A limitação da responsabilidade do empresário individual

A figura original do empresário individual surgiu com a intenção de facilitar a vida daquele que, sozinho, explorava atividade de pequeno porte, às vezes em sua própria casa, com a ajuda da família. Daí suas principais características: ser considerado pessoa física e responder ilimitadamente pelas obrigações em razão da ausência de separação do seu patrimônio particular e daquele empregado no exercício da atividade1.

Ocorre que, com a evolução do mercado, hoje vemos empresários individuais de grande porte explorando sua empresa, às vezes, com maior vulto que muitas sociedades. Ademais, a idéia inicial de desburocratização foi substituída por inúmeras obrigações administrativas e fiscais a ele impostas, como a obrigação da inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, a obrigatoriedade de apresentação de demonstrações contábeis, a necessidade de elaborar uma Declaração de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica diversa da que teria de apresentar enquanto pessoa física etc2. Vale ressaltar que tais obrigações são idênticas às cabíveis à sociedade empresária.

Além disso, é no mínimo estranho que, sendo o empresário individual pessoa física, tenha de cadastrar-se no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas) da Receita Federal, ou, mais, declarar sua renda em Declaração de Imposto de Renda de Pessoa Jurídica.

Diante disso, e para facilitar o estudo do tema proposto sugerimos a análise de um caso concreto.

Temos dois empresários:

a) Empresário individual “X”, pessoa física que explora a atividade empresarial de prestação de serviços educacionais. Possui dez empregados, enfim, mantém uma estrutura organizada para a exploração de sua empresa, com faturamento mensal de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais).

b) Sociedade “Y” Ltda., pessoa jurídica composta por “A” e “B”, que explora atividade empresarial de prestação de serviços educacionais. Possui dez empregados; enfim, mantém uma estrutura organizada para a exploração de sua empresa, com faturamento mensal de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais).

Como podemos verificar, os dois empresários exploram a mesma atividade, possuem o mesmo número de empregados, o mesmo faturamento mensal, porém estão sujeitos a regimes jurídicos distintos. O empresário “X”, pessoa física, por exercer sua atividade individualmente, tem responsabilidade ilimitada pelas obrigações contraídas no exercício de sua empresa. Já os sócios da pessoa jurídica “Y” respondem subsidiária e limitadamente pelas obrigações sociais. A sociedade “Y”, por ser pessoa jurídica, ou seja, distinta dos sócios que a compõem, é beneficiada com um tratamento privilegiado, que tem como fundamento o incentivo ao empreendimento. Limitando a responsabilidade dos sócios de uma sociedade incentivamos o surgimento de novos empresários que movimentam e dinamizam o mercado. Porém, o empresário individual “X”, por ser pessoa física e explorar individualmente sua atividade, não goza desse benefício legal.

Somente por essa análise superficial já podemos notar a disparidade de tratamento dispensado aos dois empresários. A legislação em vigor não é capaz de regular a realidade fática acerca do empresário individual, o que acaba por trazer efeito contrário ao pretendido, ou seja, desestimula a exploração de atividade empresarial de forma individual, gerando ainda a formação de sociedades montadas, nas quais não há affectio societatis, sociedades constituídas apenas para usufruir o benefício da responsabilidade limitada dos sócios. É o que o ilustre Dr. CALIXTO SALOMÃO FILHO denomina “sociedade de fato unipessoal”3.

Diante dessa realidade, é necessário questionar as razões da impossibilidade de limitação da responsabilidade de tal empresário.

A principal razão é a unicidade do patrimônio do empresário individual. Não se admite na legislação brasileira vigente que uma pessoa possa separar parte de seu patrimônio para a exploração de uma atividade empresária de forma individual. Ocorre que a separação patrimonial tem sido amplamente defendida pela doutrina, em especial pelo ilustre doutrinador CALIXTO SALOMÃO FILHO: “A separação patrimonial instrumental a essa afetação é exatamente aquela que permite ao comerciante limitar seu risco (impedindo que dívidas oriundas de sua atividade comercial ameacem seu patrimônio pessoal) e garante os credores por dívidas oriundas da atividade praticada como patrimônio separado (assegurando que aquele patrimônio é a garantia de sua dívida e que portanto eles não terão a concorrência dos credores particulares do titular do patrimônio”4.

As posições contrárias sustentam-se na possibilidade de fraude no exercício da atividade pelo empresário individual com patrimônio afetado, na medida em que só responderia até o montante daquele. Porém, o nosso Código Civil, em seu art. 50, já trata da hipótese da desconsideração da personalidade jurídica em razão da fraude, o que resolve a questão suscitada.

Isso posto, propomos algumas questões a ser observadas: quais as diferenças práticas no funcionamento de uma sociedade empresária e individual? Qual o fator determinante para a diferenciação de tratamento dos dois empresários? O número de pessoas a explorar a atividade empresarial é relevante a ponto de determinar que tais empresários sejam submetidos a regimes jurídicos distintos?

É importante observar que o tema aqui tratado é objeto de discussão em diversos países, sendo até incorporado às legislações estrangeiras, como as do Chile, Peru, Portugal, Itália, entre outros.

Seguindo tais referenciais, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei5 para alteração do Código Civil Brasileiro, inserindo o art. 985-A, com a seguinte redação:

Art. 985-A. A sociedade unipessoal será constituída por um único sócio, pessoa singular ou coletiva, que é o titular da totalidade do capital social.

§1º A sociedade unipessoal também poderá resultar da concentração das quotas da sociedade num único sócio, independentemente da causa da concentração.

§2º A firma da sociedade deverá ser formada pela expressão “Sociedade Unipessoal” ou “Unipessoal” antes da palavra “Limitada” ou da abreviatura “Ltda.”.

§3º Somente o patrimônio social responderá pelas dívidas da sociedade unipessoal”.

Constatamos, assim, que a questão aqui debatida é de extrema relevância, e a alteração legislativa proposta representará um avanço, na medida em que será um real incentivo à inscrição de novos empresários, que, explorando suas atividades, trarão inúmeros benefícios à economia brasileira e à sociedade em geral.

Notas:

1 MACHADO, Silvio Marcondes. A limitação da responsabilidade do comerciante individual. São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 11.

2 Instrução Normativa SRF n. 200, de 13 de setembro de 2002, art. 12.

3 Sociedade Unipessoal. São Paulo, Malheiros, 1995, p. 233.

4 Op. cit., p. 29.

5 Projeto de Lei n. 2.730/2003 apresentado pelo Deputado Almir Moura.

* Cinira Gomes Lima Melo
Pós-graduanda em direito empresarial pela PUCSP, Mestranda em Direito pela UNIMES, professora em cursos preparatórios para o exame da OAB e Advogada na área empresarial.

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