O controle de constitucionalidade confuso

Resumo: O artigo cuida de esboçar as espécies e história dos mecanismos de controle de constitucionalidade brasileiros, as tendências de se redirecionar as Cortes Superiores às suas competências mais elevadas e, por fim, as propostas condensadas na chamada “Reforma do Judiciário” sob uma ótica crítica e jusnaturalista.

Palavras-chave: Controle Concentrado; Controle Difuso; segurança das relações jurídicas; hierarquia jurisdicional; ordem jurídica; horizontalização da jurisdição; direito natural; recurso extraordinário; recurso especial; efeito vinculante; argüição de relevância; súmula impeditiva; Lei nº 9868/99.

1. Introdução

Raras vezes palestras jurídicas são tão atrativas, mormente em se tratando de um tema pesado como o Direito Constitucional, que por sua natureza profunda, extensa e sistêmica, exigem do orador absoluta concentração que não o deixe derivar à imensidão do oceano e, sem bússola, permanecer ao sabor das marés. Pois bem, com a maestria de um velho jovial timoneiro, o Ministro Sydney Sanches, da Corte Maior, deu-nos a oportunidade de, agora, em tom de singela homenagem, lhe tomar emprestado a expressão “Controle Confuso” para retratar o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro. Da junção dos dois mecanismos existentes no Brasil – o concentrado e o difuso – dizia o Mestre surgir o “confuso”.

A fina sátira põe à discussão a insegurança jurídica gerada a partir do controle aberto que, permitindo às inferiores instâncias, ao analisar um caso concreto para decidir inter partes, incidentalmente, uma vez suscitado pelo autor ou réu, decidir pela inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.

Não se questiona a necessidade de existência de mecanismo às mãos dos magistrados para dirimir conflitos quando seu fundamento jurídico é a inconstitucionalidade, até porque “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça a direito” (1); também o tom democrático da via de exceção não se deve pôr em xeque, na medida que disponibiliza a todo jurisdicionado buscar satisfação de sua pretensão atacando ato normativo federal ou estadual, e não somente aos elevados agentes políticos e entidades de classe (2), como se regra pelo controle fechado. Todavia, este mecanismo, se desorientado, tem o revés efeito nefasto da insegurança das relações jurídicas, semelhantemente ao provocado pelo desmedido uso das medidas provisórias ou seu ascendente: os decretos-lei.

Como ter como justo, lastreado no Direito, decisões díspares, em torno de idênticos fundamento jurídico e causa de pedir; como fazer crer ao “leigo” que a “Justiça” é uma só e seu instrumento para a proteção social é o mesmo “Direito”.

2. Antecedentes históricos

Pois bem, a inaugural Constituição da República de 24 de fevereiro de 1891 já permitia o controle de constitucionalidade difuso, pois dizia:

“Art. 59. Ao Supremo Tribunal Federal compete:

2. Julgar, em grau de recurso, as questões resolvidas pelos juizes e Tribunais Federais, assim como as de que tratam o presente artigo, § 1º, e o art. 60.

§ 1º Das sentenças das justiças dos Estados em última instância haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal:

b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.”

A Constituição de 16 de julho de 1934, manteve o controle aberto e, à Corte Suprema (3), competência para julgar, em grau de recurso, a inconstitucionalidade de lei (4), tendo seu artigo 91, IV, conferido, agora, ao Senado Federal “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”; vê-se aí o embrião do hoje disposto no artigo 52, X, da Constituição de 1988 que, permite pela via do Poder Legislativo, dar-se à decisão judicial no controle difuso o efeito erga omnes. Ainda, condicionou a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público à decisão da maioria absoluta dos Tribunais (art. 179), inovou com a ação direta de insconstitucionalidade interventiva (art. 12, V, e § 2º) quando de violação pelos Estados-Membros dos princípios sensíveis (art. 7º, I, a a h) e permitiu a alegação de inconstitucionalidade de ato de autoridade pública pela via do Mandado de Segurança.

