Com expectativa, comecei a ler a Lei de Crimes Ambientais, de vez que relatei a matéria na elaboração do anteprojeto de parte especial do Código Penal, em 1984. A decepção surgiu de pronto e se transformou, ao final, em intensa indignação diante dos gravíssimos erros de técnica legislativa que se somam a absurdos de conteúdo, reveladores da ausência de um mínimo bom senso. Nos limites deste artigo, cumpre enfrentar apenas algumas das normas que descrevem as condutas delituosas.
O artigo 29 diz que é crime “matar, perseguir, apanhar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória”. Contrariando princípio comezinho de técnica legislativa, define no parágrafo 3º o que vêm a ser os espécimes da fauna silvestre: “Todos aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida dentro dos limites do território brasileiro”.
Cabe assinalar que no “caput” distingue o que logo em seguida, no parágrafo 3º, identifica. Mas o grave é que se estatui serem espécimes da fauna silvestre não só as espécies migratória e nativa, mas quaisquer outras que existam no país. Isto é, todos os animais. Constata-se o descaso pelos dizeres do art. 30, segundo o qual é crime “exportar para o exterior” peles e couros…
No artigo 32, edita-se ser crime “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, cominando-se a pena de três meses a um ano de detenção e multa.
Primeiramente, não se sabe o que vem a ser “praticar ato de abuso”. De outro lado, “maus-tratos” é o nome jurídico da conduta constante do artigo 136 do Código Penal, que tipifica como crime “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis (…) ou abusando de meios de correção”. A pena prevista para a conduta de pôr em risco a vida ou a saúde de pessoa sob sua guarda ou vigilância é de dois meses a um ano de detenção ou multa -ou seja, menor do que a prevista para a “prática de ato de abuso ou maus-tratos em animais”.
Em seguida, no parágrafo 1º desse artigo, considera-se crime realizar experiência dolorosa em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, agravando-se a pena se o animal morre. Só não será crime se não houver outro meio -circunstância a ser avaliada, portanto, pelas autoridades policiais ou judiciais, após submeter o cientista ou o professor a processo criminal. O uso de cobaias para desenvolvimento da medicina e da farmacologia virou delito, agravado se o animal morre. Os absurdos vêm num crescendo.
Outros exemplos devem ser lembrados. O artigo 37 diz não ser crime o abate de animal que está a destruir a lavoura ou a criação, desde que autorizado pela autoridade competente. Assim, deve-se esperar a tramitação de processo administrativo que autorize o abate do animal predador para poder agir em defesa da criação ou do plantio, sob pena de cometer crime, ou seja, abater antes da devida autorização.
Mais: legitima-se, igualmente, o abate de animal nocivo desde que assim seja ele reconhecido pelo órgão competente. Cumpre, então, identificar o animal que se pretende seja reconhecido nocivo e solicitar ao órgão competente uma declaração de sua nocividade, após o que é lícita a ação de abate.
Se a norma penal há de ser clara, precisa, facilmente compreensível pelo homem comum, como já exigia há dois séculos Beccaria, o artigo 40 é exemplo do inverso: “Causar dano direto ou indireto às unidades de conservação e às áreas de que trata o art. 27 do decreto nº 99.274, de 6 de junho de 1990 (…). Pena: reclusão de um a cinco anos”. Inicialmente, cumpre ponderar ser incompreensível a menção a dano indireto, cominando-se pena grave a uma conduta que não se sabe o que seja.
Mais esotérica é a referência em tipo penal ao art. 27 do decreto 99.274. E se indica no parágrafo 1º, de forma ampla, o que seja unidade de conservação, ou seja, todos os parques nacionais, estaduais ou municipais, bem como “áreas de interesse ecológico”. Que insegurança para todos nós, destinatários da norma penal incriminadora!
Mas o pior é que se prevê logo a seguir, no parágrafo 3º, a forma culposa, sendo crime causar por imprudência ou imperícia dano a qualquer parque ou área de interesse ecológico. O ciclista desatento que derrapa e bate na mureta do Ibirapuera comete delito culposo de dano. Mais grave: se já não se sabe o que seria ocasionar dolosamente dano indireto, menos ainda o que é causar por imprudência dano indireto.
Mais absurdos: no artigo 49, descreve-se como crime “destruir, danificar, lesar ou maltratar plantas de ornamentação de logradouros públicos ou em propriedade privada alheia”. Para total espanto, admite-se também a forma culposa. Assim, tropeçar e pisar por imprudência na begônia do jardim do vizinho é crime. Exemplo de forma tautológica está no artigo 67, que descreve como crime a concessão de autorização, com desrespeito às normas ambientais, à atividade que requer autorização. Para culminar o rol de absurdos, prevê-se a forma culposa dessa conduta -ou seja, cria-se a aberração da conduta de concessão culposa de autorização em desacordo com as normas ambientais. Incongruências e erros desse quilate apresenta a lei também no que respeita à previsão de novas penas alternativas e aos critérios de sua aplicação, além da criação inconstitucional da responsabilidade penal da pessoa jurídica e da admissão ampla e insegura da forma comissiva por omissão.
A defesa imprescindível do meio ambiente não autoriza que se elabore e que o Congresso aprove lei penal ditatorial, seja por transformar comportamentos irrelevantes em crime, alçando, por exemplo, à condição de delito o dano culposo, seja fazendo descrição ininteligível de condutas, seja considerando crime infrações nitidamente de caráter apenas administrativo, o que gera a mais profunda insegurança.
* Miguel Reale Júnior
Advogado e Professor titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP