O regime jurídico dos juros é uma questão que tem gerado várias discussões no direito pátrio. Mesmo antes da Emenda Constitucional nº 40, tanto a doutrina quanto a jurisprudência possuíam entendimentos diversos sobre questões como a auto-aplicabilidade do §3º do artigo 192 da Carta Magna, qual a taxa legal vigente, quais os limites para a contratação dos juros para as instituições financeiras e para os particulares, enfim, demasiadas questões as quais procuraremos abordar no presente artigo.
Após 29 de maio de 2003 encerrou-se a discussão, pelo menos do ponto de vista constitucional, acerca da limitação da taxa de juros para as instituições financeiras, eis que o dispositivo da Constituição Federal que causava controvérsias foi revogado pela EC nº 40. Tal fato, entretanto, não eliminou a diversidade de interpretações decorrentes das normas infraconstitucionais que dispõem sobre a matéria em questão, ora ressaltando-se a auto-regulamentação do mercado, ora protestando pela intervenção estatal nas relações entre as partes contratantes.
Apesar destas polêmicas perdurarem por vários anos, ainda não foi possível chegar a um ponto pacífico e, desta forma, este artigo não terá por objetivo adotar uma ou outra posição, apenas exporá os diversos posicionamentos jurídicos existentes, com a finalidade de proporcionar uma visão geral sobre o tema.
O ensinamento de De Plácido e Silva conceitua de forma bastante clara e elucidadora o que são juros: Juros, no sentido atual, são tecnicamente os frutos do capital, ou seja, os justos proventos ou recompensas que dele se tiram, consoante permissão e determinação da própria lei, sejam resultantes de uma convenção ou exigíveis por faculdade inscrita em lei”.(SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 5. ed.,1978, p.902)
A taxa de juros é composta por vários riscos, são eles: risco inflacionário; risco cambial; risco de não restituição; e risco de transferência de custos.
O risco inflacionário, como o próprio nome diz, é aquele que decorre da inflação, da desvalorização da moeda. Quanto maior a expectativa de inflação, maiores serão as taxas de juros. Este risco diminui quando a periodicidade da correção monetária também diminui, desta forma as instituições financeiras são as que menos correm esse risco, todavia representam as maiores taxas de juros. Isto ocorre porque a elas não se aplica a limitação da taxa de juros.
O risco cambial significa a possibilidade de desvalorização da moeda nacional em face da estrangeira, desta forma os contratos realizados em moeda estrangeira têm taxa de juros menor.
O risco da não restituição, por sua vez, gera um círculo vicioso, pois o aumento da taxa de juros eleva o índice de inadimplência, que acaba por elevar mais a taxa de juros e assim por diante.
E por último o risco de transferência de custos, representados pelos custos administrativos, de seguros e comissões.
Partindo do pressuposto de que um tomador só toma um empréstimo se o investimento que tem em vista é capaz de permitir um rendimento suficiente a pagar os juros relativos ao empréstimo realizado e recompensar o próprio tomador pela atividade realizada, ou seja, que ele tenha lucro, verifica-se a intima relação existente entre juros e lucros, de modo que, a princípio, um tomador nunca tomaria um empréstimo se dele não resultasse determinado lucro ao final.
Desta forma, quanto maiores as taxas de juros, menor será a quantidade de empréstimos, de investimentos, produção e progresso da economia, porque não haverá lucro.
Parte da doutrina acredita que a limitação da taxa de juros é uma afronta aos princípios da livre iniciativa e da livre empresa, bem como uma ofensa à auto-regulamentação do mercado e à lei da oferta e da procura. Uma posição que encontrou vários admiradores foi a do parecer SR-70 de 6/10/1988, onde o Consultor Geral da República opinou pela não auto-aplicabilidade do já revogado §3º do artigo 192 da Constituição Federal, pela inexistência de conceito de juros reais e que a fixação da taxa de juros teria conseqüências desastrosas para a nação, como, por exemplo, o desvio de capitais para operações como ouro, dólar paralelo e ativos reais.
Para a outra parte da doutrina a limitação dos juros é a valorização da justiça contratual, da liberdade contratual e do princípio da isonomia, na medida em que garante isonomia real entre as partes contratantes desiguais. Afirmam que com a inexistência de limites para a taxa de juros as instituições financeiras acabam por se apropriar de parcela bastante significativa do Produto Interno Bruto (PIB), aumentando os impasses sociais e econômicos.
Sem entrar no mérito da questão, um dos argumentos de quem defende a tese da liberação dos juros, dentre vários outros, é que há uma insegurança na definição de juros reais, havendo necessidade de regulamentação mediante lei complementar por se tratar de conceito vago. Os defensores da tese contrária, ou seja, da necessidade de limitação da taxa de juros argumentam no sentido de que o juiz, diante de um conceito vago, deve superar a indeterminação, decidindo de acordo com a analogia, costumes ou princípios gerais de direito, deve interpretar a lei.
