Um olhar no tempo
Sob a égide de uma sociedade fortemente conservadora e influenciada pela Igreja, justificava-se a concepção do casamento como indissolúvel, tal como o considerou o Código Civil em 1916. A evolução dos costumes levou a uma verdadeira revolução do próprio conceito de família, mas ainda assim forte foi a resistência de alguns segmentos quando da instituição do divórcio no Brasil, por meio da Emenda Constitucional nº 9, de 28 de junho de 1977.
Para viabilizar a aprovação da lei regulamentadora do divórcio (Lei nº 6.515, de 26/12/1977), alguns abrandamentos precisaram ser instituídos e restrições acabaram por ser impostas. Assim, a Lei, em sua versão primeira, autorizou o pedido de divórcio por uma única vez (art. 38) – o que agora soa como um verdadeiro absurdo –, e em somente uma hipótese era possível o chamado “divórcio direto”, e isso em caráter emergencial, tanto que previsto nas disposições finais e transitórias da Lei.
O art. 40 possuía a seguinte redação: No caso de separação de fato com início anterior a 28 de junho de 1977, e desde que completados 5 (cinco) anos, poderá ser promovida ação de divórcio, na qual se deverão provar o decurso do prazo da separação e sua causa. Sua concessão, portanto, estava condicionada ao atendimento cumulativo de três pressupostos: (a) estarem as partes separadas de fato há cinco anos; (b) que esse prazo estivesse implementado antes da data da alteração constitucional, ou seja, antes de 28 de junho de 1977; e (c) a comprovação da causa da separação.
Nítida se revelava a intenção do legislador em autorizar o divórcio somente para atender à especial circunstância de quem já se encontrava separado de fato há mais de cinco anos quando da constitucionalização do instituto. Assim, hipoteticamente, quando todos os que, tendo preenchido esses requisitos, houvessem se divorciado, desapareceria a possibilidade da concessão do divórcio de forma direta. Exauridas tais ações, somente após prévia separação judicial é que seria possível obter o divórcio, mas exclusivamente por meio do procedimento de conversão.
Foi a jurisprudência que emprestou uma interpretação mais extensiva ao indigitado dispositivo legal. Reconheceu como possível a decretação do divórcio quando a separação de fato houvesse ocorrido antes de 28/6/77, mesmo que o prazo legal se implementasse posteriormente. Ou seja, ao par separado antes da data da vigência da Emenda Constitucional, decorridos cinco anos, passou-se a autorizar o divórcio direto.
Quando a sociedade se convenceu de que o divórcio não destruiu a instituição da família nem acabou com o casamento, mais uma vez o vanguardismo de algumas decisões judiciais levou à reformulação da lei. No momento em que se tornou possível a sua obtenção mediante a só comprovação da ruptura da vida em comum por dois anos consecutivos, institucionalizou-se o divórcio direto. Além de haver perdido a característica de modalidade temporária de dissolução da sociedade conjugal, também restou dispensada a dupla via procedimental para sua obtenção. Superado o obstáculo que o condicionava a um termo inicial em data determinada, consolidou-se o divórcio como instituto autônomo, afastando a necessidade de prévia separação judicial como requisito para ser deferido somente por meio da conversão.
Portanto, profunda foi a transformação operada pela Lei nº 7.841/89, ao dar nova redação ao artigo 40 da Lei do Divórcio. Além de subtrair o caráter de transitoriedade do divórcio direto, afastou a necessidade de identificação da causa para a sua concessão, ao revogar o parágrafo primeiro do indigitado artigo, que fazia expressa remissão aos dispositivos legais regradores da separação: acordo de vontades ou imputação ao réu de culpa ou doença mental (arts. 4º e 5º e seus parágrafos).
A perenização do desquite
O casamento era indissolúvel segundo o Código Civil. Só a morte de um dos cônjuges o dissolvia (parágrafo único do art. 315), mas a sociedade conjugal podia “terminar” pelo desquite (CC, art. 315, III).
