Natureza jurídica da favela no direito ambiental brasileiro e sua tutela vinculada ao meio ambiente artificial
Conforme já tivemos oportunidade de aduzir1 as cidades2 se desenvolvem nos dias de hoje levando em consideração não só a questão do território como principalmente em face do trinômio moradia/ trabalho/ consumo dentro de uma economia capitalista existente nos países em grande parte do globo. Os temas antes referidos levam, em quase toda parte, a resultados muito diferentes para a pessoa humana, ou seja, os edifícios projetados pelos arquitetos e em conformidade com os regulamentos, as cidades disciplinadas pelos planos urbanísticos e providas com os serviços públicos, as ruas, os parques etc., dizem respeito tão-somente a uma parte da população; outra parte não está em condições de servir-se deles e se organiza por sua própria conta em outros estabelecimentos denominados “irregulares”, muitas vezes em contato direto com os “regulares” mas nitidamente distintos: o terreno é ocupado sem um título jurídico organizado através do vetusto Direito Civil ou Direito Administrativo (que tem seus fundamentos ideológicos organizados na Europa do século XIX), as casas são construídas com recursos próprios, os serviços faltam ou são introduzidos posteriormente, sempre com critérios absolutamente diversos daqueles que valem para o resto da cidade.
Esses estabelecimentos “irregulares” foram chamados de “marginais” porque eram considerados uma franja secundária da cidade pós-liberal: toda cidade do mundo sempre teve um grupo de habitantes pobres, que viviam em barracos da extrema periferia ou dormiam debaixo de pontes.
No mundo atual a definição antes referida não seria mais válida na medida em que os estabelecimentos “irregulares” vem crescendo com muita maior velocidade que os chamados estabelecimentos “regulares”, abrigando, no início do século XXI, em muitos países, a maioria da população3. Cada nação, conforme já dissemos em obras anteriores citando Benevolo, chama de modo diferente esses bairros irregulares, merecendo destaque em nosso país as denominadas “favelas”.
A palavra “favela” foi extraída do nome de um morro em Canudos (local do sertão da Bahia onde foi travada no século XIX sangrenta guerra envolvendo, de um lado, sertanejos, e de outro, tropas do exército brasileiro) que os soldados republicanos tomaram como base na época do histórico confronto. Quando encerrada a guerra, retornaram os soldados à cidade do Rio de Janeiro vindo a ocupar o Morro da Providência, que veio a ser batizado com o mesmo nome do território ocupado na Bahia: Morro da Favela. O termo acabou sendo usado no País todo para denominar comunidades pobres4; daí favela ser sinônimo de pobreza em nossa realidade5, o que significa afirmar que as favelas são porções do território das cidades brasileiras onde existe pobreza6, 7 e 8.
Sendo porções do território das cidades brasileiras, assumem as favelas a condição de bairros9, ou seja, porções do território de uma cidade ocupadas por pessoas humanas majoritariamente integrantes de uma mesma classe social/econômica. Destarte, observada no plano do que estabelece nossa Carta Magna, as favelas, a partir de 1988, assumiram a natureza jurídica de bem ambiental, uma vez que estão integradas à estrutura de toda e qualquer cidade.
Como bairros que são, as favelas têm, no âmbito jurídico, uma série de interesses específicos; referidos interesses, conforme indica o art. 29, XIII, da Constituição Federal, asseguram a prerrogativa da comunidade (pessoas integrantes de determinado bairro) de tutelar direitos não só através da denominada iniciativa popular, visando projetos de lei específico, observando-se a manifestação de, pelo menos 5% do eleitorado (a exemplo do Município e da cidade), como através das ações ambientais destinadas à tutela do meio ambiente artificial, sempre que ocorrer, conforme já tivemos oportunidade de explicar em nossa obra Princípios do Processo Ambiental, da Editora Saraiva, lesão ou ameaça ao piso vital mínimo observado concretamente em face de diferentes hipóteses encontradas no território brasileiro.
Assim, o direito ambiental brasileiro, ao determinar no plano constitucional o estabelecimento de uma política de desenvolvimento urbano a ser executada pelo Poder Público municipal, vinculada a garantir o bem-estar de brasileiros e estrangeiros residentes no País (art. 182 da Constituição Federal), deixou bem evidenciada a tutela jurídica das favelas, como bairros que são, destinada a assegurar às comunidades a terra urbana, a moradia, o saneamento ambiental, a infra-estrutura urbana, o transporte, os serviços públicos, o trabalho e evidentemente o lazer, a partir dos instrumentos jurídicos ambientais previstos no plano da Carta Magna e do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001). Cuidou, por via de conseqüência, o direito ambiental brasileiro de proteger a dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) dentro da estrutura do meio ambiente artificial, não só no âmbito dos “bairros regulares” como também dos bairros “irregulares”.
