Na análise percuciente de Domenico de Masi (1), a sociedade rural, centrada na produção de bens agrícolas, consumiu 10 mil anos para gerar do seu seio a sociedade industrial, focada no fornecimento de bens materiais em série. E esta levou apenas dois séculos para gerar a sociedade contemporânea, pós-industrial, mais conhecida como sociedade informacional, centrada no eixo eletro-eletrônico, onde o que é valorizado não é mais a produção física em si, e sim o desenvolvimento da tecnologia, o acesso e o controle da informação, como explica José Eduardo Faria (2).
Este admirável e vertiginoso progresso, acentuado sobremaneira nas quatro últimas décadas, superando o progresso experimentado nos 40 mil anos precedentes, vem sendo acompanhado de um alto custo ambiental.
A degradação e a poluição ambientais ganham dimensões preocupantes e alarmantes, e tornam-se fenômenos cada vez mais diversificados, complexos e de difícil enfrentamento. O que se tem atualmente é uma verdadeira orquestração de ataques simultâneos e em larga escala à natureza (poluição atmosférica, hídrica e do solo, desmatamentos, perda da biodiversidade, caça e pescas predatórias), que, por sua vez, reage e contra-ataca com violência. Basta se atentar para as freqüentes catástrofes climáticas (inundações, secas, verões e invernos muito rigorosos, incremento do efeito estufa) nas mais diferentes regiões do planeta.
E o grau de complexidade das questões ambientais pode ser melhor dimensionado quando se atenta para o fato de que são aspectos conjunturais e estruturais que deram origem e contribuem para o agravamento da degradação ambiental, quais sejam a explosão demográfica, a industrialização, a urbanização acelerada e desordenada, a economia capitalista alicerçada na privatização dos lucros e na socialização dos prejuízos, o problema social da pobreza e de sua urbanização e a megalopolização crescente, notadamente nos países pobres e superpopulosos (3).
Se o aumento da produção através da industrialização veio atender à maior demanda e consumo decorrentes do crescimento populacional, em contrapartida os ecossistemas passaram a sofrer maior sobrecarga. De um lado, pela utilização em larga escala de recursos naturais – como matéria-prima e outros insumos – inclusive para a geração de energia e sem a preocupação com o esgotamento dos recursos não-renováveis e com a capacidade limitada de regeneração dos recursos renováveis. De outro lado, pelo maior volume dos resíduos lançados, bem como pela maior durabilidade, toxicidade e periculosidade, especialmente dos resíduos sintéticos.
Destas breves considerações, pode-se inferir que continua sendo um grande desafio, na ordem econômica capitalista, a implementação do princípio do desenvolvimento sustentável – o grande mote do ambientalismo, tendo em vista a difícil conciliação entre desenvolvimento econômico-social e proteção do meio ambiente. Exemplo mais ilustrativo é a resistência de países como os Estados Unidos e a Rússia de assinarem e possibilitarem a entrada em vigor do Protocolo de Kioto, por importar em restrições à produção industrial para fins de estabilização das emissões dos gases do efeito estufa.
Por isso mesmo, hoje tem-se a correta percepção de que as questões ambientais estão intrincadas com as questões econômicas e sociais, e que a efetividade da proteção ambiental depende do tratamento globalizado e conjunto de todas elas. Nesta linha de entendimento, é digna de encômios a visão holística e adaptada à realidade brasileira de que a Política Nacional de Educação Ambiental preconiza, ao definir como um dos objetivos fundamentais da educação ambiental o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos (4).
E no mesmo texto legal é expressamente prevista a obrigatoriedade de o Poder Público, nos termos dos arts. 205 e 225 da Constituição Federal, definir políticas públicas que incorporem a dimensão ambiental (5).
A propósito, e em sintonia com esta imposição legal, o Ministério do Meio Ambiente, de forma elogiável, insere também a transversalidade como uma das quatro diretrizes que definem suas ações, como bem reafirmou a Ministra Marina Silva, ao discursar na abertura da Conferência Nacional do Meio Ambiente: (…) a consciência ambiental do aluno desenvolve-se junto com o aprendizado de ciências, matemática, geografia, etc. Da mesma forma queremos que seja compreendida pela sociedade brasileira e situado nas ações de governo: não como a preocupação exclusiva de um setor, um Ministério, mas como um componente de todos os setores. A política ambiental do governo deve estar no Ministério dos Transportes, da Agricultura, de Minas e Energia, em todas as ações de todos os setores.. .. Dessa forma, poderemos planejar a infra-estrutura pensando desde o princípio nas questões socioambientais e não mais somente quando, uma vez o projeto pronto, o Governo tiver de submetê-lo ao processo de licenciamento ambiental (6).
Aliás, a dimensão ambiental deve ser incorporada não apenas nas políticas e ações de governo, mas também nas políticas e ações da iniciativa privada e de todos os cidadãos, e com a preocupação de que o desenvolvimento sustentável seja implementado no sentido do desenvolvimento humano, expressão mais abrangente divulgada pela ONU nos últimos anos e que contempla, adequadamente, quatro dimensões complementares e integrais: 1) pressupõe que o crescimento econômico, por ampliar a oferta de bens e serviços à disposição da população, é uma condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento humano; 2) que este não ocorre num contexto de exclusão social, pois tem de se processar em benefício das pessoas; 3) que estas têm de ter acesso a informações, conhecimento e bens culturais para a sua própria promoção; 4) que a forma de crescimento econômico atual não venha a comprometer a gama das oportunidades das gerações futuras, ou seja, o desenvolvimento humano pressupõe a sua sustentabilidade (7).