A lei regulamentadora da reforma constitucional, que acolheu a possibilidade do divórcio, no entanto, não se limitou a cumprir sua função, já que deveria tão-só regulamentar as modalidades e formas para a concessão do divórcio. Não fosse a resistência a sua aprovação, suficiente seria mera normatização de natureza processual. Quiçá algumas regras sobre alimentos e proteção aos filhos, se tanto. Porém, a Lei nº 6.515/77 acabou por manter o desquite, limitando-se a proceder a uma mera substituição de palavras. O que anteriormente era nominado de desquite passou a ser chamado de separação judicial, com idênticas características, ambos “terminam” com a sociedade conjugal: põem termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens, como se o casamento fosse dissolvido (art. 3º da LD). Ou seja, “solve” o casamento, mas não o “dissolve”, atributo de que só a morte e o divórcio dispõem (parágrafo único do art. 2º da LD).
Assim, a Lei do Divórcio nada mais faz do que exaustivamente regulamentar a separação (arts. 3º a 24, 34, 39 e 41 a 49). A conversão da separação em divórcio está disciplinada nos arts. 35 a 37, sendo que, do divórcio, tratam só os arts. 38 (ao restringir o pedido a uma única vez) e 40 (entre as disposições transitórias).
A separação dita consensual
Quando a separação decorre do mútuo acordo de vontades, a única exigência é estarem os cônjuges casados há mais de dois anos (art. 4º da LD). Há quem sustente, com acerto, que esse prazo deve ser reduzido pela metade. O fundamento é dos mais lógicos: a partir do momento em que a lei viabilizou a separação judicial litigiosa, mediante a comprovação da separação por tempo superior a um ano, idêntico requisito deve bastar para que se defira a separação na modalidade consensual, sob pena de consagrar-se interpretação atentatória aos princípios maiores do direito[1].
Assim, após o prazo de um ano da vigência do casamento, sem necessidade de apontar qualquer motivação, o par pode consensualmente buscar a separação. No entanto, se antes desse prazo acabar o vínculo afetivo, embora não mais convivam os cônjuges sob o mesmo teto, o Estado, de forma aleatória e arbitrária, impõe a mantença de tal status, sem que se possa identificar o motivo dessa negativa ante um fato já consumado. Trata-se de verdadeira imposição de um “estágio probatório”, durante o qual o desejo dos cônjuges não possui o mínimo significado. Antes do decurso desse interstício, mesmo que não mais queiram os cônjuges a mantença do casamento, resiste o Estado em chancelar a vontade das partes, o que, na ausência de melhor justificativa, parece se tratar de imposição de um “prazo de purgação”. Quem sabe melhor identificar esse interregno como um verdadeiro purgatório?
De qualquer sorte, nítido o caráter punitivo de tal restrição. Será a determinação de um período de reflexão? Ou não se admite que o amor possa ter acabado antes desse prazo? Afinal, qual a legitimidade do Estado em se opor à vontade de pessoas maiores, capazes e no pleno exercício de seus direitos? Dizer que é para preservar os sagrados laços do matrimônio? Mas o casamento não mais existe! Se livremente casaram, por que não dispõem da mesma liberdade para pôr fim ao casamento? Portanto, no que a lei chama de separação consensual, o “consenso” não é respeitado nem é tão livre assim a vontade das partes.
Para contornar essa injustificável vedação legal e abreviar o decreto de separação, antes do decurso de um ano, acabam os cônjuges protagonizando uma verdadeira farsa. Simulam uma separação litigiosa. Um dos cônjuges se diz inocente e imputa ao réu uma causa de ruptura do vínculo, buscando o decreto da separação. Ao pedido não se opõe o demandado, que acaba se confessando culpado, o que dispensa a necessidade de probação. Ainda que não haja a dispensa da instrução, por óbvio que não é difícil trazer testemunhas que roborem o afirmado na inicial.
Mas simular litigiosidade tão-só para obter a separação revela-se uma postura desleal. Outra modalidade indevida de contornar os ditames da lei, de largo uso, é a busca consensual da separação de corpos, pedido que não dispõe de qualquer referendo na lei. Como inexiste pretensão resistida, trata-se de procedimento de jurisdição voluntária, não guardando qualquer identidade com a medida provisional de afastamento de um dos cônjuges da morada do casal, prevista no inciso VI do art. 888 do CPC. Acaba o Poder Judiciário servindo somente para fins certificatórios do término da vida em comum.
