1. Com o novo Código Civil, os cônjuges recebem um tratamento privilegiado no âmbito do direito sucessório, em relação ao que lhes era conferido pela codificação de 1916. Proponho-me aqui a apontar os diversos mecanismos utilizados para tal desiderato.
2. A primeira evidência disso está em que são agora herdeiros necessários (art. 1.845). E isso, frise-se, independentemente do regime matrimonial de bens. Assim, mesmo no regime da separação de bens (convencional ou obrigatória), terá o cônjuge assegurada a legítima (art. 1.846), o que tem levado alguns a afirmar que o novo Código favorece o “golpe do baú”.
3. O artigo 1.829 dispõe sobre a ordem de vocação hereditária, fazendo com que o cônjuge, que antes ocupava o terceiro lugar, depois dos descentes e dos ascendentes, passe agora a concorrer com estes.
Com descendentes (inc. I), a concorrência do cônjuge dependerá do regime de bens vigente. Assim, somente concorrerá quando o regime for algum dos seguintes : a) separação convencional de bens; b) comunhão parcial, quando existentes bens particulares; c) participação final nos aqüestos.
Em se tratando do regime da comunhão parcial – que continua a ser o regime legal (art. 1.640), e, portanto, o mais freqüente – a concorrência do cônjuge com os descendentes somente se estabelecerá quando houver bens particulares deixados pelo autor da herança. Na hipótese contrária (inexistência de bens particulares) o cônjuge não concorrerá com os descendentes. Os bens particulares (não comunicáveis), no regime da comunhão parcial, estão agora elencados no artigo 1.659, incisos I a VII, e 1.661.
Tal regra se ostenta de complexa aplicação e, tudo indica, dará ensejo a acirradas disputas. Um singelo exemplo ajudará a compreender as dificuldades possíveis. Imagine-se, primeiramente, a situação de um casal, com um filho, cujo único patrimônio seja constituído pelo apartamento onde reside (no valor de R$ 99.000,00) adquirido na constância do casamento. Nesse caso, falecendo o varão, e não havendo bens particulares, a mulher não concorrerá com o filho, recebendo apenas sua meação (correspondente, no caso, a R$ 49.500,00). Admitamos, agora, que, além desse apartamento, o autor da herança fosse proprietário de uma bicicleta (no valor de R$ 1.000,00), que, por ter sido adquirida em sub-rogação de um bem pré-existente ao casamento, constitui bem particular (art. 1.659, II). Nessa hipótese, existindo bem particular, o cônjuge concorrerá com o descendente, em igualdade de condições, recebendo, portanto, – além de sua meação sobre o apartamento (R$ 49.500,00) – a título de herança, a metade de todos os bens deixados pelo “de cujus”, ou seja, mais R$ 25.500,00. O total dos bens que caberão ao cônjuge sobrevivente (meação + quinhão hereditário) corresponderá, neste segundo caso, a R$ 75.000,00, ficando o filho com R$ 25.000,00. Como se vê desse exemplo, a simples existência de uma bicicleta (na condição de bem particular, no valor de 1% do total dos bens), faz com que surja o direito do cônjuge de concorrer com o descendente, aumentando desproporcionalmente o valor que lhe caberá, que passa de R$ 49.500,00 (na primeira situação, em que recebe apenas a meação) para R$ 75.000,00 (na segunda situação, onde, por existir bem particular, concorre com o descendente)!
Não é demasia frisar que a circunstância de existir um singelo bem particular – mesmo de ínfimo valor – definirá a condição de herdeiro concorrente do cônjuge não apenas sobre esse bem particular, mas sobre o total da herança. Outra não é a conclusão que se extrai do texto expresso em exame, que se reforça ainda mais com o que dispõe o artigo 1.832, que assegura ao cônjuge, quando concorrer com descendentes comuns, a quarta parte da herança .
Tendo em conta que o princípio da livre estipulação continua contemplado na nova codificação (artigo 1.639) – o que permite aos cônjuges estipular, quanto aos seus bens, qualquer regime, mesmo diverso daqueles contemplados no próprio código, desde que observadas as limitações legais – é lícito concluir que sempre que for previsto, mediante pacto antenupcial, um regime que não seja qualquer daqueles expressamente excluídos pelo inciso I, do art. 1.829, o cônjuge concorrerá com os descendentes.
Outrossim, o cônjuge sempre concorrerá com os ascendentes (inc. II), qualquer que seja o regime matrimonial de bens, devendo ser observado o que dispõe o artigo 1.837, ou seja : a) concorrendo com dois ascendentes de primeiro grau, o cônjuge recebe um terço da herança; b) concorrendo com um ascendente de primeiro grau, recebe a metade da herança; c) concorrendo com um ou vários ascendentes de segundo ou maior grau, o cônjuge tem assegurada a metade da herança.
