Ação Coletiva e legitimidade do Ministério Público

É pacífico o entendimento a respeito da legitimidade do Ministério Público para a defesa do patrimônio coletivo, pela via da ação civil pública. Como ressaltado pelo Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, “na sociedade contemporânea de massa, e sob os influxos de uma nova atmosfera cultural, o processo civil, vinculado estreitamente aos princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministério Público uma instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania” (STJ, REsp. nº 89.646/PR).

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 129 dispôs, dentre outras, ser função institucional do Ministério Público “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Dessa maneira, o inquérito civil e a ação civil pública foram elevados à condição de instrumentos processuais constitucionais aptos à garantia e à proteção de bens e de interesses coletivos.

Importa recordar, nesse preâmbulo, que a previsão legal de ação civil dessa magnitude veio a lume com a edição da Lei nº 6.938/81, que em seu artigo 14, § 1º, dispunha que o Ministério Público da União e o dos Estados tinham legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e penal por danos causados ao meio ambiente. A Lei Complementar Federal nº 40/81 – Lei

Orgânica Nacional do Ministério Público –, em seu artigo 3º, III, considerava função institucional do Parquet promover a ação civil pública, nos termos da lei. Assim, a ação civil pública é a via processual que confere a esse órgão estatal o direito de fazer atuar, na esfera civil, a função jurisdicional. Posteriormente, então, foi editada a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que veio disciplinar a ação civil pública – antes regulada pela Lei Orgânica do Ministério Público – e instituiu, também, o inquérito civil.

Esses instrumentos processuais – a ação civil pública e o inquérito civil – têm finalidades bem definidas: a ação civil pública, sem prejuízo da ação popular, destina-se às ações de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. À responsabilidade civil pela prática de ato ilícito corresponde a obrigação correlata de reparar o dano. Essa responsabilidade civil, diferentemente da imputação criminal que somente alcança a pessoa humana, é mais ampla e enfeixa tanto as pessoas naturais como as jurídicas, e abrange o dano moral e o patrimonial. O inquérito civil, por sua vez, é uma peça processual de informação elaborada pelo Ministério Público para a coleta de dados, a fim de proporcionar fundamento à propositura da ação civil pública. O escopo desse procedimento é a reunião de todos os elementos indispensáveis à propositura da ação civil.

O inquérito civil é presidido por membro do Ministério Público, promotor de justiça ou procurador de justiça, que podem requisitar auxiliares entre os funcionários. O inquérito civil – que se equipara ao inquérito administrativo – é instaurado quando o Ministério Público possuir os elementos fáticos de prova que sirvam de Fundamento para ação e a sua instauração se dá por iniciativa do Parquet ou a requerimento de pessoas físicas ou jurídicas. Como se vê, com base no inquérito civil passa-se à ação civil pública, para a qual o Ministério Público está legitimado e essa iniciativa se insere entre as suas funções institucionais, conforme expressa disposição constitucional (CF, artigo 129).

De tudo se pode concluir que, além de ser parte legítima para promover, privativamente, a ação penal pública, nos termos da lei, a regra jurídica constitucional atribui ao Ministério Público a legitimação para a propositura de ações civis previstas no artigo 129 da Carta Federal. Desse modo, conquanto anteriormente prevista na Lei nº 7.347/85, a legitimação do Ministério Público para a instauração de inquérito civil e para a propositura da ação civil pública foi Elevada ao nível constitucional, estando gravada no Direito positivo como sua função institucional. Conseqüentemente, esta é indelegável, impostergável e irrenunciável.

Conforme preleciona o processualista Barbosa Moreira (cf. Ensaios e Pareceres de Direito Processual Civil, R. de Janeiro, 1971, p. 59), legitimação é a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação perante o órgão judicial, e a situação legitimamente prevista na lei para a posição processual que a essa pessoa se atribui, ou que ela mesma pretenda assumir. Assim, como representante da sociedade e agente estatal, ao Ministério Público coube, por expressa disposição constitucional, a defesa do patrimônio público e social, havendo verdadeira coincidência entre a situação jurídica e seu posicionamento na relação processual, não se lhe exigindo a demonstração de qualquer liame entre a sua iniciativa e o bem que visa proteger – a legitimação adequada.

Como rememorado antes, a Lei Orgânica do Ministério Público, em seu artigo 3º, III, considerava como função institucional do Parquet a iniciativa para a propositura da ação civil pública. A Lei nº 7.347/85, ao sistematizar a disciplina das ações coletivas, ampliou o leque dos legitimados para a ação civil pública, conferindo, para tanto, legitimação à União, aos Estados e aos municípios, à autarquia, à empresa pública, à fundação, à sociedade de economia mista e às associações, desde que essas estejam constituídas há pelo menos um ano, nos termos da lei civil, e inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, etc. (Lei nº 7.347/85, artigo 5º, I e II). Indaga-se, no entanto, se o fato de haver o constituinte federal retornado a propositura da ação civil pública e a instauração de inquérito civil como função institucional do Ministério Público não teria alcançado a Lei da Ação Civil Pública, na parte em que essa acresceu o rol dos legitimados para a ação.

