* Palestra proferida na II Conferência Internacional de Direitos Humanos, organizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em Teresina – PI, em 11 de outubro de 2003.
Significativa a mudança por que passou a sociedade brasileira.
No limiar do século passado, era tão acentuada a preservação da família, que se reconhecia como tal as uniões ungidas pelo casamento, instituição indissolúvel que tinha fins patrimoniais e como condição a capacidade reprodutiva, possuindo um perfil patriarcal, hierarquizado e heterossexual.
Evitavam-se, a qualquer preço, interferências que comprometessem sua estrutura, o que levou à consagração legal de uma das maiores atrocidades cometidas contra crianças.
Simplesmente não era permitido o reconhecimento dos filhos havidos fora dos sagrados laços do matrimônio. Eram chamados de espúrios os filhos incestuosos e os ilegítimos. O critério de identificação da legitimidade do filho decorria tão-só da condição do pai, ou seja, do fato de o filho ter nascido dentro ou fora de uma relação matrimonial. Ainda que ilegítimo não fosse o filho, mas a atitude do pai, por ter tido um relacionamento extramatrimonial, o único prejudicado era o filho. O homem que assim agia saía beneficiado, pois não lhe era atribuída qualquer responsabilidade ou obrigação com referência ao fruto de sua “aventura amorosa”.
O filho só podia ser reconhecido depois de haver cessado o vínculo de casamento de seu genitor e, enquanto isso, ele era somente “filho da mãe”, expressão que adquiriu conotação pejorativa.
Com a evolução dos costumes, relativizou-se o conceito unívoco da família. Quer pelas lutas feministas emancipatórias, quer pelo surgimento dos métodos contraceptivos e pelo advento do divórcio, deixou-se de reconhecer como família exclusivamente a relação decorrente do casamento. Mudou o enfoque, sua própria conceituação, o que se refletiu nas relações de parentesco. Essa mudança de paradigma acabou por emprestar também maior importância às crianças e adolescentes.
No momento em que visualizou a Constituição Federal o afeto como elemento constitutivo de direitos, deixou a família de ter um significado singular. Pluralizou-se, enlaçando o conceito de entidade familiar tanto as uniões estáveis como as famílias monoparentais e as uniões formadas por pessoas do mesmo sexo, que passaram a ser chamadas de uniões homoafetivas.
Há que reconhecer que a Carta Constitucional de 1988 foi o grande marco para o reconhecimento dos direitos humanos das crianças, pois introduziu a Doutrina da Proteção Integral no sistema jurídico pátrio.
Por seu turno, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 1990), que veio regular os direitos assegurados pelo constituinte, é todo voltado ao melhor interesse da criança.
Com a revolução na engenharia genética e o surgimento dos modernos métodos contraceptivos, o sonho da filiação ficou ao alcance de todos. Não mais se precisa ter um par para se ter um filho. Assim, solteiros, pessoas com impossibilidade de procriar, casais homossexuais passaram a ver a possibilidade de serem pais.
Essa nova realidade vem aportando na Justiça, que precisou atentar na superação da supremacia da consangüinidade, e o interesse da criança ganhou uma dimensão maior, ela se tornou sujeito de direito. A identificação das relações familiares passou a nortear a definição dos vínculos de parentalidade em um aspecto ético.
Mais uma vez venceu o afeto, ou seja, a identificação do elo de afetividade, a posse de estado de filho é que veio indicar quem é o pai, quem é a mãe. Não mais prevalece a verdade biológica, mas a verdade social, psíquica.
Se o ninho é o espaço de realização e de segurança do ser humano, é na convivência familiar que se consolida sua formação, e esse núcleo há de ser preservado e mantido.
O reconhecimento da necessidade da convivência familiar torna imperioso atentar nas inúmeras crianças que esperam ansiosamente em instituições – verdadeiros depósitos de crianças – alguém que lhes queira, um lar que as abrigue, alguém para chamar de pai ou de mãe.
Dentro dessa nova perspectiva, faz-se necessário revitalizar o instituto da adoção. Mas para isso urge agilizar o seu processamento pois a injustificável demora subtrai a possibilidade de crianças maiores serem adotadas..
Mister desmistificar as adoções internacionais, como se se estivesse fazendo tráfego de crianças, ou pior, venda de seus órgãos.
Talvez, o mais importante seja dessacralizar o mito da maternidade, para que a adoção deixe de ser vista como uma forma de encobrir um “defeito”, uma “falha”, ou seja, a impossibilidade de ter filho. Por isso é que todos procuram adotar alguém que seja a sua imagem e semelhança. Tem que ter a mesma cor de pele, de olhos, de cabelos, as mesmas características físicas, para que ninguém saiba que ele não é seu filho, que os pais não atenderam ao dogma: crescei e multiplicai-vos.
Imperioso também que se aceite, sem discriminação, sem preconceito a possibilidade de casais de gays e lésbicas adotarem crianças, sejam filhos de um deles, sejam filhos de outros, sejam filhos concebidos por vontade de ambos pelas modernas técnicas disponíveis.
Quando todas as crianças tiverem um lar, um lar que não precisa copiar o modelo da sagrada família, quando a sociedade aprender a conviver com as diferenças, com certeza esse é um belo caminho para dar carinho, assegurar proteção e garantir a paz às crianças do mundo.
* Maria Berenice Dias
Desembargadora do Tribunal de Justiça do RS
Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família