1. GENERALIDADES
O constitucionalismo marcou o despontar da vontade humana de comandar seu próprio destino, participando da vida política do Estado. Galgou espaço até suplantar as formas, por vezes tirânicas, de governo sem iniciativa nem participação popular.
O regramento mínimo de direitos, como forma de proteger contra o arbítrio era o ideal perseguido pelos constitucionalistas. Esse rol de direitos ou garantias mínimas está intrinsecamente ligado com a proteção dos cidadãos frente ao Estado, limitando o campo de atuação e intervenção na seara privada, criando instrumentos de defesa.
O povo é o titular do poder e sua Constituição é a manifestação básica e essencial desta titularidade (Barthelémy). Esta é colocada em risco inúmeras vezes, eis que é submetida a processos legislativos, reveses políticos e às mais esdrúxulas interpretações pelos operadores do direito. Somente através da instauração de princípios podemos assegurar um caminho interpretativo a ser seguido, de modo a cristalinizar e discutir a disparidade do ser com o dever ser (Miguel Reale), tornando possível observar o fenômeno intrínseco axiológico de uma Constituição e de corretamente utilizá-la.
Miguel Reale exara seguinte pensamento “o Estado e o Direito não são fins, mas apenas meios para a realização da dignidade do Homem, que é o valor-fonte do ordenamento”. Essa visão torna o Homem o epicentro do ordenamento jurídico-constitucional, colocando-o como um valor superior ao Estado, a fim de que as necessidades e anseios dos cidadãos sejam atendidos. Isso ocorre para evitar interpretações nocivas ao cidadão, através dos princípios constitucionais
Para garantir a proteção contra abusos e arbitrariedades, o povo representado pelo Poder Constituinte Originário elencou princípios norteadores da Administração Pública. Os principais princípios balizadores da conduta do Administrador Público são descritos no art. 37 da Constituição: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Estes tem como finalidade imediata a consecução do bem comum, mister do Estado.
Hely Lopes Meirelles lista doze regras de observância para o bom administrador: legalidade, moralidade, impessoalidade ou finalidade, publicidade, eficiência, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, motivação e supremacia do interesse público. Esta listagem, sem dúvida, quando obedecida atinge o mister do Estado que é o bem comum, além de fornecer uma ampla e sistemática visão dos primordiais princípios do Direito Administrativo e do nosso regime político.
2. PRINCÍPIO DA MORALIDADE
Todo princípio além de viga-mor do sistema jurídico é também pressuposto de validade. Neste prisma podemos caracterizar o princípio da moralidade como pressuposto de validade dos atos da Administração Pública em geral.
O brocardo romano “nom omne quod licet honestum est” (nem tudo que é lícito é honesto) pode conceder-nos a visão lógica que o princípio da moralidade administrativa não está contido no princípio da legalidade, nem aquele é desdobramento deste. O princípio em tela reporta-se à moral jurídica descrita por Maurice Hauriou, na acepção de ética superior que orienta as atividades públicas, perpassando pela moral comum, sem no entanto com ela confundir-se.
Ulpiano definiu direito como “viver honestamente, a ninguém ofender e dar a cada um o que é seu”. No mesmo caminho enveredou o legislador na lei 9.784/99, abraçando valores como a probidade, decoro e boa-fé, valores referidos anteriormente no Direito Natural e considerados como jurídicos apenas quando expressamente citados em texto legal pela escola positivista.
Essa tendência positivista parece adentrar no espírito dos aplicadores do direito, porque só os abraçam quando estão expressamente no texto de lei. Esta idéia deve ser combatida, porque antes dos valores positivados hão os valores sociais, construídos sob o manto da vivência humana e na luta dos povos pelo desenvolvimento. De outro modo, também existem os princípios subentendidos ou não expressados de maneira clara, que nem por isso deixam de ser princípios a serem observados.
O Direito e a Moral guardam pontos de convergência e divergência, estando pacífico que ambos caminham na direção do ideal de Justiça. Jeremy Bentham (jusfilósofo inglês – 1748-1838) entendia o Direito como elemento inserido na Moral e foi ele o idealizador da Teoria do Mínimo Ético, posteriormente desenvolvida por Georg Jellineck (jusfilósofo alemão – 1851-1911) que acatava a teoria de que o Direito seria um produto de uma reunião de todos os deveres morais necessários à manutenção da ordem social, ou seja, a Ética abrangeria a Moral e o Direito.
Embora o Direito moderno em sua teoria geral não seja entendido hodiernamente como parte da ética e da moral, nosso ordenamento via de regra acolhe algumas diretrizes morais oriundas da ética, haja vista que os elementos da boa-fé e má-fé são encontrados em qualquer campo do direito e, mais objetivamente podemos citar o princípio da moralidade como exemplificação.
A deontologia (do grego deontos=dever e logo=estudo, ou ainda estudo do que deve ser) busca o aperfeiçoamento do caráter humano, procurando fixar normas de conduta baseadas no bem comum. Nisto interliga-se com a Administração Pública que tem como objetivo/finalidade o alcance do bem comum, que é atingido pela boa administração.