A separação litigiosa
O artigo 5º da Lei do Divórcio prevê as hipóteses da separação chamada litigiosa, ou seja, quando a iniciativa da ação é de apenas um dos cônjuges.
A Lei nº 8.408/92, ao dar nova redação ao § 1º do art. 5º, autoriza o pedido de separação mediante a prova da ruptura da vida em comum há mais de um ano. Nessa hipótese, basta um único pressuposto de ordem objetiva: o adimplemento do prazo temporal, sem necessidade de apontar a causa ou identificar o responsável pelo término da relação. Ou seja, depois de um ano de separação, o Estado deixa de se preocupar com os motivos do fim do casamento e se desinteressa em punir o culpado.
Quando a intenção de buscar a desconstituição do casamento antecede tal prazo, imperioso que o autor impute ao réu a responsabilidade pelo fim do relacionamento. Nessa hipótese, para ser buscada a separação, a causa de pedir é complexa: além de imputar ao réu conduta desonrosa ou violação dos deveres do casamento, também deve o autor demonstrar que tais posturas tornaram insuportável a vida em comum. Portanto, duplo é o requisito para a sua concessão, um imputável ao réu – atitude indigna – e outro de ordem subjetiva, ou seja, que tal comportamento tenha tornado insuportável a mantença da vida a dois. Talvez o mais paradoxal seja que, não provada a “culpa”, a ação é julgada improcedente, criando uma situação insustentável: a Justiça mantém casados aqueles que se digladiaram durante a tramitação de uma demanda em que foram desvendadas mágoas e ressentimentos, o que, ao certo, aumentou muito mais o estado de beligerância do casal. Felizmente a perquirição da causa da separação vem perdendo prestígio e a jurisprudência tem dispensado sua comprovação, seja porque difícil atribuir a um só dos cônjuges a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, seja porque indevido é obrigar a um cônjuge que revele a intimidade do outro, imposição que fere inclusive o sagrado direito de respeito à dignidade da pessoa humana erigido como princípio fundamental pela Constituição Federal. Foge ao âmbito de atuação do Estado impor a violação ao direto à privacidade e à intimidade, com a única finalidade de o juiz, de forma estéril e desnecessária, atribuir a pecha de culpado ao réu. Razão assiste a Luiz Edson Fachin, quando afirma que não tem sentido averiguar a culpa com motivação de ordem íntima, psíquica, concluindo que a conduta pode ser apenas sintoma do fim.[2]
Diferenças e desvantagens
Talvez a maior diferença que se possa vislumbrar entre a separação e o divórcio é que, para se obter a separação, basta a ruptura da vida em comum por um ano (§ 1º do art. 4º), enquanto para a concessão do divórcio, quer de forma consensual, quer por iniciativa de somente um dos cônjuges, necessário que a ruptura da vida em comum tenha “completado” dois anos consecutivos (art. 40).
Imperioso reconhecer como injustificáveis as contradições da lei. Quando a separação decorre do mútuo acordo de vontades, a única exigência (art. 4º) é estarem os cônjuges casados há mais de dois anos, lapso temporal que vem sendo reduzido à metade, por orientação doutrinária, como já referido. De qualquer forma, não há a necessidade de apontar qualquer motivação nem o implemento de qualquer prazo de dimensão prática para a consensual busca do término da relação. No entanto, para alcançarem o divórcio, ainda que de forma consensual, mister estarem os cônjuges separados de fato há dois anos.
Quando apenas um quiser a separação, somente tem legitimidade para a ação o “inocente”, sendo imprescindível a comprovação da culpa do réu pelo desenlace do relacionamento. Portanto, o cônjuge “responsável” pela separação não pode pedir a chancela oficial pelo fim do vínculo afetivo. Mais. Quando inexistir alguma causa que permita identificar um infrator pelo fim do casamento, nenhum dos cônjuges pode pedir a separação, sendo imperiosa a espera do escoamento de um ano da ruptura da vida em comum para buscar a separação, que passou a se chamar “remédio”.
