A falsa polêmica em torno da aposentadoria e solução equivocada

Veio à tona discussão acerca da aposentadoria integral do trabalhador, alimentando falso problema que inexiste, pelo menos, por ora. Setores do governo entenderam que a aposentadoria integral no setor privado está a exigir a conjugação do tempo de contribuição com a idade mínima, transformando as duas hipóteses de aposentadorias, previstas nos incisos I e II, do § 7º do art. 201 da CF em uma só espécie, mediante convolação do ” ponto e vírgula” que separa os dois incisos para o conectivo “e”. Até decreto nesse sentido foi baixado, o de nº 3.048/99. Parecer jurídico do INSS, também, foi nessa direção. Sustentou-se que sem a exigência de idade mínima as despesas com os benefícios previdenciários, neste ano, seriam acrescidas em R$1,7 bilhão, razão pela qual, cerca de 900 (novecentos) pedidos de aposentadoria em curso haviam sido sobrestados. Com a repercussão negativa, inclusive, no âmbito do Congresso Nacional, o governo anunciou que iria abrir mão da idade mínima. Posteriormente, novo projeto de lei cuidaria desse assunto. Em virtude disso aqueles 900 processos teriam andamento normal, sem exigência de idade mínima. Se isso acontecer estaremos diante de aposentadorias nulas com veremos mais adiante.

Na verdade, criou-se um problema que nunca existiu, incorrendo em uma sucessão de equívocos. Senão vejamos.

Dispõe o § 7 º do art. 201 da CF, com redação conferida pela EC nº 20/98:

“§ 7 º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições:

I – 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem, e 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher;

II – 65 (sessenta e cinco) anos de idade, se homem, e 60 (sessenta) anos de idade, se mulher, reduzindo em 5 (cinco) anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal.”

Em respeito ao princípio do direito adquirido, a EC nº 20/98 prescreveu o regime de transição em seu art. 9 º:

“Art. 9 º – Observado o disposto no art. 4º desta Emenda e ressalvado o direito de opção a aposentadoria pelas normas por ela estabelecidas para o regime geral de previdência social, é assegurado o direito à aposentadoria ao segurado que se tenha filiado ao regime geral de previdência social, até a data de publicação desta Emenda, quando, cumulativamente, atender aos seguintes requisitos:

I – contar com 53 (cinqüenta e três) anos de idade, se homem, e 48 (quarenta e oito) anos de idade, se mulher; e

II – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) 35 (trinta e cinco) anos, se homem, e 30 (trinta) anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a 20% (vinte por cento) do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante da alínea anterior.

§ 1 º O segurado de que trata este artigo, desde que atendido o disposto no inciso I do caput, e observado o disposto no art. 4 º desta Emenda, pode aposentar-se com valores proporcionais ao tempo de contribuição, quando atendidas as seguintes condições:

I – contar tempo de contribuição igual, no mínimo, à soma de:

a) 30 (trinta) anos, se homem, e 25 (vinte e cinco) anos, se mulher; e

b) um período adicional de contribuição equivalente a 40% (quarenta por cento) do tempo que, na data da publicação desta Emenda, faltaria para atingir o limite de tempo constante na alínea anterior.”

Qualquer acadêmico de direito sabe que os dois incisos do referido § 7º estão a indicar duas espécies diferentes de aposentadoria. Fosse uma só espécie de aposentadoria, por tempo de contribuição com idade mínima, bastaria o § 7º; os incisos teriam sido suprimidos. Além do mais, a Emenda, quando estabeleceu requisitos cumulativos o fez de forma expressa como se verifica de seu art. 9º. Nenhuma regra de hermenêutica é capaz de amparar a transformação das duas hipóteses distintas de aposentadorias, previstas no § 7 º do art. 201 da CF, em uma só hipótese conjugando-se o tempo de contribuição com a idade mínima. Por essa interpretação distorcida a grande maioria dos trabalhadores não viveria o suficiente para se aposentar, ou, em se aposentando pouco aproveitaria.

