Manifestações culturais, fauna e o direito ambiental

O art. 215 da Constituição Federal, ao determinar ao Estado Democrático de Direito o apoio e incentivo à valorização e difusão das manifestações culturais, adotou importante visão destinada a assegurar, concretamente, a tutela do patrimônio cultural brasileiro[1], em proveito dos grupos que formaram a sociedade brasileira (art. 216).

Assim, as práticas culturais em nosso País, entendidas fundamentalmente como atividades de recepção e produção cultural, estão claramente associadas aos hábitos culturais (entendendo-se por hábito, como explica Teixeira Coelho[2], uma disposição duradoura adquirida pela reiteração do ato), particularmente diante de atividades que “movem um grupo ou comunidade numa determinada direção, previamente definida sob um ponto de vista estético, ideológico, etc.”, restando embutida em referida concepção um juízo de valor.

Referidos hábitos, num primeiro momento, foram incorporados em nossa Carta Magna de “1988 a” partir da proteção das diferentes manifestações das culturas participantes de nosso processo civilizatório, a saber, as culturas populares[3], indígenas, afro-brasileiras, bem como de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional[4], conforme estabelece o art. 215, § 1º, da Constituição Federal, no sentido de respeitar nossa mais importante biodiversidade: a biodiversidade humana.

Todavia não se olvidou nossa Carta Magna em também observar a tutela jurídica evidenciada pelos novos hábitos criados pela fortíssima influência dos meios de comunicação social, principalmente em face da programação de emissoras de rádio e televisão (arts. “220 a” 224 da CF)[5], afetando os modos de criar, fazer e mesmo de viver dos brasileiros e estrangeiros residentes no País. Por via de conseqüência, os diferentes temas vinculados à cultura brasileira e, portanto, às manifestações culturais (inclusive o direito constitucional em vigor) necessariamente passaram a se submeter também aos novos hábitos culturais antes mencionados, revelando as diferentes posturas relacionadas a interpretar o direito positivo.

Daí o conceito jurídico de fauna ter evoluído não só em função de sua inclusão formal no texto constitucional positivado (art. 225, § 1º, VII), mas também em decorrência de uma nova interpretação jurídica fundamentada nos novos hábitos culturais dos brasileiros; hábitos em que as necessidades da pessoa humana devem observar condutas equilibradas em face dos recursos ambientais, e hábitos “criados” pela sociedade de consumo controladora dos meios de comunicação social.

Destarte restou bem posicionada a evolução cultural refletida nas normas jurídicas: outrora definida como coisa[6],[7],[8] e [9], passou a fauna a ser protegida constitucionalmente como bem ambiental[10] numa nova visão, em que a proteção da vida em todas as suas formas deve atender o fundamento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) em face de seu conteúdo cultural.

Podemos concluir que as novas normas jurídicas ambientais, como as Leis n. 9.605/98 (Sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), 9.985/2000 (Regulamenta o art. 225, § 1º, I, II, III e VII da CF) e 10.519/2002 (Dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeio e dá outras providências), passaram a revelar claramente essa nova “tendência” destinada a adequar as manifestações culturais em relação à fauna no sentido de harmonizar nossas práticas culturais em proveito da dignidade da pessoa humana.

[1] O direito brasileiro, conforme argumentamos de forma reiterada, é exemplo claro de produto cultural, caracterizando-se, na nossa realidade, por ser verdadeiro patrimônio cultural, e constituindo-se em bem de natureza material e imaterial, portador de referência (enquanto forma de expressão) à identidade, à ação assim como à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216). O direito brasileiro, por via de conseqüência, diz respeito ao meio ambiente cultural.

[2] Dicionário Crítico de Política Cultural, FAPESP/Iluminuras, 1997, passim.

[3] Bem representativo da cultura popular é a celebração feita ao bode na cidade de Cabeceiras (2 a 6 de junho) no Cariri Paraibano. A Festa do Rei do Bode enfatiza a importância do animal na economia da região e sua capacidade de resistência e adaptação à seca nordestina. Quem vai ao Cariri tem inclusive a oportunidade de degustar a denominada gastronomia “bodística” formada por pratos como pizza de bode, mec bode, pinga bode, xixi de cabrita, buchada, lingüiça e carne de sol feita de bode.

[4] No que se refere à cultura associada aos imigrantes (portugueses, alemães, italianos, espanhóis, japoneses, sírios-libaneses etc.), vide nosso O direito de antena em face do direito ambiental no Brasil, Saraiva, 2000, passim.

[5] O IBGE/2002 demonstra a força da televisão: 90% dos domicílios no Brasil têm TV e só 85% possuem geladeira (total de 42.778.810 domicílios com TV no Brasil); existem 54 milhões de aparelhos de TV no Brasil (média de 1,4 aparelho por domicílio); maior consumidora de programas de TV é a chamada classe C (assiste Big Brother Brasil e Show do Milhão).

