A finalidade primordial do Estado é assegurar a paz social. Para o cumprimento dessa função de nortear a vida em sociedade, é preciso estabelecer uma ordem. A estrutura organizacional tem origem na Constituição, que dita pautas de conduta, regras jurídicas a serem espontaneamente respeitadas por todos.
Em havendo o descumprimento das leis, como veda a justiça de mão própria, surge o dever do Estado de recompor a harmonia social. O Estado detém a exclusividade do monopólio da aplicação do Direito. Ainda que em escassas hipóteses a lei delegue ao cidadão o direito de proteger-se, não é autorizada a autotutela ou quaisquer outras atividades substitutivas divorciadas do aparato estatal.
Ao Estado compete a jurisdição – juris dictio -, compete-lhe dizer o direito por intermédio do Poder Judiciário. Frente a uma relação jurídica que disponha de referendo legal, em não havendo o espontâneo adimplemento por parte do obrigado, o titular do direito busca que o juiz reconheça o seu direito e aja contra o devedor, fazendo justiça e recompondo a paz social.
Portanto, fazer a justiça é operar o direito, impor coactamente o cumprimento da lei que ninguém pode alegar desconhecer nem eximir-se do dever de obedecer.
Há uma infinidade de tentativas de definir o que seja a justiça. Como é um conceito muito idealizado que permanece indefinido, em determinada maneira é inatingível, face ao ideologismo que o cerca, pois cada um possui uma idéia própria sobre o que significa “dar a cada um o que é seu”.
No âmbito do Direito de Família, o conceito de justiça apresenta nuances de outra ordem.
Um exemplo é paradigmático. Ainda que preveja a lei direitos e imponha deveres aos cônjuges, a serem cumpridos durante a vigência da sociedade conjugal – e agora dentro da própria união estável -, o adimplemento de tais deveres não é buscado na Justiça. Somente quando o vínculo afetivo se desfaz é que partícipes batem às portas dos tribunais. A busca, porém, não é o reconhecimento da existência de direitos que foram violados nem o cumprimento coacto dos deveres não adimplidos durante o período da vida em comum.
As denúncias e queixas não visam à recomposição da entidade familiar. A postura é nitidamente vingativa, quem se sente lesado pelas omissões do outro busca uma compensação. A própria disputa pela guarda dos filhos, aliás, muitas vezes é usada como objeto de vingança. O processo de separação, que deveria servir tão-só para solver as questões econômicas subjacentes ao fim da união, transforma-se em um palco de retaliações e queixas.
Para entender essa dinâmica, cabe lembrar que uma pessoa não se relaciona com outra, mas com um objeto que corresponde ao seu desejo idealizado de completude. O ser amado tem sempre a estrutura de um objeto ideal, perfeito, e nele são depositados todos os sonhos e fantasias. Assim, a perda desse objeto, que ocorre quando do fim do vínculo afetivo, vem encharcada de frustrações e decepções. Toda separação traz um sentimento de desamparo, a perda do par, da pessoa em quem se depositou todos os projetos de felicidade “até que a morte os separe”. Por isso, cada parte procura provar a sua verdade, atribuindo ao outro a culpa pela perda do objeto amoroso, pelo fim do sonho do amor sem fim. Busca cada um sua absolvição, pois quer que o juiz proclame ser ele inocente e que reconheça a responsabilidade do outro pelo fim da relação e se lhe imponha uma pena. Daí o grande interesse na identificação de um culpado.
Há outro lado, igualmente dolorido e doloroso. As demandas que envolvem os vínculos afetivos invadem a privacidade individual do par. As pessoas desnudam-se, tornam públicas as experiências íntimas do casal. Acabam sendo revelados os pactos conjugais que mantinham a estrutura do relacionamento. Nessas ações não são trazidos aos operadores do Direito fatos concretos, pois estes chegam encharcados de subjetividade. Nem sempre a realidade acaba transparecendo, pois vem plena de emotividade. As partes apresentam versões, não verdades, e os juízes acabam julgando não um real conflito de interesses – uma lide, no conceito de Carnelutti -, em que identifica o direito de um e o dever de outro.
Os que participam do conflito não são só partes opostas, em posições contrapostas, são pessoas que pertencem a sexos opostos, oposição essa que não decorre somente de diferenças anatômicas. Uma arraigada estrutura cultural e social faz homens e mulheres habitarem mundos diversos. Ele é o provedor, transita na esfera pública, enquanto a reprodutora vive na esfera privada. Um é sujeito ativo e o outro, passivo, e a tendência é haver um dominador e um dominado. Para lembrar Freud, um é fálico e outro, castrado. Na própria representação da relação sexual, coloca-se o homem sobre a mulher, é ele que a penetra. A ele é reservado o gozo, restando à mulher a passividade de receber um pênis em sua vagina e a conseqüente função reprodutora. Necessário, porém, visualizar a perfeita complementaridade que ocorre no ato sexual, momento em que desaparecem as diferenças entre ambos. Os dois unidos atingem a completude, transformam-se em um ser. Quando deixa de haver essa unidade, ninguém consegue deixar de reagir ao fim do vínculo afetivo. E nesse momento em que acaba a família é que se invoca o Direito de Família.
Todos esses fatos ocorrem no campo psíquico. E, se Psicanálise é a análise do psiquismo, os operadores que trabalham com esse ramo do Direito – sejam advogados, promotores ou magistrados – não podem deixar de analisar esses conflitos atentos a um fato: são os restos do amor que são levados ao Judiciário, parafraseando Rodrigo da Cunha Pereira.
As partes, no fundo, ainda que de forma inconsciente, buscam, nos lidadores do Direito de Família, que eles, por meio de uma forma mágica, solvam os conflitos, remendem e refaçam o vínculo conjugal, enfim, restabeleçam o elo de afetividade rompido.
Por isso, o Direito não pode se divorciar da Psicanálise. Quando ocorre a busca da justiça, cabe a todos que se envolvem na solução de tais demandas tentar visualizar toda essa realidade que subjaz ao conflito trazido a acertamento. Assim, é necessária uma maior sensibilidade para lidar com as nevrálgicas questões que atingem a própria estrutura do ser humano, pois dizem diretamente com os seus sentimentos.
Indispensável que todos que trabalham com o Direito de Família, considerado o mais humano de todos os direitos, não busquem somente as regras jurídicas que serão aplicadas. São muito mais os regramentos comportamentais que auxiliam na hora de solver não só as seqüelas econômicas do fim do relacionamento, mas também suas conseqüências – em regra muito mais significativas -, que são os conflitos da alma.
* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família