Mais ousado no tema foi, entretanto, o Anteprojeto apresentado pela Comissão do Itamaraty (designada pelo Governo Provisório de Vargas através do Decreto nº 21.402, de 14 de maio de 1932) que fixava ao Supremo Tribunal (5) competência exclusiva para, definitivamente, declarar a inconstitucionalidade de lei federal que, se proclamada por outro tribunal ou juiz, deveria subir ao Supremo por recurso ex officio (6); mais ainda, o parágrafo 3º de seu artigo 57, claramente dava efeito erga omnes às decisões de inconstitucionalidade:

“§ 3º Julgados inconstitucionais qualquer lei ou ato do Poder Executivo, caberá a todas as pessoas, que se acharem nas mesmas condições do litigante vitorioso, o remédio judiciário instituído para garantia de todo direito certo e incontestável”

Nota-se, ao lado do efeito de oposição contra todos, um que de efeito vinculante da decisão, com ares de stares dicisis.

Na Carta de 10 de novembro de 1937, a “Polaca” (7), manteve-se o controle difuso à vista do artigo 101, III, b e c, que atribuía ao Supremo Tribunal Federal tal competência por via de recurso extraordinário. Anote-se que o controle concentrado não foi conferido à corte maior. Nada se alterou no controle de constitucionalidade da Constituição de 1946 e, somente por força da Emenda Constitucional nº 16/65, que inseriu ao artigo 101 a alínea k, surge o controle de constitucionalidade por via de ação, no caso por conta exclusiva de representação do Procurador Geral da República.

Em 1967, a Constituição mantém a legitimidade exclusiva do Procurador Geral da República para propor no Supremo Tribunal Federal a representação por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual, mantendo-se, inatacável a via de exceção.

Como visto nesta rápida digressão, nossa história republicano-constitucional é marcada, desde a idealizada primeira carta de Rui Barbosa, por uma reprodução da democrática via de exceção preconizada pelo sistema norte-americano, e dela somente se apartou em 1965 para admitir também o controle fechado mantido até os dias de hoje.

3. O efeito vinculante das súmulas e a segurança das relações jurídicas

Ainda recordando o eminente Ministro Sydney Sanches, o sistema brasileiro é, portanto, “o mais completo e, talvez, um dos mais imperfeitos do mundo”.

Assenta-se a assertiva no fato de que a coexistência dos mecanismos concentrado e difuso sem um sistema de filtragem de acessos, ao contrário de resultar na abertura de franco acesso do cidadão comum ao Judiciário na contestação de eventual inconstitucionalidade de ato normativo leve à inconcebível morosidade e conseqüente injustiça. Bem já dizia Rui Barbosa “Justiça tardia é injustiça qualificada”.

Ora, longe de se considerar o controle difuso o verdadeiro responsável pela demanda de mais de 90.000 casos no ano de 2001 e outros 100.000 em 2002, na Corte Maior, a tese que sustentamos é que ao Supremo Tribunal Federal subam feitos de efetiva contestação de inconstitucionalidade e não redundantes teses já reiteradamente decididas, que tenham exclusivo tom procrastinatório.

A triste realidade mostra que o jurisdicionado, ao mesmo tempo que tem o democrático direito a contestar a inconstitucionalidade de ato normativo até a última instância, simultaneamente deve suportar uma enfadonha, custosa e morosa peregrinação pelas instâncias intermediárias – em regra reservada ao próprio poder público ou àqueles que detém o poder econômico. Mas a que se deve isto? Sem a odiosa leviandade de transformar um dos pontos mais polêmicos em algo singelo, cremos que alguns princípios devam ser repensados.

Põe-se à mesa de debates alguns conceitos aparentemente paradoxais: ampla defesa e contraditório, bem como o decorrente princípio do duplo grau de jurisdição versus celeridade jurisdicional e o livre convencimento do magistrado versus segurança das relações jurídicas que, em resumo, sintetizam a dialética justiça e direito.

Pois bem, não se pode conceber no Estado Democrático direitos absolutos. A relativização dos conceitos é o resultado de um processo de verdadeira e sábia justiça. Se de um lado a ampla defesa engloba a possibilidade interposição de recursos pela parte sucumbente, de outro lado é justa a expectativa da parte vencedora de ver sua pretensão garantida dentro de um sistema razoavelmente rápido e eficaz. De igual forma se a garantia de independência funcional tem o objetivo de conferir ao Estado-Juiz executoriedade de seus julgados, não se pode conceber que prevaleçam numa mesma ordem jurídica decisões absolutamente díspares em matéria umbilical como o é a constitucional e, até mesmo, em se tratando de leis da federação.

