Somente após isso, deverá emitir cuidadoso e fundamentado despacho, anulando ou mantendo o certame.

Não atentando a autoridade administrativa para tais exigências legais, nulo e, portanto, sem nenhum efeito será o ato por ela praticado. A respeito de conduta como a ora descrita, lembra Hely Lopes Meirelles (op. cit., pág. 141) que “… se o despacho anulatório é que é nulo por falta de justa causa, por praticado com desvio ou abuso de poder, a parte prejudicada pode obter administrativa ou judicialmente a declaração de sua nulidade, restabelecendo-se o ato ou o procedimento ilegalmente anulado…”. Acrescenta, ainda, que “Ocorrendo tal hipótese, o prejudicado terá direito ou a receber o objeto da adjudicação, ou a ser indenizado dos prejuízos ocasionados pela ilegal anulação da licitação ou de seu julgamento”.

Pode-se afirmar, em suma, que a desconstituição do procedimento licitatório na sistemática introduzida pela Lei 8.666/93, exige e impõe à Administração não só a formulação de justificação razoável, como ainda que se respeite e se garanta a ampla defesa e o contraditório, os quais somente estarão assegurados se previamente forem os licitantes cientificados dos motivos invocados pelo órgão ou entidade licitadora, garantindo-lhes a possibilidade de contraporem os seus argumentos e provas em face dos motivos apresentados.

Anulação, cancelamento ou desfazimento do certame sem garantia de prévia defesa, ou ainda calcada em motivos insuficientes, gerarão a declaração de nulidade do ato correspondente e a conseqüente responsabilização do agente responsável.

*Airton Rocha Nóbrega
Advogado e Professor da EBAP/FGV, ESAD e AEUDF.

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