Por seu turno, constitui relevante avanço a concepção de estratégias de gestão ambiental, mormente por serem atraentes aos empreendedores que a elas aderem em razão dos inúmeros benefícios diretos e indiretos revertidos às empresas (8). Inserem-se dentro desta perspectiva o sistema de gerência de qualidade e de planejamento disciplinado pelas normas da Série ISO 14000, que tem como objetivo a obtenção pelas empresas da certificação ambiental (Certificados de Gestão Ambiental); e os Programas da ONU sobre Produção Limpa (PL) e Produção Mais Limpa (P + L) (9). Produtos e processos de produção, com maior responsabilidade ambiental constituem parte das novas estratégias competitivas utilizadas por empresas vencedoras para interligar as questões ambientais às decisões de negócios (10).
Outra providência salutar e de caráter igualmente preventivo é a exigência constitucional, entre nós, de elaboração de Estudo Prévio de Impacto Ambiental para fins de obtenção de licenciamento ambiental para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental, de cuja relevância têm que ser conscientizados os empreendedores do setor privado e o setor público.
E projeto de lei (PL 1834/03) objetiva estabelecer a auditoria ambiental periódica para os órgãos públicos, empresas públicas, privadas e de economia mista, fundações e outras instituições, cujas atividades possam causar impacto ambiental, com o objetivo de verificar o cumprimento da legislação, normas e técnicas destinadas à proteção do meio ambiente.
A prevenção da poluição é a melhor alternativa, tanto do ponto de vista da maior efetividade da proteção ambiental quanto do empreendedor, evitando que este, com sua atividade, cause danos ao meio ambiente e venha a sofrer o concurso simultâneo da tríplice responsabilidade (civil, administrativa e penal) em matéria ambiental.
Com efeito, em nosso sistema jurídico vigente, o poluidor, pessoa física ou jurídica, pode ser obrigado a restaurar, recuperar, compensar e/ou indenizar amplamente o dano causado ao meio ambiente, independentemente de culpa, sem prejuízo da possibilidade de responder, ainda, pela prática de infração administrativa e de crime ambiental. É certo que a chamada Lei de Crimes Ambientais contempla benefícios processuais-penais para o caso de composição prévia e de reparação do dano ambiental, estando já superada a polêmica inicial em torno da responsabilização penal da pessoa jurídica, plenamente viável constitucional e legalmente entre nós.
Há necessidade, pois, que os operadores do Direito, assim como outros profissionais, no âmbito das ciências físicas, biológicas, humanas e sociais, capacitem-se para atuar no imenso campo de oportunidades que se descortina na seara ambiental.
Sem paixões e sem radicalismos, é imprescindível que se desenvolva a consciência ambiental em todos os setores e segmentos da sociedade e que o ambientalismo seja incorporado ampla e definitivamente ao modo de vida da sociedade capitalista contemporânea.
Especificamente no que toca ao desenvolvimento sustentável em face da realidade brasileira, merece ser citada, para finalizar, a visão equilibrada externada pela Ministra Marina Silva, naquela mesma oportunidade em que discorreu sobre as diretrizes de ação do Ministério do Meio Ambiente: Meio Ambiente não é um entrave ao desenvolvimento, é a garantia de um desenvolvimento adequado. A floresta, o pantanal, os rios, o mar, nada disso impede o Brasil de desenvolver energia, indústrias ou transportes, de gerar empregos e moradia, de distribuir renda e justiça social. Ao contrário, a natureza é a fonte de todas essas riquezas. Só precisamos aprender a fazer as coisas de modo adequado, a tomar os cuidados necessários, a seguir as leis e a ouvir a voz do bom senso (11).
Notas
1 “Em busca do ócio”. In Revista Veja 25 Anos: Reflexões para o Futuro. Trad. Marco Antonio de Rezende, p. 44.
2 “Globalização e Justiça”, palestra proferida no Seminário “Cooperação Judiciária Internacional”, São Paulo (SP), em 05/04/2001.
3 Cf. nossa tese de doutorado Poluição em face das cidades no Direito Ambiental Brasileiro: a relação entre degradação social e degradação ambiental, PUC/SP, 2001.
4 Lei nº 9.795/99, art. 5º, I.
5 Lei nº 9.795/99, art. 3º., I.
6 in Justiça & Cidadania, edição 42, janeiro de 2004, p. 7/8
7 Paulo R. Haddad; O desenvolvimento humano, Jornal da Tarde, 31 de agosto de 1998, p. 2.
8 Redução de custos de produção e aumento de eficiência e competitividade; redução das infrações aos padrões ambientais previstos na legislação; diminuição dos riscos de acidentes ambientais; melhoria das condições de saúde e de segurança do trabalhador; melhoria da imagem da empresa junto a consumidores, fornecedores e poder público; ampliação das perspectivas de mercado interno e externo; acesso facilitado a linhas de financiamento; melhor relacionamento com os órgãos ambientais, com a mídia e com a comunidade (“Produção mais Limpa”, Dângelle Makelle de Oliveira)
9 A Produção Limpa (PL) e a Produção Mais Limpa (P+L) adotam os princípios da prevenção, a visão holística e a preocupação com a economia de materiais, água e energia. A Produção Limpa contempla entre seus elementos também o Princípio da Precaução e o Princípio do Controle Democrático. A Produção Mais Limpa tem como mola mestra a não-geração, redução ou reciclagem de resíduos, reduzindo o desperdício de recursos naturais, energia e matéria-prima.
10 “Produção e Tecnologias Limpas”, in Boletim Fundação Vanzolini, Ano IX – nº 42 – março/abril/2000.
11 In Justiça & Cidadania cit., p. 7.
* Consuelo Yatsuda Moromizato Yoshida
Desembargadora Federal – TRF 3ª Região, Coordenadora e professora do curso de especialização(pós-graduação “lato sensu”)Direito Ambiental da Cogeae/PUC-SP(Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)