Representação fiscal para fins penais

Dos textos da Portaria CAT-76/99

O Coordenador da Administração Tributária, da Secretária da Fazenda do Estado de São Paulo considerando, dentre outras circunstâncias, o fato de o Sr. Procurador-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, por ofício de nº 6.895, de 16/09/99, ter requisitado o encaminhamento de cópias de autos de infração, nos quais existam indícios de prática de crime contra a ordem tributária, baixou a Portaria CAT-76 disciplinando o encaminhamento de representação fiscal. Essa Portaria, que aprovou o modelo de representação a ser formulada, está assim redigida:

“Artigo 1º – Sempre que o Agente Fiscal de Rendas, quando da lavratura de AIIM, constatar situação que, em tese, possa configurar, também, crime contra a ordem tributária, comunicará o fato, de imediato, ao Delegado Regional Tributário da sua área.

§ 1º – Se o Delegado Regional Tributário entender que a notícia encerra matéria de relevante interesse, procederá, por avocação, o julgamento imediato e preferencial do Auto de Infração e Imposição de Multa em Primeira Instância.

§ 2º – Após o julgamento, será imediatamente encaminhada ao Ministério Público a representação fiscal para fins penais, instruída com os elementos instrutórios do AIIM.

§ 3º – A representação a que se refere o parágrafo anterior será elaborada segundo modelo anexo.

Artigo 2º – Na situação prevista nesta Portaria a representação a que ela se refere será encaminhada independentemente do julgamento definitivo do processo de determinação do crédito tributário nas esferas administrativas.

Artigo 3º – Nos demais casos o procedimento a ser seguido é o disciplinado na Portaria CAT – 23, de 19/03/97.

Artigo 4º – A Diretoria Executiva da Administração tributária poderá baixar instruções complementares para o cumprimento do disposto nesta Portaria.

Artigo 5º – A representação para fins fiscais será elaborada pelos Agentes Fiscais de Rendas que noticiaram o evento criminal em tese e, encaminhada pelo Delegado Regional Tributário que verificará, previamente, se o trabalho está conforme com esta Portaria e se está adequadamente instruído.

Artigo 6º – Os serviços fiscais ou os processos de determinação de crédito tributário em curso que comportem enquadramento nas disposições desta Portaria observarão suas disposições, as quais deverão ser aplicadas.

Artigo 7º – Para os efeitos do artigo anterior as autoridades detentoras do processo deverão examiná-los para verificar se ocorre a hipótese prevista nesta Portaria.

Parágrafo único – Se constatar-se que ocorre a hipótese, a autoridade encaminhará o processo ao Delegado Regional Tributário para as providências concernentes e feitura e encaminhamento da Representação Fiscal para Fins Penais.

Artigo 8º – Esta Portaria entra em vigor a partir de 1º-11-99.”

O artigo 1º cuida de comunicação, pelo agente fiscal de rendas, ao Delegado Regional Tributário de sua área de atuação, de fato que possa configurar, em tese, crime contra ordem tributária. Essa comunicação, se for o caso, deverá ser feita tão logo seja lavrado o auto de infração e imposição de multa. Se no entender do Delegado Regional Tributário a noticia trazida pelo agente fiscal de rendas for relevante ele procederá ao julgamento imediato e preferencial do AIIM em primeira instância, mediante avocação (§ 1º do art. 1º). Realizado o julgamento será imediatamente encaminhada ao Ministério Público a representação fiscal para fins penais (§ 2º do art. 1º), independentemente do julgamento definitivo do processo de determinação do crédito tributária no âmbito administrativo (art. 2º). O art. 6º determina a formulação de representação fiscal relativamente aos processos em andamento, incumbindo as autoridades detentores do processo para examiná-los quanto a ocorrência de hipótese prevista na Portaria em questão, conforme preceitua seu artigo 7º.