Conceituaremos, portanto, juros reais apenas para efeitos de compreensão do tema: São os juros excedentes à taxa inflacionárias, incluindo-se os custos administrativos e operacionais, as contribuições sociais, os tributos devidos pela Instituição financeira e mais quaisquer comissões e outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito. De maneira mais simplória: é o valor que supera a desvalorização monetária em um determinado período de tempo.
O regime legal brasileiro aplicado às relações entre particulares, resume-se da seguinte maneira:
Até 1933 vigorava para os particulares a liberdade absoluta de contratação. Com o Decreto Lei nº 22.626 de 1933 que vigora até hoje, mais conhecido por Lei da Usura, estabeleceu-se um limite para a contratação de juros, que seria equivalente ao dobro da taxa legal. Quanto à taxa legal vigente, há duas posições: uma que defende que a taxa legal é a taxa Selic e a outra que afirma ser a taxa prevista no artigo 161, §1º do Código Tributário Nacional. A primeira delas entende que a taxa de juros legais moratórios é de 1% ao mês, pois de acordo com previsão do artigo 406 do CC/02, aplica-se a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional, que é a prevista no artigo 161 § 1º do Código Tributário Nacional, salientando que esta é a posição atual do Superior Tribunal de Justiça. Há quem entenda que a taxa legal é a taxa Selic (Serviço de Liquidação e Custódia – de maneira bastante simplória significa o ágio e deságio dos títulos da Dívida Pública), que é definida pelo COPON. Pois bem, os defensores desta posição afirmam que há uma lei que dispõe em sentido diverso (taxa Selic), caso em que, segundo a redação do CTN, não se aplicará a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. Para forçar o cumprimento da norma do CTN tipificou-se que a não obediência a esses limites implicaria em crime contra a economia.
Em 1999, com a desvalorização do Real, surgiu o problema da cobrança de juros por agiotas, resultando na edição da Medida Provisória 1.820, de 05/04/1999 (atual MP 2.172-32, de 23/08/2001), que instituiu a nulidade das cláusulas usurárias nos contratos civis de mútuo e deixou a critério do juiz a inversão do ônus da prova em benefício do devedor caso se vislumbrasse verossimilhança do direito alegado.
Esta Medida Provisória não atingiu seu objetivo por duas razões: o agiota não recorre ao Poder Judiciário para cobrar suas dívidas e geralmente não contrata juros acima da taxa legal.
Para as Instituições financeiras nunca houve limitação para a taxa de juros. Até 1964 a jurisprudência era dominante neste sentido e, após a Lei de Mercado de Capitais (Lei nº 4.595/64) que atribuiu competência ao Conselho Monetário Nacional para regular e dispor sobre juros e instituições financeiras, este liberou as mesmas de qualquer limite na contratação de juros. Posteriormente adveio a Súmula 596 do Supremo Tribunal Federal preceituando que as disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicariam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integrassem o sistema financeiro nacional.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, devido ao disposto em seu artigo 192, §3º, indagou-se se o referido texto constitucional havia revogado as disposições legais anteriores atinentes aos juros. Novamente houve divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da auto-aplicabilidade ou não da norma constitucional, culminando com a edição da Emenda Constitucional nº 40, de 29/03/2003, que revogou o §3º do artigo 192 da CF, liberando as instituições financeiras de qualquer limitação na fixação da taxa de juros.
Sem entrar no mérito do juízo de valor, pois como já dito, o presente artigo não tem por objetivo defender uma ou outra posição, entendemos que a limitação dos juros deve ser regulada pelo próprio mercado, dada sua característica de auto-regulamentação, em detrimento da restrição à liberdade contratual.
O que vemos hoje é a banalização da boa-fé contratual. Não há mais “palavra” nas relações contratuais. As partes firmam um contrato, sem nenhum tipo de coação, tendo conhecimento da taxa de juros imposta e depois uma delas recorre ao Poder Judiciário alegando abusividade da cláusula que estipulou os juros. E o que é pior: o Poder Judiciário, em algumas manifestações neste sentido, tem dado guarida a esses tipos de atos totalmente contrários à boa-fé que se esperava no contrato.
Por esta proteção dada ao devedor em detrimento ao credor justifica-se a taxa de juros reais aplicada em nosso país como uma das mais elevadas do mundo. Somado-se a isso, temos um alto índice de inadimplência, uma grande dívida pública e a relativização da força executiva do contrato, justificando assim, as taxas cobradas pelas instituições financeiras, eis que seus riscos são aumentados e quem acaba pagando por isso é a sociedade.
* Miryan Rangel Lira e Luciano Marcello Silva de Carvalho
Acadêmicos do 5º ano do curso de Direito da Faculdade de Direito de Curitiba e Conciliadores dos Juizados Especiais Cíveis do Foro central da comarca da região metropolitana de Curitiba