O silogismo é claro: se um Estado – e a República Federativa do Brasil em particular – se forma social, política e juridicamente pela promulgação de sua Constituição; se a supremacia desta Carta Política e Jurídica é o sustentáculo de toda a ordem jurídica numa ordem hierárquica normativa; se o mecanismo de proteção do sistema jurídico se dá pelo controle de constitucionalidade; se o controle repressivo de constitucionalidade brasileiro adotado é o jurisdicional; se o órgão jurisdicional erigido à “Guardião da Constituição” é o Supremo Tribunal Federal; se à Corte Suprema compete julgar em única ou última instância a constitucionalidade dos atos normativos; como se admitir contrariedade aos seus julgados?

De igual sorte, se o Superior Tribunal de Justiça é o “Guardião das Leis Federais” – bem por este motivo sua composição é representativa de todos os órgãos jurisdicionais, estaduais e federais, Ministério Público e Advogados (8) – como se permitir afronta aos seus julgados senão pela instância constitucional?

Há que se respeitar a hierarquia de instâncias, por mais que refutem magistrados e juristas ao termo hierarquia. A horizontalização do poder é tão nefasta à ordem jurídica quando se dirige à relação entre juizes e tribunais quanto se volta para juiz e partes do processo; uma sincera reflexão empática calaria opinião contrária. A ordem, e por conseguinte “ordem jurídica”, se sustenta pela hierarquização do poder e o poder está na eficácia das decisões.

Toda a estrutura do Estado Democrático de Direito se sustenta na expectativa dos concidadãos de que receberão proteção jurídica ao abdicarem da auto-tutela, pela fórmula do pacto social, onde uma autoridade suprema – o Estado-Juiz –, comum a todos e lastreada em normas claras e precisas forjadas direta ou indiretamente pelo legítimo soberano – o Povo – dirá o Direito. Qualquer anomalia neste postulado tende a conduzir à dúvida quanto à real capacidade do Estado em cumprir sua cota parte no pacto.

Litigando em juízo esperam as partes justiça rápida e eficaz que ponha fim à batalha e não a deflagração de uma “Guerra dos Cem Anos”. Daí porque ainda sereno o adágio “melhor um péssimo acordo a uma ótima demanda”; hei-lo como a confissão de falência do Estado de Direito dando lugar ao Estado anárquico ou à pretensão de legítima Revolução. Poder-se-ia questionar que esta assertiva não seria uma verdade absoluta – como de fato nada o é – já que a manutenção do litígio não se dá, em regra, por recurso de ofício mas por recursos voluntários interpostos pela parte sucumbente que, inconformada com o justo decisum ou querendo procrastinar a execução do julgado, eleva a demanda às instâncias superiores. Mas a questão sobre a qual nos debruçamos agora são os recursos extraordinário e especial sustentados nas Cortes Superiores, mormente, na Suprema.

No recurso extraordinário, interposto no Supremo Tribunal Federal, o pré-requisito elementar é o incidental questionamento da inconstitucionalidade (9) da norma, federal ou estadual, ou que se põe como fundamento jurídico do pedido e, no recurso especial (10), intentado no Superior Tribunal de Justiça, o pré-requisito é a disparidade existente entre julgados sobre a mesma matéria regrada por norma federal.

Ora, em sendo o Supremo Tribunal Federal uma Corte político-jurídica, até porque a Constituição pela qual é zelador é, sobretudo, um pacto político de contornos e supremacia jurídica, e de outro lado, em sendo o Superior Tribunal de Justiça uma Corte eminentemente jurídica, a cuidar de normas infraconstitucionais, o natural seria que seus julgados, mais que orientassem as instâncias inferiores, realmente pusessem a termo não só a demanda mas todas aquelas em que a causa de pedir e o fundamento jurídico fossem os mesmos, sacrificando de um lado as posturas e decisões isoladas em favor da verdadeira ordem e segurança jurídicas.

Respeitáveis teses se opõe a idéia do efeito vinculante das súmulas e, dentre eles, talvez o que gera um maior eco é que uma vez sumulada a questão, impedidos os níveis jurisdicionais inferiores de prolatar decisão diversa, o Direito se estagnaria, perderia a comunidade jurídica a rota de evolução das idéias e conceitos que seria trilhada tão somente pelas Cortes Superiores.

