A mais relevante das inovações que o Código Reale trouxe para as sociedades limitadas é a criação de dois subtipos deste tipo societário. A partir da vigência da nova lei, os sócios que optarem pela constituição de uma sociedade limitada podem escolher entre duas grandes alternativas. A inovação decorre da regra de regência supletiva das sociedades limitadas prevista no art. 1.053 e seu parágrafo único do novo Código Civil (NCC):
Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.
Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.
O Capítulo do NCC sobre sociedades limitadas (Parte Especial, Livro II, Título II, Subtítulo II, Capítulo IV) possui diversas lacunas. Não disciplina, por exemplo, o direito de retirada imotivado nas sociedades sem prazo, as conseqüências da morte de sócio, a distribuição do resultado e outros temas societários de real importância. Nestas matérias, a respeito das quais o Capítulo do NCC sobre sociedade limitada é omisso, este tipo societário pode ser regido por dois diferentes conjuntos de normas legais: de um lado, o correspondente ao Capítulo do NCC sobre as sociedades simples (Parte Especial, Livro II, Título II, Subtítulo II, Capítulo I) ou à Lei das Sociedades Por Ações (LSA: Lei n. 6.404/76).
A sujeição a um ou outro regime de regência supletiva depende do que estiver previsto no contrato social; ou seja, depende do que os sócios negociarem. Se o contrato social for omisso quanto ao regime de regência supletiva ou eleger o das sociedades simples, naquelas matérias em que o Capítulo do NCC sobre sociedade limitada for omisso, aplicam-se as regras do Capítulo do NCC sobre sociedades simples. Caso o contrato social eleja como regime de regência supletiva o da sociedade anônima, naquelas matérias, a sociedade limitada sujeitar-se-á às normas da LSA.
Existem, assim, duas limitadas; ou melhor, dois subtipos de sociedades limitadas. Um, o das sociedades limitadas sujeitas ao regime de regência supletiva das sociedades simples (Subtipo I); outro, o das sujeitas ao regime de regência supletiva das sociedades anônimas (Subtipo II). Às sociedades do primeiro subtipo proponho chamar limitadas de vinculo instável; às do segundo, limitadas de vínculo estável. Isto em razão da implicação que reputo mais relevante entre as diferenças existentes entre os dois subtipos: o direito de retirada imotivada nas sociedades sem prazo. A existência deste direito nas limitadas de subtipo I faz com que o sócio possa, a qualquer momento e independente de motivação, requerer a apuração dos seus haveres; isto torna o vínculo entre os sócios, neste subtipo societário, mais instável do que o do outro subtipo, em que a retirada imotivada não é cabível.
Para os sócios escolherem o subtipo adequado às relações que pretendem contratar, é necessário que conheçam as características de cada um. Neste pequeno artigo, pretendo listar e discutir brevemente tais características.
1. Limitada do Subtipo I
As sociedades limitadas sujeitas à regência supletiva do Capítulo do NCC sobre sociedades simples estabelecem entre os sócios um vínculo instável, que pode ser rompido com maior facilidade. Isto, em função das hipóteses em que é cabível a dissolução parcial (ou, no dizer do NCC, a resolução da sociedade em relação a um sócio).
Nas sociedades do subtipo I, a dissolução parcial cabe em 5 casos:
a) Morte de sócio. Morrendo sócio de sociedade limitada de subtipo I, diz a lei que será feita, em princípio, a liquidação de sua quota (NCC, art. 1.028, caput). Deste modo, a regra geral é a de que a morte do sócio implica a dissolução parcial da sociedade de vínculo instável. Deve a sociedade levantar um balanço patrimonial específico (chamado doutrinariamente de balanço de determinação), mensurar o valor das quotas do sócio falecido e pagar ao espólio em 90 dias.
A sociedade limitada deste subtipo só não será parcialmente dissolvida em razão de morte de sócio nas três hipóteses que a lei trata como exceção: previsão no contrato social de que a morte do sócio não induz a liquidação de suas quotas (art. 1.028, I); a dissolução total deliberada pelos demais sócios (art. 1.028, II); e acordo entre os sócios sobreviventes e os sucessores do sócio morto (art. 1.028, III: a lei fala em “herdeiros”, mas não se deve dar uma interpretação literal ao dispositivo).
b) Liquidação de quotas a pedido de credor de sócio. Esta é uma das mais infelizes inovações do NCC. Estabelece o art. 1.026, parágrafo único, que o credor do sócio pode “requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado (com base no balanço patrimonial especial), será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até 90 dias após aquela liquidação”. Esta lamentável hipótese específica de dissolução parcial cabe apenas nas sociedades limitadas de subtipo I, já que a norma legal em que ela se abriga, o art. 1.026 integra o Capítulo do NCC sobre sociedades simples.