1 Vide nosso “Estatuto da Cidade Comentado: Lei n. 10.257/2001 – Lei do Meio Ambiente Artificial”, 2ª ed., Revista dos Tribunais, 2004, bem como nosso ” Curso de Direito Ambiental Brasileiro”, 5a ed. ampliada, Saraiva, 2004.
2 As cidades no Brasil, conforme argumentamos na 2a ed. de nosso “Estatuto da Cidade Comentado”, foram construídas a partir do século XVI em face da enorme extensão da costa e da necessidade de nela estabelecer, para sua defesa, os primeiros núcleos de povoamento e principalmente diante dos objetivos de Portugal, que “antes cuidava de explora que colonizar”, conforme observa Fernando Azevedo. Daí ter sido praticamente imposto aos conquistadores da terra o sistema de povoação marginal, levando os mesmos a “semear de vilas e colônias o litoral vasto, nas enseadas e ancoradouros que oferecessem abrigo seguro às suas naus, galeões e caravelas”, o que explica a existência das antigas povoações e feitorias, anteriores à divisão do Brasil em capitanias hereditárias (Olinda e Iguaraçu, em Pernambuco; Santa Cruz, na Bahia; Cabo Frio e Rio de Janeiro – Vila Velha), assim como as velhas vilas primitivas já fundadas no regime das capitanias hereditárias (como São Vicente e Olinda). O único núcleo colonial mais afastado do mar foi a Vila de Piratininga. Com o malogro do sistema de doações e a criação de um governo central teriam surgido, na visão de Azevedo, as primeiras cidades (a primeira cidade brasileira foi na verdade São Vicente, no Estado de São Paulo): a de Salvador, em que Tomé de Sousa estabeleceu a primeira capital do Brasil; a de São Sebastião do Rio de Janeiro, fundada por Estácio de Sá, em 1566, junto ao Pão de Açúcar e transferida mais tarde, em 1567, para o Morro do Castelo por Mem de Sá, observando-se ainda a elevação à categoria de vila da povoação de Santo André da Borda do Campo e Piratininga (que viria mais tarde a ter um papel preponderante na conquista dos sertões, consolidando-se no planalto, na luta contra a confederação dos tamoios). As vilas, entrepostos de comércio, fundamentalmente, já formavam povoações regulares ao longo da costa que necessitavam proteção; daí encontrarmos pequenas cidades – fortalezas via de regra erguidas numa colina e amuradas, como é o caso do Rio de Janeiro e de Salvador. As primeiras cidades brasileiras já observavam como característica estrutural sua função eminentemente econômica (produtos e serviços), com “estrutura artificial” direcionada para sua função militar.
Devemos observar que no século XVI, os conquistadores assim como os mercadores europeus encontraram um enorme espaço vazio no “resto do mundo”, onde puderam realizar programas de colonização com base na concepção européia. Lembra Benevolo que os portugueses, em seu hemisfério (a parte que lhe foi reservada pelo Tratado de Tordesilhas em 1494), encontraram territórios pobres e inóspitos (sobretudo a África Meridional), ou então, no Oriente, Estados populosos e aguerridos que não puderam ser conquistados. Destarte teriam fundado somente uma série de bases navais visando controlar o comércio oceânico, não tendo condições de realizar uma verdadeira colonização em grande escala, ao contrário dos espanhóis, que encontraram em sua zona territórios mais adequados à colonização (o modelo de conquista dos espanhóis foi imposto pelas autoridades já nos primeiros anos e codificado por Filipe II na lei de 1573, considerada a PRIMEIRA LEI URBANÍSTICA DA IDADE MODERNA.
De qualquer maneira é importante registrar que as novas cidades seguiram um modelo uniforme: via de regra um tabuleiro de linhas retilíneas que definiam uma série de quarteirões iguais, quase sempre quadrados. No centro da cidade suprimiam-se ou reduziam-se alguns quarteirões, conseguindo-se uma praça sobre a qual eram construídos edifícios importantes, a saber, a igreja, o paço municipal, as casas dos mercadores e dos colonos mais ricos.
3 A maior favela da Ásia, Dharabi, tem 2 milhões de habitantes e fica em Mumbai, Índia. As casas são feitas de restos de madeira e lona, e o chão é de terra.