Com a mais devida vênia, inadmissível servir-se a comunidade social de cobaia da comunidade jurídica. O Direito é mero instrumento para a consecução de um fim naturalístico de justiça. Enquanto os operadores do Direito se digladiam em teses e antíteses, esgrimindo a retórica, a filosofia e os postulados acadêmicos num palco, as partes, que apostaram sua vida, liberdade e patrimônio, agonizam na expectativa da sorte lançada. Como cerrar olhos para esta cena quando as decisões judiciais são díspares em casos onde causa de pedir e fundamento jurídico são idênticos. Rodolfo de Camargo Mancuso (11) questiona “é apenas a lei enquanto norma obrigatória, geral, abstrata e impessoal, emanada do Parlamento – que deve ser igual para todos (CF, art. 5º, caput), ou, numa visão mais abrangente e holística do Direito e da realidade brasileira, essa desejável isonomia haveria de se estender também à lei quando venha a ser interpretada e aplicada judicialmente aos casos concretos?” e, citando Victor Nunes Leal responde: “Os pleitos iguais, dentro de um mesmo contexto social e histórico, não devem ter soluções diferentes. A opinião leiga não compreende a contrariedade dos julgados, nem o comércio jurídico a tolera, pelo seu natural anseio de segurança” (grifo nosso).

Numa analogia macabra, restaria admitir-se à comunidade científica médica lançar mãos dos moribundos para experimentos, num estilo neonazista. O ambiente para discussões e experimentos acadêmicos, ainda que tendentes ao aperfeiçoamento dos mecanismos de proteção jurídica, são as academias, as conferências e, por derradeiro, o parlamento, os primeiros reservados aos iniciáticos e este franqueado à participação, direta ou indireta, do profano povo.

Opor-se-iam alguns e discorreriam um tratado acerca de uma isonomia formal e outra material, e seus argumentos mais nos fariam pôr em dúvida se realmente há isonomia. Mas há – ou deveria haver – pois a igualdade jurídica é postulado do supremo Direito Natural, não o depurado nas academias, mas o sentido por certo e justo ao mais leigo dos cidadãos e cantado pelos anônimos trovadores de rua – isto é democracia; contrario sensu teríamos – ou temos – ditadura das elites.

Ainda outros diriam que não há casos idênticos, mas similares, o que justificaria decisões desencontradas entre si e a absoluta discricionariedade judicante, ainda que mitigada pela publicidade processual e pelo dever de motivação das decisões. Neste ponto, ousamos respeitosamente divergir pela carência de tecnicismo argumentativo porquanto, em que pese haver litigantes diversos, jurisdições distintas e circunstâncias fáticas que distingam um de outro feito, há, naqueles de que ora tratamos, pressupostos processuais básicos que poderão fazer tecnicamente idênticos: a causa de pedir, que sintetiza o porquê achar-se o postulante titular de um interesse subordinante, e o fundamento jurídico do pedido, qual seja a norma pela qual se vê amparado.

4. A proposta de retorno da Argüição de Relevância

Luiz Manoel Gomes Junior, em obra publicada na Editora Forense (2001) sob o título “A Argüição de Relevância – A Repercussão Geral das Questões Constitucional e Federal” documenta com farto e seleto repertório jurisprudencial e doutrinário o instituto tratado pelo artigo 119, § 1º, CF/69 – com redação dada pela Emenda Constitucional nº 7/77 (“As causas a que se refere o item III, alíneas a e d, deste artigo serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e RELEVÂNCIA DA QUESTÃO FEDERAL” ).

Com efeito, o instrumento da antiga ordem constitucional tinha o condão de defender o Supremo Tribunal do assédio das questões locais que não tinham relevância para a federação. O ponto questionado é que o definidor do grau de relevância, de conceito absolutamente discricionário, era o próprio tribunal, contra o qual descabia e ainda descabe revisão superior.