[6] Diz Robert Delort que a atividade de criação dos animais na Idade Média se definia de maneira socioeconômica, mas também biológica e cultural. Na explicação do autor não podemos dissociar “o conjunto de modificações nas relações dos grupos humanos com as espécies vegetais ou animais, cujo efeito é substituir uma exploração sem contrapartida (predação) por uma relação simbiótica das quais essas espécies tiram proveito”, da definição dada em 1992 por A. Gautier de “um processo de microevolução iniciado pelo isolamento de um número restrito de indivíduos de uma espécie selvagem particular, em um nicho ecológico especial, estabelecido pelo homem e que obriga esses animais a viverem e a se reproduzirem sob sua tutela e em seu proveito”. Dessa forma, diz o autor, “são buscados produtos de alimentação (carne, gordura, ovos, leite, até moluscos ou mel), de vestuário (couro, lã, seda, crina, plumas, pele), de ornamentação, de energia e força (boi, cavalo, asno, mula) de comportamentos bem orientados (gato e, sobretudo, cachorro) de uma companhia objeto de numerosas transferências; e, às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Acima de tudo, nesse processo, o homem manifesta sua vontade de dominação sobre os seres vivos em seu conjunto e, em particular, sobre aqueles que podem claramente expressar sua submissão, mesmo porque, na Criação (Gênesis 1, 28), Deus claramente convocou o homem para dominar os animais. A submissão, amansamento ou adestramento individual de certos animais selvagens aconteceu durante toda a Idade Média, mas a verdadeira domesticação estendeu-se por milênios e ainda está em curso, com a constituição de espécies ou de raças diferentes das primitivas”. Vide Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt, Dicionário temático do Ocidente Medieval, Imprensa Oficial/EDUSC, 2002, v. 1, passim.

[7] Em Roma os animais assim como os escravos eram tratados juridicamente como coisas móveis que se deslocavam por força orgânica própria – os chamados semoventes (que se movem por si). Explica José Carlos Moreira Alves que “às coisas semoventes alude uma constituição de Justiniano (C, 7, 37, 3, 1, d), do ano de 531 d. C.” (Direito romano, 7. ed. revista e acrescentada, Rio de Janeiro, Forense, 1990, v. I.

[8] Martin Wolff, ao explicar o tema da aquisição da propriedade por apropriação, destaca que “apropriación es la adquisición de la propriedad por acto próprio unilateral. Respecto a las cosas muebeles, tiene lugar mediante aprehensión de la posesión em nombre próprio. Pude ser apropriación libre si la facultad de adquirir corresponde a todos o apropiación en base a un “derecho de apropriación” .Solo son suscetibles de apropriación libre las cosas nullius, o sean las cosas cuya propriedad no es de nadie. Lãs que nunca han sido propriedad de nadie, como lãs conchas em la playa o los animales fieros em libertad (grifos nossos). Los animales encerrados em jaulas y, divergindo del derecho común, los que hallan em los parques zoológicos, asi como los peces em aguas derradas de propriedad privada (como estanques) no son cosas nullius”. Para uma consulta ampla a respeito dos animais e sua natureza jurídica no direito alemão, vide Martin Wolff, Derecho de Cosas, Bosh, 3. ed., Barcelona, 1971, passim.

[9] Conforme afirmava Orlando Gomes, “Há coisas que podem integrar o patrimônio das pessoas, mas não estão no de ninguém. São as res nullius e as res derelictae. Res nullius as que a ninguém pertence atualmente, mas podem vir a pertencer pela ocupação como os animais de caça e pesca” (vide Orlando Gomes, Introdução ao direito civil, 12. ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 208; no mesmo sentido Clóvis Beviláqua, Código Civil comentado, 10. ed., 1956, v. 3, p. 108 e s.

[10] A fauna, conforme estabelece o art. 2º, IV, da Lei n. 9.985/2000, é em nossa legislação um recurso ambiental que tem natureza jurídica de bem ambiental. A Lei n. 6.938/81 já estabelecia, com redação dada pela Lei n. 7.804/89, que a fauna devia ser entendida juridicamente como recurso ambiental.

* Celso Antonio Pacheco Fiorillo
Livre-docente, Doutor e Mestre pela PUCSP. Professor dos programas de Mestrado da UNIMES-Santos, da UEA-Amazonas, da Escola Superior de Advocacia da OABSP, da Escola de Magistratura do TRF da 3.ª Região (São Paulo/Mato Grosso do Sul) e da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Membro Titular da Academia Paulista de Direito. Assessor Científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e autor de várias obras jurídicas

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