Também aqui se flagra uma certa incongruência do legislador. Depois de um ano do rompimento da vida conjugal, torna-se despicienda a invocação de alguma causa, e qualquer dos cônjuges, tanto o “culpado” como o “inocente”, pode buscar a separação, independente da identificação do responsável. Mas para isso é preciso esperar que decorra o período de um ano, como se o tempo tivesse o condão de gerar inimputabilidades. Fazendo-se uma espécie de analogia com o Direito Penal, pode-se dizer que ocorre a “prescrição” do crime, e o “delinqüente” – isto é, aquele que praticou o delito – está reabilitado, podendo, então, livrar-se do casamento.
Não se pode deixar de consignar ser no mínimo estranho que, em se tratando de separação, a culpa seja elemento indispensável para sua concessão, se não implementado o prazo de um ano de ruptura da vida em comum, enquanto que, no divórcio, quer direto, quer por conversão, o elemento culpa é absolutamente estranho, havendo expressa vedação a qualquer referência aos motivos que ensejam seu decreto (arts. 25, parágrafo único, e 40 da LD).
Um estágio fugaz
Depois de uma demanda litigiosa, normalmente demorada e desgastante, em face da imprescindível identificação de um culpado, a vitória é pífia, ainda que sejam impostas severas sanções a quem deu causa ao fim do relacionamento. A perda do direito a alimentos a quem não tem condições de prover o próprio sustento pode levar à morte por inanição. Em sendo a mulher a culpada, é-lhe imposta também a pena de perda de um de seus atributos da personalidade, pois é subtraída a identidade que adquiriu ao adotar o nome do marido. Não se pode olvidar que o nome é um bem jurídico que tutela a intimidade, atributo ínsito da personalidade humana.[3] Indevida a interferência na identidade da pessoa, impondo penalidade sem que haja qualquer motivo que a justifique, o que revela clara afronta ao princípio do respeito à dignidade humana. Tão draconiano é o imperativo constante do parágrafo único do art. 25 da LD, que, mesmo quando os cônjuges, de forma expressa, concordam com a inalterabilidade do nome, a perda é decretada contra a vontade das partes. Essa imposição legal, no entanto, não vem sendo acatada pela jurisprudência.
A indispensabilidade da comprovação da culpa para a obtenção da separação, no entanto, perde completamente o sentido quando da sua conversão em divórcio, pois é vedado que conste da sentença a causa que o determinou (art. 25). Ou seja, a “pecha” da culpa dura, no máximo, um ano, já que o prazo para a conversão corre, não a partir da data da sentença que imputou a culpa ao réu, mas de simples decisão judicial que faça presumir a separação dos cônjuges (art. 44).
Há mais um motivo para que se subtraia qualquer justificativa à manutenção da separação litigiosa. Normalmente, como a demanda exige dilação probatória, sua tramitação se estende no tempo, e dificilmente o processo chega à fase da sentença ou o recurso ao tribunal antes do prazo de um ano da propositura da ação. Atentando-se no art. 462 do CPC – o qual determina que o juiz considere os fatos supervenientes que possam alterar o resultado da ação –, implementado o prazo legal durante a tramitação da ação ou do recurso, imperativo que seja decretada a separação tão-só pelo fundamento temporal, imposição essa que se estende a qualquer dos graus de jurisdição.
Uma duplicidade inócua
Diante de todos esses questionamentos, uma evidência se impõe. A partir do momento em que a lei assegurou a possibilidade do divórcio direto, mediante o só implemento do prazo de dois anos do término da relação, perdeu utilidade a mantença do instituto da separação judicial. Inclusive, cabe questionar a vantagem de alguém se socorrer do pedido de separação, pelo decurso do prazo de um ano da separação de fato, quando o transcurso de dois anos autoriza a decretação do divórcio direto. É que, decorrido o prazo de um ano da separação, necessitam as partes retornarem a juízo para a sua conversão em divórcio, duplicidade procedimental que, além de inócua, é desgastante e onerosa. Certamente acaba por ser mais demorado obter o rompimento do casamento se forem usados os dois expedientes legais em vez de se buscar diretamente o divórcio, ainda que seja necessária a espera de dois anos para sua propositura.