O texto proposto na “Reforma do Judiciário”, pela Comissão Especial destinada a proferir parecer à P.E.C. nº 96-A, de 1992, tentou repristinar o instituto ao dar ao proposto novo artigo 105, § 2º, a seguinte redação: “No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões federais discutidas no caso, a de que o Tribunal examine o seu cabimento, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”, todavia a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aboliu o texto e o substituiu por um § 4º com a seguinte redação: “A lei estabelecerá os casos de inadmissibilidade de recurso especial. (AC)”.

5. A proposta das “Súmulas Impeditivas”

Uma idéia equilibrada surge da Associação dos Magistrados Brasileiros que, sob o título de “Súmula Impeditiva”, prestigia o juiz natural e o princípio do duplo grau de jurisdição, assim como a competência e poder originários das Cortes Superiores e, ao mesmo tempo, dá às últimas, um anteparo à lides que fujam de sua atribuição elevada de dirimir questões onde o interesse público, mormente no controle de constitucionalidade e uniformização da jurisprudência no âmbito federativo, sejam a questão de ordem. Cuidamos de reproduzi-la integralmente e sem ressalvas como garantia de autenticidade:

“EMENDA MODIFICATIVA (12)

Dê-se a seguinte redação ao art. 103-A (13), constante do art. 18 da PEC 29/2000:

“Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá aprovar súmula, de ofício ou por provocação, mediante decisão fundamentada de quatro quintos dos membros de seu Plenário, após reiteradas decisões sobre a matéria e declarar que seus enunciados, a partir da publicação, constituir-se-ão em impedimento à interposição de quaisquer recursos contra decisão que a houver aplicado.”

JUSTIFICATIVA

A presente proposta de emenda é mais vantajosa que a aprovada, relativa à súmula vinculante, pelos motivos seguintes.

A proposição substitutiva da denominada súmula vinculante gera mais benefícios processuais e evita recursos, inclusive porque as discussões sobre o seu descumprimento, como constam da PEC 29/2000, podem acarretar o estrangulamento da capacidade de julgamento do Supremo Tribunal Federal, que passará a receber, originariamente, inúmeras reclamações de competência (§ 3o do art. 103-A, já aprovado).

Quanto à súmula impeditiva, ora proposta, ela inibe o recurso já no juízo ou tribunal de origem, sem impedir, doutro lado, que qualquer órgão legalmente autorizado, apresente fundamento para alteração do entendimento antes sumulado, consagrando o controle difuso de constitucionalidade existente no Brasil, desde os primórdios da República.

Por outro lado, as vantagens preconizadas pelo texto aprovado, especialmente nos seus parágrafos 1º e 2o, serão alcançadas com a adoção da proposta ora defendida.

A súmula vinculante representa um retrocesso histórico e uma violência no plano da independência funcional do magistrado. Um retrocesso histórico, porque reaviva a noção de juiz “boca da lei” – do século XVIII – e uma violência funcional porque retira-lhe a liberdade e o transforma em mero canal de comunicação entre o fato e a súmula. A súmula vinculante, outrossim, inibe a participação de advogados e membros do Ministério Público na construção do direito e na realização da justiça. Por último, ela implica justiça por atacado, na medida em que impede a consideração das singularidades do caso concreto pelo magistrado, rompendo com a noção de eqüidade, imanente à função jurisdicional.

Ressalte-se ainda, que a proposta de criação do instituto da chamada SÚMULA VINCULANTE além de diminuir o próprio Poder Judiciário, ocasionando a perda da independência jurídica dos juizes, acaba atingindo em cheio também o PODER LEGISLATIVO, ameaçando o princípio constitucional da harmonia e da independência entre os Poderes da República. Isto porque, quem elabora normas abstratas e universais é o Legislativo, não o Judiciário. Súmula vinculante é, como uma lei, norma abstrata, de espectro geral. O compartilhamento de tal atribuição de normatizar abstratamente a vida social com os tribunais superiores (com a edição, por estes, de súmulas vinculantes), cujos integrantes não são eleitos, significará erosão do poder do Parlamento Nacional, o que significará desequilíbrio entre os Poderes da República. A súmula vinculante terá efeitos superiores aos da lei, na medida em que não há limite para sua aplicação retroativa. Perde o Parlamento e perde o sistema democrático com tal instituto.