4. O direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família – antes assegurado exclusivamente ao cônjuge sobrevivente que fosse casado sob o regime da comunhão universal de bens e apenas enquanto mantivesse a condição de viúvo (art. 1.611, p. 2o., do Código de 1916) – passa agora a ser garantido independentemente do regime de bens, e mesmo que venha o sobrevivente a contrair novo casamento (artigo 1.831). Em contrapartida, desaparece o direito ao usufruto (antes assegurado, pelo art. 1.611, p. 1o., do Código de 1916, a quem fosse casado por regime de bens diverso da comunhão universal), o que se explica pela circunstância de que, naqueles casos, o cônjuge concorrerá agora com os descentes ou com os ascendentes, como visto.
5. A quarta regra que confere tratamento privilegiado aos cônjuges no âmbito sucessório encontra-se no artigo 1.832 que lhes assegura uma quota mínima de uma quarta parte na herança, ao concorrer com descendentes comuns. Assim, mesmo que sejam seis os filhos comuns do casal, o cônjuge sobrevivente receberá um quarto da herança. Igual garantia não ocorre, entretanto, quando a concorrência se der com descendentes apenas do autor da herança. Sem solução na lei se apresenta a hipótese de a concorrência se estabelecer com filhos comuns e, cumulativamente, com filhos apenas do autor da herança. Nesse caso, a solução que se mostra mais consentânea com o espírito protetivo da lei, é também assegurar ao cônjuge supérstite a quarta parte da herança, partindo-se do pressuposto de que, face à igualdade constitucional assegurada aos filhos, inviável estabelecer entre eles qualquer diferença de quinhões.
6. Regra que merece crítica é a do artigo 1.830, que assegura direito sucessório ao cônjuge mesmo que o casal esteja separado de fato, desde que o seja por menos de dois anos, podendo ser até maior esse prazo, devendo, neste caso, ser comprovado que a separação ocorreu sem culpa do sobrevivente.
Como já vinha sendo decidido por expressiva jurisprudência, não se justifica a preservação do direito sucessório do cônjuge quando o casal se encontra separado de fato, independentemente do prazo da separação. Porém, pior ainda é manter o direito sucessório por prazo maior do que dois anos de separação fática, vinculando-se à inexistência de culpa do sobrevivente. Tem-se aqui notável retrocesso legislativo, na medida em que o novo Código traz o questionamento da culpa pela separação para dentro do âmbito do inventário, quando doutrina e jurisprudência mais abalizadas já vinham sustentando a conveniência de afastar o princípio da culpa até mesmo na separação judicial. Ademais, na medida em que se estabeleça controvérsia acerca de configuração ou não da culpa, ter-se-á caracterizada uma questão de alta indagação, o que obrigará que o tema seja afastado do inventário, remetendo-se o debate para as vias ordinárias (art. 984, CPC). Fácil antever as conseqüências processuais daí decorrentes…
Frise-se que é do cônjuge sobrevivente o ônus de produzir prova de que a separação fática se deu sem culpa sua. Se essa circunstância não for alegada ou comprovada, não há que se cogitar de direito sucessório do sobrevivente que esteja separado de fato do autor da herança há mais de dois anos da data do óbito.
7. Um alerta final diz respeito à necessidade de adequação dos testamentos já confeccionados às regras do novo Código, sempre lembrando que, conforme dispõe o artigo 1.787 (mantendo o teor do art. 1.577, Código de 16), que a sucessão e a legitimação para suceder são reguladas pela lei vigente ao tempo da abertura da sucessão, ou seja, a data do óbito do autor da herança. Assim, os testamentos já lavrados e que não estejam em consonância com o regramento do novo Código, deverão sofrer adaptações, sob pena de, no momento da execução, submeterem-se à redução de suas disposições, conforme comando do art. 1.967 do novo Código.
8. Como se vê, o novo regramento do direito sucessório dos cônjuges, embora se reconheça a justiça do espírito protetivo que o inspira, ostenta grande complexidade, que certamente gerará um acirramento das disputas travadas no âmbito dos inventários, com a conseqüente ampliação dos prazos para encerramento desses feitos, já hoje tão dilatados.
* Luiz Felipe Brasil Santos
Desembargador do TJRS; Presidente do IBDFAM-RS; Professor das Escolas da Magistratura (AJURIS) e da Escola do Ministério Público do RS