A prova do prazo
Como a lei impõe o prazo de separação de fato por dois anos para a obtenção do divórcio, além da necessidade da implementação desse prazo, vem sendo questionada a forma de comprovação desse interstício. No divórcio consensual, a exigência constante do inc. III do art. 40 – que determina a coleta da prova testemunhal na audiência de ratificação – está sendo paulatinamente dispensada. Aceitam-se simples declarações de terceiros, trazidas pelas partes, dispensando-se o que antes se tinha por indispensável: a ouvida das testemunhas em juízo.
Não precisou muito para se flagrar que passou o Judiciário a ser palco de uma encenação. Pretendendo os cônjuges pôr fim ao casamento, passaram a não mais fazer uso da via da separação. Para alcançar divórcio, independente do tempo de cessação da vida em comum, o par se mune de singelas declarações – firmadas geralmente por amigos – que afirmam estar o casal separado há dois anos.
Ora, se de há muito já vem sendo dispensada a oitiva em audiência dos firmatários das indigitadas declarações, sequer se justifica a necessidade de apresentação de tais “documentos”. Dizer as partes que estão separadas não basta? Por que emprestar maior credibilidade à manifestação escrita de duas pessoas para se aceitar a assertiva dos cônjuges como verdadeira?
A audiência de ratificação
Igualmente, não se justifica a obrigatória realização de audiência de ratificação, conforme determina o inc. III do art. 40 da lei, quando o divórcio é buscado consensualmente. Deve bastar a afirmativa constante na petição inicial de que o casamento faliu, e livre é a intenção das partes de se divorciarem. Cabe questionar o porquê da imposição a pessoas maiores, capazes e no amplo gozo de seus direitos civis de ratificarem, na presença do juiz, a manifestação livre da vontade já externada.[4] Ao depois, a audiência de ratificação também acabou se tornando um ato meramente formal, muitas vezes limitando-se as partes a firmarem um termo impresso no balcão dos cartórios.
De outro lado, para que tentará o juiz reconciliar as partes que já não mais vivem juntas, não querem mais ficar casadas? Procuraram um advogado e intentaram uma ação buscando simplesmente a chancela judicial – que até dispensável seria – para desfazer um vínculo que foi formado espontaneamente, sem interferência judicial, e perante um serventuário da justiça.
Também é de atentar-se em que, na conversão da separação em divórcio, quer por mútuo acordo, quer por ausência de contestação, o juiz conhecerá diretamente do pedido sem a ouvida das partes (art. 37 da LD). Além disso, mesmo quando a partilha de bens é relegada a momento posterior ao decreto da separação ou do divórcio, não há necessidade da audiência para saber se a partilha proposta corresponde à vontade livre das partes.
A impossibilidade de transformar a união estável em casamento
Outro ponto merece atenção ao se questionar sobre a mantença desta figura híbrida da separação. É que, decretada a separação judicial, resta afastada a possibilidade de se atender ao “aparente” interesse do Estado de que as pessoas se vinculem pelo casamento. Explico: como as pessoas separadas não podem casar, passam a viver em união estável. Mas a condição de separado de um dos conviventes impede que cumpra o Estado o compromisso – diga-se, o mais inútil de todas as inutilidades [5] – de facilitar sua conversão em casamento. Portanto, estando um dos conviventes impedido de casar – separado de fato ou judicialmente –, tal veda a transformação da união estável em casamento. Ora, se o aparato estatal assumiu o encargo de facilitar aos unidos de fato a formalização de sua união, nada justifica que se mantenha um instituto que, mesmo levando ao fim do casamento, impede a constituição de nova relação formal.