Doutro lado, a proposta súmula impeditiva de recursos, ao instante em que gera obstáculos contra o uso indevido de recursos contra decisões reiteradas do Poder Judiciário (jurisprudência pacífica), permite que fundamentos novos sejam apreciados e, verificada a alteração da situação histórica ou fática que ensejou a edição da súmula, seja efetiva revisão pelo Tribunal editor do enunciado, após discussão nas diversas instâncias intermediárias, sem ofensa, enquanto isso, aos postulados da segurança jurídica.”

A questão que nos resta é: não caberá da denegatória de recurso prolatada pelo juízo a quo, nas questões penais, impetração de Habeas Corpus ou, em termos gerais, Reclamação, nos termos dos arts. 102, I, i e l, e 105, I, c e f, da Lei Maior, perpetuando a “ciranda”, já que ambos casos não são formalmente recursos mas ações autônomas, ainda que materialmente tenham contorno de requestionamento pela parte sucumbente.

6. “Novidade Jurídica”: O efeito vinculante já existente

Em 10 de novembro de 1999, com o propósito de disciplinar o processo e julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADECONs) junto ao Supremo Tribunal Federal, é promulgada a Lei nº 9.868.

Três questões controvertidas foram geradas pela novatio legis: a inclusão da Mesa da Câmara Legislativa e do Governador do Distrito Federal como legitimados à propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (art. 2º, IV e V, parte final); a possibilidade de a decisão proferida na ADIN sofrer, pelo voto de dois terços dos Ministros, restrição de efeitos ou decretação de eficácia ex nunc ou, noutro momento a ser fixado, sob o fundamento de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (art. 27); e, por último, o alargamento do efeito vinculante também às decisões nas ADINs (art. 28, parágrafo único).

Quanto à legitimação ativa do Governador e Mesa da Câmara Legislativa do Distrito Federal nas ADINs o fato novo é que eles não foram incluídos no rol dos legitimados no art. 103 da Carta Política. Questiona-se: poderia a norma infraconstitucional ir além da Lei Maior? Diminuir sua extensão, afora no caso de normas de eficácia contida – o que não é o caso – seria inconcebível e eivado de inconstitucionalidade material insanável; já ampliar seu conteúdo material é discutível. No caso, sob a ótica da Teoria Geral do Estado e da Ciência Política, o que fez o legislador ordinário foi corrigir acertadamente uma omissão do constituinte, já que no federalismo adotado e, frise-se, princípio sensível da Constituição, implica que o Distrito Federal ocupe posição equivalente à dos Estados-Membros. Tanto o é que o artigo 1º diz que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal; mais adiante o artigo 18 reserva a este ente federativo autonomia, e o artigo 32, § 1º, atribui ao Distrito Federal as competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios. Sua posição híbrida não lhe afasta do status de Estado, até por este motivo se lhe reservam paritariamente três assentos no Senado (art. 46, § 1º, CRFB).

No ponto que toca à restrição ou protraimento dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse público, a questão gera maiores desconfortos. É cediço que estas decisões sempre tiveram efeito ex tunc, qual seja, aniquilam a norma inconstitucional desde seu nascedouro por uma razoável dedução lógica: respeito à supremacia da Constituição; a grave e inconcebível decretação de efeito ex nunc – a partir da decisão – validando-se, por conseqüência as relações jurídicas anteriores, filhas proscritas de uma norma nula, já seria uma heresia, o que não dizer do fato de, conhecendo e decidindo pela inconstitucionalidade da norma o próprio “Guardião da Constituição”, permitir-se a geração de outras anomalias jurídicas pelo prazo fixado. Numa ótica satírica poderíamos lembrar que ao guarda desidioso o Código Penal Militar, em tempo de paz, o condenaria às penas do art. 196 e, em tempo de guerra à morte por fuzilamento à vista do art. 390.

Ao contrário de se atingir a segurança jurídica se fertiliza a insegurança e, mais que isto, se dá um golpe mortal na idéia de Estado de Direito pela excepcional e espúria flexibilização da ordem jurídica.

No que toca ao alargamento do efeito vinculante aos casos de decisões proferidas nas ADINs, julgando a Reclamação nº 1880-SP no dia 06 de novembro de 2002 o Supremo decidiu:

“( (14))Ao apreciar uma Questão de Ordem na Reclamação 1880, ajuizada pelo município paulista de Turmalina, os ministros do Supremo Tribunal Federal declararam (6/11) constitucional o parágrafo único, do artigo 28, da Lei Nº 9868/99. O dispositivo trata dos efeitos de julgamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade e das Ações Declaratórias de Constitucionalidade perante o STF.