c) Retirada motivada. A retirada motivada cabe sempre que o sócio minoritário discorda de deliberação da maioria que implique a alteração do contrato social, fusão da sociedade ou incorporação (de outra ou dela por outra). Verificadas uma destas causas especificadas em lei (NCC, art. 1.077), o sócio dissidente, mediante ato unilateral de vontade, desliga-se da sociedade e pode exigir dela o pagamento do reembolso de seu investimento. Este reembolso deve ser calculado com base no valor patrimonial da participação societária (NCC, art. 1.031). Quando a limitada de subtipo I é contratada por prazo determinado, prevê a lei também a possibilidade de retirada motivada em razão de qualquer causa justa provada em juízo (NCC, art. 1.029, parte final).
d) Retirada imotivada. O principal fator de instabilização do vínculo societário entre os sócios da limitada de subtipo I diz respeito a esta hipótese de dissolução parcial. Quando a sociedade deste subtipo é contratada por prazo indeterminado, o sócio pode se desligar dela a qualquer momento e independentemente de motivação. Basta que não queira mais ser sócio, para ter direito ao desinvestimento e exigir o reembolso de sua participação. A lei estabelece, neste caso, apenas a condição de prévia notificação aos demais sócios com antecedência mínima de 60 dias (NCC, art. 1.029, primeira parte). Nas sociedades com prazo determinado, não cabe a dissolução parcial por retirada imotivada.
e) Expulsão de sócio. A última hipótese de dissolução parcial da sociedade limitada de subtipo I é a expulsão de sócio. Para ter lugar extrajudicialmente, é necessário, desde a vigência do Código Reale, que o contrato social contenha expressa cláusula permitindo-a. Exige-se, também, tenha o expulso incorrido em grave conduta, capaz de expor a continuidade da empresa a risco. Por fim, a expulsão extrajudicial depende da realização de assembléia de sócios especialmente convocada para este fim e com ciência do sócio a ser expulso, para que possa comparecer ao evento societário e nele exercer o direito de defesa (NCC, art. 1.085).
2. Limitada do Subtipo II
Anteriormente à vigência do NCC, a regência supletiva das sociedades limitadas (abstraídas as hipóteses de aplicação do Código Comercial de 1850) cabia à lei das sociedades anônimas, nos termos do art. 18 do Dec. 3.708, de 1919:
Art. 18. Serão observadas quanto às sociedades por quotas de responsabilidade limitada, no que não for regulado pelo estatuto social, e na parte aplicável, as disposições da lei das sociedades anônimas.
Atente-se à sutileza do antigo mecanismo. A lei das limitadas não elegia a lei das sociedades anônimas como sua própria fonte de regência supletiva. A correta interpretação do dispositivo acima, feita pela doutrina, indicava que a lei das sociedades anônimas era, na antiga sistemática, supletiva do contrato social. Revejam‑se os termos do dispositivo: aplicava-se a lei das sociedades anônimas no que não fosse regulado pelo estatuto social. Este também era o entendimento pacífico da jurisprudência ([1]).
A implicação imediata da definição da LSA como fonte supletiva do contrato social (e não da lei das limitadas) era claríssima: os sócios podiam contratar contrariamente ao disposto na lei das sociedades por ações. Como esta lei somente se aplicava quando omisso o contrato social, em os sócios estabelecendo qualquer contratação (mesmo que em sentido oposto ao da LSA), não havia como se cogitar de invalidade da cláusula contratual.
Deste modo, uma cláusula – aliás bem comum nos contratos sociais de antigamente – prevendo que o resultado social seria destinado conforme o deliberado pela maioria dos sócios não era inválida no mecanismo anterior de regência supletiva. A LSA determina que uma parte dos resultados sociais seja mantido como reserva e uma parte seja distribuída obrigatoriamente como dividendos (arts. 189 a 202), mas se os sócios contratavam diferentemente, prevalecia a vontade destes. O novo mecanismo de regência supletiva pela LSA é bem diferente porque as normas desta lei não são mais complementares do contrato social (ou da vontade dos sócios), mas sim da lei, isto é, do Capítulo do NCC sobre sociedades limitadas.
Num certo sentido, antes da entrada em vigor do NCC, a margem para a negociação das cláusulas entre os sócios era mais ampla. Esta nova sistemática de regência supletiva da limitada (de subtipo II) pela LSA aplica-se, também, na dissolução parcial. Quer dizer, o contrato social não pode, sob pena de invalidade, prever qualquer hipótese de resolução da sociedade em relação a um dos sócios que não tenha amparo na lei das sociedades por ações.
Na sociedade limitada de subtipo II, só cabe a dissolução parcial em 2 hipóteses: retirada motivada e expulsão. O exercício do direito de retirada motivada só pode ter por fundamento a alteração contratual, fusão ou incorporação (NCC, art. 1.077) e a expulsão segue as regras já examinadas anteriormente (NCC, art. 1.085). Não cabe a dissolução parcial deste subtipo de sociedade por simples vontade do sócio, nem a pedido de credor deste ou por falecimento de qualquer um deles. Nela, o vínculo entre os integrantes da sociedade é mais estável porque não pode ser desfeito com tanta facilidade. Aproxima-se a estabilidade do vínculo dos sócios de limitada de subtipo II da do vínculo entre acionistas da sociedade anônima, embora neste último tipo ele seja ainda mais estável (já que não existe a hipótese de expulsão de acionista minoritário).