4 Explica Gilberto Freyre, conforme lição indicada na 2a ed. de nosso “Comentário ao Estatuto da Cidade”, que “em outras choças de palha, levantada sobre os pântanos, foi se acoitando a parte mais miserável da população livre da cidade do Rio de Janeiro: população que só depois iria para os morros. Enquanto os negros mais temíveis, ou menos acomodatícios, foram se reunindo em mucambos como os dos Palmares, no Mato Grosso, nos sertões, na própria Amazônia. E não apenas nas imediações das cidades. Os morros foram, a princípio, aristocráticos – como já salientamos: lugares onde era elegante descer de rede ou de palanques nos ombros dos negros. Aonde padres, fidalgos, senhoras finas subiam, carregadas por escravos. Estabeleceram-se desde então contrastes violentos de espaço dentro da área urbana e suburbana: o sobrado ou a chácara, grande e isolada, no alto, ou dominando espaços enormes; e as aldeias de mucambos e os cortiços de palhoças embaixo, um casebre por cima do outro, os moradores também, um por cima do outro, numa angústia anti-higiênica de espaço. Isso nas cidades de altos e baixos como o Rio de Janeiro e a capital da Bahia. No Recife os contrastes de espaço não precisaram das diferenças de nível. Impuseram-se de outro modo: pelo contraste entre o solo precisamente enxuto e o desprezivelmente alagado, onde se foram estendendo as aldeias de mucambos e casas de palha”. Destaca ainda o grande mestre pernambucano que de tal forma cresceu no Rio de Janeiro o Valongo (o espaço reservado aos negros), que cronistas alarmados chegaram a considerar a cidade brasileira “sitiada” por essa subcidade africana.
5 Comentamos na 2a ed. de nosso “Estatuto da Cidade”, também com apoio em Gilberto Freyre,que com a maior urbanização do País viriam os cortiços preferidos aos mucambos (palhoça ou casebres fundadas nas cidades do Império, também conhecidas como mucambarias ou aldeias de mucambos, que reproduziam estilos africanos de habitação e convivência) pelo proletariado, de estilos de vida mais europeus. Sua origem estaria no Recife holandês, primeiro ponto no Brasil colonial a amadurecer em cidade moderna, as preocupações de comércio dominando as militares e juntando-se às próprias condições topográficas, no sentido de comprimir a população e verticalizar a arquitetura”. Aluísio Azevedo, gigante da literatura brasileira e expoente de nossa ficção urbana nos moldes do tempo, como bem observou Alfredo Bosi, fixou bem a realidade do cortiço, desistindo de montar um enredo em função de pessoas e atendo-se “à seqüência de descrições muito precisas onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários” faziam, no conjunto, do cortiço a personagem mais “convincente do nosso romance naturalista”. Apontou bem Luciana Stegagno Picchio que toda a produção literária de Aluísio Azevedo obedeceu a intentos de denúncia, estando entre suas melhores obras o romance O Cortiço, “também ele dedicado a uma das pragas do Rio de Janeiro fim-de-século: a promiscuidade da habitação coletiva no cortiço (colméia humana, a mesma “colmena” de um futuro Camilo José Cela)”.
As habitações coletivas descritas com riqueza de detalhes por Aluísio Azevedo em 1890, onde a miséria, a marginalização, a fome, a prostituição e a exploração conviviam com os poderosos proprietários de cubículos que os alugavam aos necessitados, parece não ter sensibilizado o legislador, que veio a estabelecer, mais tarde, o Código Civil brasileiro (1916). A nossa sociedade, como lembra Orlando Gomes em sua magnífica obra “Raízes históricas e sociológicas do Código Civil brasileiro”, tinha a sua base fora das cidades (que floresciam como empórios de mercadorias importadas), sendo certo que a classe política dominante era constituída pelas famílias que detinham a propriedade territorial e o monopólio de mando baseado no “primitivismo patriarcal que caracterizou o estilo de vida da sociedade colonial”. “Na organização jurídica da propriedade e de alguns direitos reais limitados”, explica Orlando Gomes, o Código Civil sofreu influência marcante dos costumes próprios dessa “sociedade subdesenvolvida, que, todavia, iria transformar-se vertiginosamente logo após a sua promulgação”. Fica claro que a legislação civil de 1916 já nascia inspirada em uma realidade distante daquela existente nas cidades brasileiras e ajustada, como lembra Orlando Gomes, “material e espiritualmente à situação econômico-social do país, pelo apoio que recebia da burguesia rural e mercantil”, organizando uma legislação “inspirada no Direito estrangeiro, que, embora estivesse, por muitas vezes, acima da realidade nacional, correspondia, em verdade, aos interesses a cuja guarda e desenvolvimento se devotava”.