No dizer do romano Marco Antônio “o mal que os homens fazem vive depois deles. O bem é quase sempre enterrado com seus ossos”. É nesse sentido que o legislador originário resguardou os interesses do povo, colocando na posição privilegiada de princípio da moralidade administrativa. No filme O Gladiador, o general do exército romano Maximus disse a sua tropa pouco antes da batalha “o que se faz na vida ecoa na eternidade”, da mesma forma podemos entender a atuação do Administrador Público, porque seus atos escapam da seara administrativa para interferir no cotidiano de cada cidadão brasileiro, acarretando problemas ou impondo soluções a depender da atuação administrativa do Estado.
A função precípua do Administrador é atingir a finalidade do Estado, ou seja, promover o bem comum. Para tanto, um conjunto de características básicas são essenciais, talvez abstratas ou apenas agraciadas nos conceitos jurídicos indeterminados dos códigos. Porém, de observância prática visceral para a boa consecução da finalidade do Estado, eis que o Administrador agindo fora da moralidade administrativa está lançando mão de mais poderes do que lhes foi conferido, interferindo na seara privada e atingindo todos os cidadãos direta ou indiretamente.
O ato administrativo em desapego ao princípio da moralidade agride, ainda que legal o seja, eis que o senso comum de normalidade, ética, probidade, boa-fé e moral fica prejudicado em sua fundação basilar. Maria Sylvia Zanella di Pietro faz referência ao afrontamento do senso comum de honestidade, retidão, equilíbrio, justiça e ética das instituições como marco definidor para a infringência do princípio da moralidade administrativa, aduzindo que relação custo-benefício também é termômetro para auferir a observância do princípio, ora tratado.
Dentre todos os fatores relevantes para definir o alcance do princípio em tela, a conjugação com o princípio da razoabilidade nos parece o mais acertado, sendo inclusive o norte adotado pelo Supremo Tribunal Federal. A correlação entre a moralidade e a probidade também é bem vinda, pois a conduta que desrespeita o princípio da moralidade é enquadrado nos atos de improbidade do art. 37, parágrafo 4o da Constituição Federal, como realça Alexandre de Moraes.
3. CONCLUSÃO
Para a doutrina dominante a moral administrativa deve ser entendida como mínimo que se espera do Administrador Público na sua conduta interna, segundo as normas da instituição, devendo obedecimento à lei ética da instituição. Creditamos acertado o posicionamento, porém essa acepção jurídica institucional não existe na maioria das instituições de forma normatizada, ficando ao alvedrio dos administradores, dentro de seu âmago, suas convicções e formação humanística decidir o que é moral administrativamente compreendido.
O legislador constitucional certamente quis dar maior alcance e efetividade ao princípio de forma a evitar que houvesse subterfúgios para o mau administrador esquivar-se de suas obrigações. A forma positivada do princípio da moralidade administrativa em nosso olhar tem dois aspectos: a ética interno-administrativa e o senso comum de moral e ética que pertinem ao cidadão médio, de acordo com o princípio da razoabilidade.
Não basta que a Constituição abrace princípios e os diga obrigatórios. É preciso nasces em cada cidadão a consciência de que é preciso fiscalizar, cobrar, exigir e estar atento a todos os atos da Administração Pública. O povo é titular do poder e o exerce por meio de representantes eleitos direta ou indiretamente (art. 1, parágrafo único da Constituição) que são nada mais que funcionários transitórios do povo para promover o bem comum.
A partir da conscientização do povo e o pleno exercício da cidadania é que será possível que a finalidade do Estado seja atingida e os princípios norteadores da Administração Pública deixem de ser apenas texto de lei, para transmutar-se em realidade viva, assim como os demais princípios constitucionalmente implícitos e explícitos.
Ex positis, a interpretação ampla do conceito jurídico indeterminado de moralidade administrativa interessa a toda a sociedade, de modo a coibir os abusos e pontificar limites objetivos na seara da Administração Pública. O entendimento de que o princípio da moralidade administrativa apenas esteja relacionado ao caráter ético interno da instituição abre uma leque de entraves à aplicação prática do princípio que só interessa ao mau administrador público, haja vista as inúmeras possibilidade de esquivar-se face a ausência de regulamentação interna específica.
No seio da sociedade brasileira é preciso formar cidadãos, moldados para encaixar-se perfeitamente nos ditames da ética, moral, humanidade, solidariedade e acima de tudo capazes de tornar-se ativos socialmente através da análise crítica de sua realidade, buscando a prática constante de seus direitos, já que o primeiro passo foi dado pelo legislador ao garantir estes direitos na Constituição, agora falta o passo maior: o despertar da consciência cidadã no povo brasileiro.
Observação: Artigo inscrito no II Congresso Brasileiro de Direito Constitucional Aplicado e no II Encontro Brasil-Portugal de Direito Constitucional ocorrido em Salvador/Bahia na data de 28, 29 e 30 de Agosto de 2003.
Referências Bibliográficas
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* Dayse Coelho de Almeida
Acadêmica do 10º período de Direito da Universidade Tiradentes. Estagiária do Projeto Reformatório (Defensoria Pública da 7ª Vara Criminal de Aracaju/SE e Unit). Acadêmica da Escola Superior do Ministério Público de Sergipe (ESMP/SE)