Com a decisão, fica valendo o seguinte: “A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal, estadual e municipal” (parágrafo único do artigo 28).

Na Reclamação, o município de Turmalina afirmou que o presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região desrespeitou a decisão do STF proferida na ADI 1662. No julgamento da ADI, os ministros determinaram o seqüestro de recursos financeiros municipais, para pagamento de Precatórios oriundos de condenações trabalhistas impostas à Fazenda Municipal.

No entanto, o relator do processo, ministro Maurício Corrêa, não conheceu da Reclamação. De acordo com o ministro, o município não tinha legitimidade para ajuizar a ação. O município, inconformado com a decisão, recorreu (Agravo Regimental).

Iniciado o julgamento de uma Questão de Ordem no Agravo Regimental, em 23 de maio deste ano, o ministro Maurício Corrêa propôs que todos as pessoas que forem atingidas por decisões contrárias à decisão final do STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade sejam consideradas como parte legítima para propor Reclamação, conforme dispõe o parágrafo único do artigo 28 da Lei 9.868/99.

O ministro Moreira Alves havia sugerido que se ouvisse o procurador-geral da República, que posteriormente deu parecer pela constitucionalidade do dispositivo.

Hoje a maioria dos ministros (oito) seguiu o relator, abrindo divergência o ministro Ilmar Galvão, seguido pelos ministros Moreira Alves e Marco Aurélio.

O ministro Moreira Alves destacou: “A lei neste ponto é inconstitucional, como é inconstitucional o artigo 27, que vai contra àquilo que é imanente ao nosso sistema, ou seja, que o efeito dessas declarações é desconstitutivo, tendo em vista a circunstância de que nós temos ao lado do controle concentrado, o controle difuso, e não é possível haver um controle com uma eficácia e outro com outra diferente quando eles visam, em última análise, ao mesmo objetivo”.

O ministro Sepúlveda Pertence defendeu: “Quando cabível em tese a Ação Declaratória de Constitucionalidade, a mesma força vinculante haverá de ser atribuída à decisão definitiva da Ação Direta de Inconstitucionalidade”.

Já para o ministro Gilmar Mendes, “o efeito vinculante decorre do particular papel político-institucional desempenhado pela Corte, que deve zelar pela observância estrita da Constituição nos processos especiais concebidos para solver determinadas e específicas controvérsias constitucionais”. Citou, para isso, o entendimento adotado pelo Supremo na ADC 4, ao reconhecer efeito vinculante à decisão proferida em pedidos cautelares, quando o texto constitucional não trata do assunto questionado.

O ministro Marco Aurélio frisou, seguindo a ala divergente: “As decisões do Supremo Tribunal Federal se impõem, não pelo papel, pelo fato de um dispositivo de lei ordinária dizer que essas decisões são obrigatórias, mas pela respeitabilidade, pelo conteúdo dessas mesmas decisões. Devemos fugir de tudo que leve à generalização. A tendência do homem é se acomodar e a evitar o maior esforço”.

Com efeito, põe-se a termo, ao menos por ora, a controvertida constitucionalidade da Lei nº 9869/99 que, ironicamente, disciplina o processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade; assim, o efeito vinculante que brotou em 1993, se firmou em 1999, agora, ao final de 2002, floresce, restando, para o futuro, a coleta de seus frutos. Mais irônico agora seria agora algum aventureiro questionar a constitucionalidade e a eficácia desta decisão da Corte Suprema.

7. Conclusões

Nossa tradição constitucional jamais declinou do controle de constitucionalidade aberto e nem se sugere tal afastamento, porquanto instrumento assaz democrático que pulveriza a qualquer do povo o direito de, in concreto, ser parceiro do Supremo Tribunal na zeladoria da integridade formal e material da Constituição frente aos poderosos de plantão. Entretanto se de um lado, mais que se concede, se impõe ao Magistrado de primeira instância, ex oficio, não se furtar da jurisdição mesmo que, incidentalmente, se postule a inconstitucionalidade da norma em que lastreia o fundamento jurídico do pedido a parte adversa, há que se ter que esse juízo singular o faz incidental e excepcionalmente, já que temas desta jaez devem, originariamente, ser dirimidos por Tribunais de instância extrema, senão pela experiência superior dos decanos Ministros e pela relativização de posturas radicais, próprias de uma visão isolada e de limitada experiência profissional, que somente no debate colegiado se depuram e sedimentam, ao menos pela cega análise de sua precípua competência constitucional.