Causa estranheza, por via de conseqüência, pretender adaptar às cidades brasileiras, em pleno século XXI, as regras jurídicas previstas no “novo” Código Civil (Lei n. 10.406/02), na medida em que o “novo” diploma é praticamente idêntico ao Código Civil francês de 21 de março de 1804, no que se refere ao controle jurídico do território.
6 O Brasil chegou ao século XXI tendo 2,3 milhões de domicílios em mais de 16 mil favelas (70% desses domicílios estão localizados nos 32 maiores municípios do País – aqueles com mais de 500 mil habitantes), conforme dados do Perfil dos Municípios Brasileiros indicado pelo IBGE em 2003 (números fornecidos pelos prefeitos dos 5.560 municípios).
A cidade de São Paulo concentra 378 mil domicílios em favelas (16% do total do País), sendo que a Região Sudeste como um todo reúne 59% das submoradias brasileiras.
A conceituação do que seja favela no âmbito do Censo 2000 levou em consideração apenas aglomerações de submoradias com mais de 50 barracos não tendo sido consideradas favelas as áreas onde se erguem construções de apenas um cômodo, com metade das paredes feitas de alvenaria e, à outra, de restos de madeira ou folhas de zinco, assim como loteamentos irregulares, áreas livres, bairros clandestinos ou outras denominações destinadas a excluir aludidas moradias do item “favelas” de referido censo.
7 A Fundação Getúlio Vargas divulgou em setembro de 2003 um “ranking” de miserabilidade das cidades brasileiras com base no Censo 2000. Das 10 cidades com maior proporção de miseráveis, 05 ficam no Maranhão, 03 no Piauí, 01 no Amazonas e 01 no Acre (Centro do Guilherme, Jordão, Belágua, Pauni, Santo Amaro do Maranhão, Guaribas, Novo Santo Antonio, Matões do Norte, Manari e Milton Brandão). Segundo a FGV, no Brasil havia em 2000 o número impressionante de 50 milhões de miseráveis (miserável entendido como aquele que não ganha o suficiente para consumir as 2.280 calorias diárias recomendadas pela Organização Mundial de Saúde, estando abaixo da linha de miséria aqueles que têm renda de menos de R$ 80,00 no Brasil).
8 Alguns ainda pretendem fazer das favelas um verdadeiro estereótipo brasileiro: o filme brasileiro “Cidade de Deus”, que teve ampla publicidade do próprio governo federal (a Petrobrás, patrocinadora do filme, e o Ministério das Minas e Energia publicaram em vários jornais matéria enaltecendo o filme como um verdadeiro orgulho para a Nação), ao “retratar” a favela que lhe emprestou o nome (teve 4 indicações para o Oscar 2004, incluindo melhor diretor e roteiro adaptado) acabou divulgando para o mundo inteiro uma “realidade” muito distante daquela vivida pelos seus moradores. A imagem de violência absoluta do filme, com crianças de arma na mão cometendo crimes, gerou mais preconceito dificultando a abertura de crédito aos moradores pertencentes à favela (que tem 90 mil habitantes) bem como liquidando com um banco de empregos que havia sido criado. A visão do diretor Fernando Meirelles, divulgada na Revista Época em 23 de fevereiro de 2004, mostra bem o uso da favela para finalidades “culturais”: “O que mais interessa é o que outros países não têm. Pobreza, por exemplo”. Alguns países europeus continuam achando a favela um tema exótico: a temporada brasileira na França em 2005 terá mais de 70 eventos “culturais”, destacando-se não só o Favela Chic, badalado restaurante de Paris, como o grupo de moradores da favela da Rocinha (Rio de Janeiro), que vai reproduzir parte da favela como cenário para a mostra fotográfica. Vide os jornais “Folha de S. Paulo” (29/02/04) bem como “O Estado de S. Paulo” (28 e 29/02/04).
9 Os bairros, nos dias de hoje, são porções do território de uma cidade ocupada por pessoas majoritariamente integrantes de uma mesma classe social/econômica.