Em razão do absurdo a que conduz essa “interpretação”, que não encontra guarida nas regras da hermenêutica, outros estudiosos sustentam a aplicação da idade mínima, prevista nas regras de transição (53 anos para homem e 48 anos para mulher). É um outro absurdo jurídico, pois, é elementarmente sabido que não cabe o emprego da analogia no campo do direito material. Se a moda pegar, amanhã, nada impediria de o Ministério Público denunciar determinado cidadão, sob a alegação de que a sua conduta se assemelha àquela tipificada no artigo X do Código Penal. E assim ninguém teria segurança jurídica.

Finalmente, uma terceira corrente advoga a necessidade de o requisito da idade mínima ser fixado por lei ordinária, alegando lacuna do texto constitucional. Ora, não há que se falar em omissão legislativa se aquele requisito, originariamente previsto no projeto de Emenda Constitucional, restou eliminado por vontade soberana dos congressistas, que aprovaram o texto definitivo da Emenda.

Outrossim, o requisito da idade mínima constitui-se, claramente, em uma regra restritiva de direito. E como tal, não pode ser interpretado de forma ampla, de sorte a ensejar sua introdução por via de legislação infraconstitucional. O Texto Magno, nesse particular, não deixou margem de liberdade ao legislador ordinário.

A única interpretação cabível, portanto, é a que decorre da leitura estrita do mencionado parágrafo 7 º do artigo 201 da CF.

Mas o debate em torno dessa questão é prematura. Aposentadorias pelo novo regime somente acontecerão daqui a 30/35 anos. Por isso, sumamente estranha a notícia, segundo a qual, o INSS havia bloqueado cerca de 900 (novecentos) processos referentes a pedidos de aposentadoria integral, porque haveria um aumento da ordem de R$1,7 bilhão, neste ano, a título de despesas com os benefícios previdenciários, caso seja dispensada a idade mínima. Ora, como isso seria possível, se as aposentadorias pelo novo regime, implantado pela EC nº 20/98, somente ocorrerão daqui a 30/35 anos? O regime previsto no § 7º, do art. 201 da CF só se aplicará aos que se filiaram ao regime geral de Previdência Social a partir da promulgação da EC nº 20, de 15 de dezembro de 1998. Logo, esses 900 (novecentos) pedidos mencionados só podem se referir às aposentadorias integrais pelo regime da transição, que exige não só a idade mínima (53 ou 48 anos conforme o sexo), como também, um acréscimo de 20% (vinte por cento) no tempo de contribuição faltante, conhecido como pedágio (art. 9º, I e II da Emenda). Para a aposentadoria proporcional, pelo regime de transição, esse pedágio sobe para 40% (quarenta por cento), conforme expressa previsão do § 1º do art. 9º da Emenda.

A confusão feita entre o regime novo e o regime de transição é óbvia. E essa confusão deu-se, ao que tudo indica, pelo fato de o art. 4º da Emenda, em respeito ao princípio do direito adquirido, ter dito que “o tempo de serviço considerado pela legislação vigente…será considerado como tempo de contribuição”, nova denominação adotada pela Emenda.

Esse art. 4º, na verdade, limitou-se a dispensar a comprovação da efetiva contribuição contentando-se com a simples prova do tempo de serviço, no que se refere ao período anterior à Emenda. Não está, absolutamente, dizendo que o tempo de serviço é igual ao tempo de contribuição; do contrário nem haveria necessidade de alterar a denominação como fez o legislador constituinte!

Positivamente, inexiste qualquer possibilidade jurídica de livre opção do segurado pelo regime de transição ou pelo novo regime, como aventado pelo setor jurídico do INSS. Trata-se de uma lamentável confusão.

O pior é que essa confusão, originária do INSS, já se alastrou para o âmbito do Poder Legislativo e do Palácio do Planalto, o qual, já anunciou abrir mão do requisito da idade mínima para que prossigam aqueles 900 (novecentos) processos de aposentadoria que haviam sido bloqueados, na verdade, sem nenhuma razão. Isso significa que aquelas aposentadorias, necessariamente pelas regras de transição, poderão ser concedidas sem observância do requisito da idade mínima, que consta expressamente no art. 9º, I e II da Emenda. A aposentadoria assim concedida será nula, podendo a nulidade ser proclamada pela própria Administração ou pelo Poder Judiciário, sem prejuízo da responsabilização do agente administrativo competente.

De confusão em confusão a Reforma da Previdência, que já nasceu capenga, acabará por ser ignorada.

*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)

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