3. Outras diferenças entre os Subtipos
Três outras diferentes devem ser apontadas entre as duas limitadas:
a) Desempate. Nas sociedades limitadas com vínculo societário instável, o desempate é feito, inicialmente, segundo o critério da quantidade de sócios (CC, art. 1.010, § 2º). Apenas permanecendo o empate após a aplicação deste critério, caberá ao juiz desempatar a matéria.
Já nas sociedades limitadas com vínculo societário estável, não há o critério de desempate pela quantidade de sócios. Prevalecerá, nestas, sempre a quantidade de ações de cada sócio. Assim, empatada a deliberação, tenta-se o desempate em nova assembléia geral a se realizar com pelo menos 60 dias de intervalo; continuando o impasse, e não prevendo o estatuto a arbitragem, nem os acionistas elegendo terceiro a quem encomendar a decisão, caberá ao juiz desempatar no interesse da sociedade (LSA, art. 129, § 2º).
b) Destinação do resultado. Nas sociedades limitadas com vínculo societário instável, a maioria dos sócios delibera sobre a destinação do resultado, podendo livremente decidir pelo reinvestimento da totalidade dos lucros gerados ou pela distribuição de todo o resultado. Isto porque, nas normas de regência da sociedade simples, não estabelece a lei nenhuma obrigatoriedade de distribuição mínima de parte dos lucros entre os sócios ou de apropriação de reservas.
Já as sociedades limitadas com vínculo societário estável devem prever, no contrato social, o dividendo obrigatório a ser distribuído anualmente entre os sócios. Caso seja omisso o instrumento contratual, pelo menos metade do lucro líquido ajustado deve obrigatoriamente ser distribuído entre os sócios como dividendo (LSA, art. 202). Este é o piso, já que integra os dividendos obrigatórios toda parcela do resultado que não for apropriado numa das reservas previstas em lei ou no contrato social.
Assim sendo, se a sociedade limitada, ao término do exercício, apresentou resultado líquido positivo, os limites para os sócios deliberarem sobre a destinação deste resultado existem apenas nas sociedades de subtipo II. Nas de subtipo I, eles poderão livremente aprovar qualquer destinação do resultado.
c) Vinculação a atos estranhos ao objeto social. A sociedade limitada com vínculo instável, por se submeter ao art. 1.015, parágrafo único, III, do CC (regra constante do Capítulo das sociedades simples) não se vincula aos atos praticados em seu nome pelo administrador quando se tratar de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. Trata-se de norma inspirada na vetusta teoria dos atos ultra vires ([2]). Já a sociedade limitada com vínculo estável, não se submetendo ao dispositivo referido, vincula-se a todos os atos praticados em seu nome por seus administradores, ainda que estranhos ao objeto social.
4. Conclusão
Entre os dois subtipos de limitada não existe um melhor que o outro. A maior ou menor estabilidade do vínculo entre os sócios, bem assim as implicações das demais diferenças (destinação do resultado, empate e vinculação da sociedade a atos estranhos ao seu objeto social), correspondem, em última análise, a modelos de sociedade postos à disposição dos sócios. Em outros termos, antes da entrada em vigor do Código Reale, os sócios podiam optar entre dois grandes modelos:
sociedade limitada ou anônima (esqueçam-se os tipos menores, de pouca presença na economia). Hoje, eles devem optar entre três: limitada de vínculo instável, limitada de vínculo estável ou anônima. Para que os sócios possam fazer a escolha mais adequada aos seus interesses, os profissionais que os assistem devem informá-los sobre as diferenças, vantagens e desvantagens de cada alternativa.
1. Conferir: “SOCIEDADE POR QUOTAS — Responsabilidade limitada — Aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas — Cabimento em relação do contrato, naquilo que silenciou, podendo dispor a respeito, e não em relação à lei que a rege — Artigo 18 do Decreto Federal n. 3.708, de 1919 (…). A Lei das Sociedades Anônimas é supletiva não da lei das sociedades por quotas, mas do contrato dessas sociedades” (TJSP, JTJ, 146/188); no mesmo sentido: “DIREITO COMERCIAL — A Lei das Sociedades Anônimas não é supletiva do Decreto n. 3.708/19, mas do contrato social das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Apesar de consagrado o princípio da maioria, esta não pode, entre outras hipóteses, transformar o objeto nem o tipo da sociedade, sem o consenso de todos os sócios, pois isto implica na modificação da sua e da responsabilidade da sociedade, entre si e perante terceiros” (TJSP, BA 1.772; também em RT, 695/97).
2. Fábio Ulhoa Coelho, Curso de Direito Comercial. São Paulo, Saraiva, 2003, 6. ed. revista e atualizada de acordo com o novo Código Civil e alterações da LSA, p. 447/449.
* Fábio Ulhoa Coelho
Professor Titular da Faculdade de Direito da PUCSP, instituição em que se titulou Mestre, Doutor e Livre-Docente e onde leciona nos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado, Membro da Société de Législation Comparée, de Paris, e advogado.