Já em torno da Acrópole ateniense (cidade alta e local onde ficavam os templos dos deuses), na época de Péricles (século V a.C.), se verificavam, como informa Benevolo, os bairros residenciais que eram distribuídos ao redor dos edifícios públicos, podendo-se imaginar “a coroa de bairros com as casas de habitação”. Embora não seja possível falar da existência de um direito grego e sim de “uma multidão de direitos gregos”, conforme lição de Gilissen, normas como a Lei de astynómos (Pérgamo – Eólis – Ásia Menor – século II d.C. ), já refletiam disposições detalhadas a respeito de conservar limpas e em boas condições as ruas, as estradas e passagens, sobre o tamanho mínimo das ruas, sobre a escavação de fossos e produção de tijolos ou pedras, sobre a reforma de muros comuns e a divisão de gatos, sobre a manutenção de fontes e chafarizes na pólis (a cidade-Estado), que depois passou a ser distinguida pela cidade alta – a acrópole – e a cidade baixa – a astu), sobre o registro e manutenção de todas as cisternas das cidades. Cabe destacar que os gregos continuaram as tradições dos direitos cuneiformes e transmitiram-nas aos romanos, tendo instaurado em suas cidades regimes políticos que serviram de modelo às civilizações ocidentais.
A cidade medieval conheceu em seu apogeu a estrutura dos bairros, valendo transcrever a manifestação de Jacques Le Goff, em sua obra “O apogeu da cidade medieval”, a saber: “Há, enfim, na maioria das cidades, divisões que não coincidem nem com o elemento constitutivo da cidade, nem com uma paróquia formando conjuntos que estão entre os mais vivos e personalizados da cidade. São os bairros (quartiers), cujos nomes logo aparecem com freqüência nos documentos, como o das “Aubergeries” em Pérgueux, atestado já em 1254. Esses bairros parecem às vezes organizar-se em torno de uma rua que lhes dá o nome. Em Périgord, por exemplo, situam-se inicialmente ruas ou casas em relação à rue Neuve (Rua Nova); depois, em meados do século XIV, aparece a expressão “o bairro de Rua – nova” ou “la quartieyra de Rua Nova”. Assim, em Reims. O bairro da Nouvelle Couture, loteado pelo arcebispo a partir de 1183, tomou o nome de sua artéria central, que, em verdade, era muito larga porque destinada a ser um local de feira. Realidades vivas, porem mal definidas, os bairros, componentes característicos da cidade medieval, ainda são mal conhecidos”. Paris, que no reinado de Luís XIV teria sido a maior cidade da Europa (século XVII), seguida de perto por Londres, já era dividida em bairros que, de 17 na época de Henrique III, chegaram a 20 em 1702. Não existia na época, conforme descreve Jacques Wilhelm em sua obra “Paris no Tempo do Rei Sol”, bairro que não estivesse repleto de palácios “comparáveis aos mais belos edifícios romanos”. Escreveu o historiador Sauval, impressionado com as transformações de que Paris já se beneficiara por ocasião da morte de Mazarino, que “no Faubourg Saint-Honoré, na Villeneuve, no Marest e na ilha de Notre-Dame (atual ilha de Saint-Louis), todos eles, bairros fétidos e abandonados, vimos abrirem-se muitas ruas compridas, largas, retas, e ali se elevarem essas casas tão soberbas que admiramos e que se assemelham a palácios encantados”.
Em nosso país, especificamente na cidade de São Paulo no século XVI, muitos bairros surgiram da transformação de aldeamentos indígenas em povoados de brancos, sendo um elemento importante para caracterizar a origem histórica de várias cidades brasileiras.
Observado no plano constitucional brasileiro em vigor, os bairros têm natureza jurídica de bem ambiental, uma vez que estão integrados à estrutura de toda e qualquer cidade; os bairros, como já afirmado, são “partes” da cidade, possuindo “interesse específico”, conforme indica o art. 29, XII, da Constituição Federal. Destarte, em decorrência do que estabelece a Carta Magna em vigor, as pessoas integrantes de determinado bairro gozam da prerrogativa apontada em referido artigo, a saber, “iniciativa popular de projetos de lei específico”, a exemplo do Município e da cidade, desde que viabilizada através “de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”.
* Celso Antonio Pacheco Fiorillo
Livre-docente, Doutor e Mestre pela PUCSP. Professor dos programas de Mestrado da UNIMES-Santos, da UEA-Amazonas, da Escola Superior de Advocacia da OABSP, da Escola de Magistratura do TRF da 3.ª Região (São Paulo/Mato Grosso do Sul) e da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Membro Titular da Academia Paulista de Direito. Assessor Científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e autor de várias obras jurídicas