Dir-se-á que o § 1º do artigo 129 da Constituição Federal dispõe sobre uma exceção quando prevê que a legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei. Entendo que assim não se pode ler esse dispositivo. A oração não se refere à ação civil pública, mas à ação direta de inconstitucionalidade, para a qual a Carta Federal prevê o rol dos legitimados em seu artigo 103, e à ação para defesa judicial dos interesses indígenas, para a qual está legitimada a Funai. Afastava-se, dessa maneira, possível antinomia aparente na Constituição Federal, que dispunha no seu artigo 129 a respeito das funções institucionais do Ministério Público. Não se referia o § 1º do artigo 129 à possibilidade de outros legitimados também intentarem ação civil pública e não foi

sem propósito que o Constituinte Federal se limitou ao vocábulo ações civis, sem adjetivá-la (com o pública). Nem se diga vislumbrar na espécie apenas uma técnica de redação. Na verdade, ateve-se o legislador às lições doutrinárias pertinentes à definição de ação e de processo, institutos que não se confundem. O processo é sempre público, mas não se pode afirmar que a ação civil é pública. A ação civil, em geral, é privada, e, por exceção, pública, ao contrário da ação penal que, em geral, é pública e pode, por exceção, ser privada.

Portanto, ao não repetir o vocábulo pública no § 1º do artigo 129 da CF/88, mas somente ação civil, quis o legislador afastar a exceção conferida às ações civis e afirmar a legitimação do Ministério Público para a propositura da ação civil pública, ressaltando, entretanto, que o exercício dessa função institucional conferida ao Parquet em prol da coletividade não impede a atuação de terceiros em ação civil (privada) nas mesmas hipóteses, visando à reparação ou à proteção de direito próprio.

Entendo que a norma há de ser compreendida assim, tendo em consideração que os legitimados constantes do artigo 5º da Lei nº 7.347/85 têm procuradores e advogados públicos (União, Estados e municípios) diretamente vinculados à defesa das instituições a que pertencem e não à proteção da coletividade. Por sua vez, as associações somente estão legitimadas para representar seus filiados, judicial e extrajudicialmente, quando por eles autorizadas (CF/88, artigo 5º, XXI). Observado esse requisito, atua a entidade associativa como substituto processual dos seus associados, o que não significa cuidar a hipótese de uma ação de

natureza coletiva, posto que a sentença que vier a ser proferida está limitada aos seus membros. E na ação civil pública não se tem uma substituição processual, mas uma legitimação extraordinária. Logo, referindo o artigo 129, § 1º, CF, à legitimação de terceiros da ação civil, segundo o disposto nesta Constituição e nas leis, é fácil concluir que ante o disposto nos artigos 131 e §§, 132, e 5º, XXI, da CF/88, também por isso não estão os Estados, os municípios e a União Legitimados para propor a ação civil pública.

Conquanto sejam respeitáveis as diversas e reafirmadas opiniões de Doutrinadores a respeito da recepção, in totum, do artigo 5º da Lei nº 7.347/85 pela Constituição Federal de 19881, importa seja observado que o § 2º do artigo 129 da Constituição Federal acentua que “as funções do Ministério Público só podem ser exercidas por integrantes da carreira”, o que significa dizer (embora a

doutrina assente que essa norma apenas veda o promotor ad hoc) que as funções institucionais do Parquet, fixadas segundo o seu caput, são reservadas Exclusivamente aos membros do Ministério Público.

Afirma a doutrina que a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor ampliaram os legitimados ativos para a tutela dos bens transindividuais (ações coletivas), fixando os representantes adequados. Entende que, desse modo, a solução pluralista, inicialmente acolhida pela Lei nº 7.347/85, foi consagrada pelo artigo 129, § 1º, da Constituição Federal. É relevante apontar, no entanto, que o valor normativo de uma Constituição pressupõe e exige um método adequado de interpretação (…). O sentido da Constituição apurar-se-á tomando em conta, por um lado, o elemento literal da norma e as respectivas

conexões de sentido sistemáticas e teleológicas e, por outro lado, certos tópicos ou princípios (unidade da Constituição, concordância prática, força normativa, etc.) que possam auxiliar o aplicador da Constituição na busca da solução para o

caso concreto (…) Ao considerar-se essencial na interpretação da Constituição as conexões de sentido, pretende-se sobretudo pôr em relevo que um preceito constitucional não deve ser considerado isoladamente e interpretado apenas a

partir dele próprio. No terreno da interpretação constitucional está vedada a interpretação autêntica pelo legislador ordinário. O legislador não pode arrogar-se o direito de fixar o sentido das normas constitucionais, pois ele não está em

relação à Constituição na mesma posição que tem em relação às leis que dele emanam (…). O cânone interpretativo fundamental é o de que as leis devem ser interpretadas de acordo com as normas superiores da Constituição, e não o

inverso.”2

Tem-se que, dessa maneira, em virtude de preceito constitucional, o Ministério Público retomou para si a legitimação para a propositura da ação civil pública – que muitas vezes está condicionada à prévia instauração de inquérito civil que somente o Parquet pode deflagrar. Assim, prevendo a Carta Federal que essa é uma função institucional do MP, resta aos terceiros a propositura de ação civil de natureza privada para a preservação e proteção dos seus direitos. Daí a Conclusão de que o artigo 5º da Lei nº 7.347/85 somente foi recepcionado pela Constituição Federal na parte em que prescreve que “a ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, o que, de resto, agora é Autorização constitucional, e não de natureza legal.

NOTAS

1 Pedro Lenza, in Teoria Geral da Ação Civil Pública, RT, p. 169/173; Mancuso, in Ação Civil Pública, 7 ed., p. 103 e 130; A. P. Grinover, in Uma Nova Modalidade de Legitimação à Ação Popular, p. 24; Mazzilli, in A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, p. 200; Vigliar, in Tutela Jurisdicional Coletiva, p. 159.

2 J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Fundamentos da Constituição, Coimbra, p. 51/53.

* João Bosco Marcial de Castro

bacharel em Direito, com Pós-Graduação em Direito Processual Civil, analista Judiciário e assessor-chefe da Presidência do Supremo Tribunal Federal

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