Toda tese contratualista de justificação do poder do Estado se calca num pacto onde o soberano povo, legítimo detentor do poder, libera este seu poder em prol da paz social, pela homogeneização e equalização das forças, e da expectativa de segurança, inicialmente física e mais adiante jurídica. Destes postulados decorre que não só a lei – abstrata fonte primária do direito – mas sua concretização pela jurisdição equânime, podem conduzir à isonomia material. Eis o porquê de não se admitir que de uma mesma norma, imposta coercitivamente a todos, dentro de um mesmo Estado sob uma mesma Constituição, haja tamanhas disparidades hermenêuticas que rompam o cenário ideológico e acadêmico para interferir direta e concretamente na vida dos cidadãos.

A mesma autoridade que garante, ao natural juiz singular, supremacia diante das partes é, em sua essência material, que deve submeter sua relativa independência judicante ao juízo das instâncias superiores, no limite das competências constitucionais, sem que disto decorra sua automação ou menoscabo. É no respeito à autoridade, delimitada pelas respectivas competências formais e naturais, que se distribui o poder estatal decorrente do pacto social e, se do poder decorre a autoridade, é da perfeita sintonia entre estes que surge a ordem; a ordem jurídica, que tem sua estrutura vertebral na Constituição.

A partir desta análise, de lógica finalística, não encontramos suporte lógico à contestação, senão por vaidade ou outros interesses subalternos, de quaisquer das propostas apontadas neste trabalho. Argüição de Relevância, efeito vinculante das súmulas e súmulas impeditivas, longe de destruir o divino poder jurisdicional são mecanismos que, se bem orientados e passíveis de redirecionamento refletido, poderão golpear a desordem jurídica, afirmar e justificar a autoridade estatal e, por fim, dar à Sua Excelência: o povo, algo próximo da certeza de que as decisões judiciais não são tão imprevisíveis como os satíricos rifões apregoam.

8.Notas

1. Art. 5º, XXXV, CRFB

2. Art. 103, I-IX, CRFB

3. Passou de Supremo Tribunal Federal para a designação de Corte Suprema (art. 73)

4. “Art. 78, parágrafo único. Caberá recurso para a Corte Suprema, sempre que tenha sido controvertida matéria constitucional e, ainda, nos casos de denegação de habeas corpus.”

5. O anteprojeto denominava “Supremo Tribunal”, não Corte Suprema como definiu o texto da Constituição.

6. Trata-se de recurso do próprio juiz ou tribunal, ao Supremo, em relação à sua própria decisão.

7. A Constituição de 1937 é associada à Constituição Polonesa de 23.04.1935 pelo fortalecimento conferido ao Poder Executivo e por haver sido outorgada por Getúlio Vargas. Ainda, porquanto questionada a legitimidade do Poder Constituinte pois não fora submetida ao Plebiscito determinado pelo seu artigo 187.

8. Art. 104, CRFB.

9. Art. 102, III, a, b e c, CRFB.

10. Art. 105, III, a, b e c, CRFB.

11. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência Jurisprudencial e Súmula Vinculante. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p.18-19, 65.

12. Texto extraído do site da Associação dos Magistrados Brasileiros – http://www.amb.com.br

13. Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual, distrital e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. (AC)

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. (AC)

§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. (AC)

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação, suspensiva do ato ou da decisão judicial, ao Supremo Tribunal Federal, que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (AC)

14. Reclamação (Agravo Regimental-QO) 1.880-SP, Rel. Min. Maurício Corrêa, 6.11.2002. (RCL-1880)

* Azor Lopes da Silva Júnior
Capitão da Polícia Militar de São Paulo, professor de Direito do Centro Universitário de Rio Preto (UNIRP), pós-graduado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), multiplicador de Direitos Humanos habilitado pela Anistia Internacional

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