Um questionamento que se impõe
Ao atentar-se em todos esses pontos, verifica-se a total inversão que os regramentos procedimentais acabaram impondo. Para formar uma família, que é a base da sociedade e merece a especial proteção do Estado (art. 226 do CF), entidade responsável por garantir, com absoluta prioridade, todos os direitos assegurados à criança e ao adolescente (art. 227 da CF), é suficiente um mero procedimento de habilitação. Depois, basta dizer “sim” perante o chamado “Juiz de Paz” – que sequer servidor público é –, sendo a solenidade chancelada por um oficial cartorário.
No entanto, para desfazer esse vínculo, necessário o uso do aparato do Poder Judiciário, que impõe a implementação de prazos, a identificação de culpas e se arvora o direito de aplicar sanções. Por quê? Tal tratamento afronta o direito à liberdade. Cada vez mais se está questionando a legitimidade de o Estado imiscuir-se na vida do cidadão, até pelo alargamento de seus direitos e garantias fundamentais, que têm como cânone maior a dignidade da pessoa humana, princípio consagrado de forma destacada na Carta Constitucional.
Lapidar a lição de Rodrigo da Cunha Pereira: é preciso demarcar o limite de intervenção do Direito na organização familiar para que as normas estabelecidas por ele não interfiram em prejuízo da liberdade do ‘ser’ sujeito”.[6]
Será que o Poder Judiciário pode se negar a chancelar a vontade das partes que manifestam de forma livre o desejo de romper o vínculo do matrimônio? Que interesse maior se estaria, in casu, tentando proteger? Se para a realização do casamento basta a expressão livre da vontade dos nubentes, para sua extinção despiciendo exigir mais do que a assertiva do casal de que o casamento ruiu e que eles não mais querem seguir unidos pelos laços do casamento.
Talvez, de forma singela, se devesse transpor para o campo do Direito de Família a norma insculpida no art. 1.093 do CC, que diz: O distrato faz-se pela mesma forma que o contrato. O pedido de divórcio, ao menos quando consensual, poderia ser formulado mediante mero requerimento ao Cartório do Registro Civil em que ocorreu o casamento, solução que, com certeza, melhor atenderia ao atual momento que vive a sociedade.
A solução: divórcio mediante singela manifestação de vontade
Não há como não reconhecer que é chegada a hora de se expungir do sistema jurídico a separação, ou simplesmente olvidá-la, quiçá deixando o instituto cair no desuso. Importante que se conceda o divórcio pela simples manifestação de vontade dos cônjuges, independente do lapso de vigência do casamento, ou do implemento de prazo da separação. Não há mais como exigir a identificação de qualquer motivo para que o Estado chancele o fim do casamento.
Com certeza é a jurisprudência que deve dar mais este passo. Como sempre vem ocorrendo, são os juízes, que trabalham mais rente ao fato social, que acabam por mostrar o norte e levar o legislador a chancelar, por meio da lei, o que a Justiça já reconheceu como a solução mais acertada e coerente com a realidade.
[1] SANTOS, Luiz Felipe Brasil, A separação consensual e o prazo para obtê-la. In: Revista do Instituto dos Advogados do RS – COAD, ed. especial, out./nov., p. (79).
[2] FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 179.
[3] ALMEIDA, Silmara Juny de Chinelato e. Do nome da mulher casada. São Paulo: Forense Universitária. 2001, p. 66.
[4] Nesse sentido já tive oportunidade de me manifestar no Agravo de Instrumento nº 70002300192, julgado em 28/3/01, invocando antecedentes desta Corte: evidenciado o término do vínculo afetivo entre as partes, não se pode a Justiça apegar à literal dicção de dispositivo legal, que exige a presença da parte na audiência, para não chancelar o que de fato já se concretizou, ou seja, o fim do casamento. Inquestionada a vontade no sentido da decretação do divórcio, a ausência pessoal não deve obstaculizar o decreto do divórcio…”O Direito, dinâmico, deve e precisa modernizar-se de acordo com as transformações da sociedade, libertando-se de regras e exigências por vezes excessivas e desnecessárias”.
[5] Conforme Giselda Maria F. Novaes Hironaka, Família e casamento em evolução. In Direito Civil: Estudos. Belo Horizonte:Del Rey, 2000, p. 27.
[6] Direito de família: uma abordagem psicanalítica, Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 2.
* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família