Em suma, lavrado o AIIM, o agente fiscal de rendas , se entender que, em tese, a infração fiscal caracteriza, também, infração penal, comunicará o fato ao Delegado Regional que, por sua vez, se entender que a notícia encerra de relevante interesse, julgará imediatamente o auto de infração, mediante avocação. Nessa hipótese formulará, desde logo, ao Ministério Público a competente representação fiscal para fins penais, sem aguardar a final decisão na instância administrativa. Em que pese a defeituosa redação do texto interpretando, o julgamento imediato e preferencial não implica, obviamente, supressão da defesa do autuado. Assim, o processo só poderá ser avocado para julgamento imediato depois de recebida a defesa do autuado, ou após o decurso do prazo de impugnação do AIIM. Afinal, não se pode entender que a indigitada Portaria tenha revogado o princípio constitucional do devido processo legal (art. 5º, IV da CF). Da mesma forma, julgado insubsistente o AIIM, ficará prejudicada a representação fiscal, ainda que pendente o recurso de ofício. É o que resulta da interpretação lógica dos textos. Efetivamente, se o Delegado Regional Tributário, mediante avocação, julgou o AIIM considerando-o insubsistente não pode Ter dado relevância à notícia trazida pelo agente fiscal de rendas acerca de um crime, que tem por elemento nuclear exatamente a supressão total ou parcial do crédito tributário.

Das atribuições do Ministério Público

Como ressaltado de início, a Portaria sob exame foi baixada para atender as requisições do Ministério Público, pelo que indispensável o exame de suas atribuições.

É atribuição privativa do Ministério Público promover ação penal pública (art. 129, inciso I da CF), podendo para tanto requisitar informações e documentos na forma da lei complementar respectiva (art. 129, inciso VI da CF). O art. 104, inciso I, letra b da Lei Complementar nº 734, de 26-11-93, por sua vez, confere ao Ministério Público o poder de requisitar documentos, certidões e informações de qualquer repartição pública ou órgãos da Administração direta ou indireta em três níveis e das instituições financeiras em geral.

Logo, do ponto de vista formal as requisições têm amparo constitucional e fundamento na Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo. Contudo, essas requisições devem obedecer as prescrições legais genéricas ou específicas para cada caso concreto. Não pode o Ministério Público, por exemplo, requisitar dados bancários perante as instituições financeiras.

Do exame do art. 83 da Lei nº 9.430/96

O art. 83 da Lei nº 9.430, de 27-12-96, procurando evitar procedimentos penais prematuros contra os contribuintes prescreve:

“A representação fiscal para fins penais relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário.

Parágrafo único – As disposições contidas no caput do art. 34 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplica-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz.”

O art. 34 da Lei nº 9.249/95, como se sabe, prescreveu a extinção de punibilidade dos crimes contra a ordem tributária e de sonegação fiscal na hipótese de pagamento do tributo, pelo agente, antes do recebimento da denúncia. O contribuinte faltoso tem, pois, o direito de elidir eventual crime tributário, promovendo o pagamento do crédito tributário antes do recebimento da denúncia pelo juiz. É dentro deste contexto que deve ser interpretado o dispositivo legal, que regula a representação fiscal para fins penais.

O artigo 83 da Lei nº 9.430/96 comporta duas interpretações. Pela primeira interpretação, a literal, está simplesmente vedando a representação fiscal para fins penais antes da decisão definitiva na esfera administrativa. Vale dizer, só depois da constituição do crédito tributário pelo lançamento (art. 142 do CTN) é que o agente fazendário poderia representar ao Ministério Público. Superando eventuais divergências quanto ao momento da constituição definitiva do crédito tributário, o art. 83 sob comento adotou a expressão “decisão final, na esfera administrativa” significando aquela contra a qual não cabe mais recurso quer por esgotamento dos procedimentos recursais previstos na legislação tributária, quer por renúncia do contribuinte. Em outras palavras, refere-se àquela decisão que faz coisa julgada administrativa. Parcela ponderável da doutrina, entende que a constituição definitiva do crédito tributário só ocorre após a notificação do contribuinte daquela decisão definitiva. Notificado o contribuinte dessa decisão definitiva terá o prazo de 15 dias ou 30 dias para efetuar o pagamento do tributo e seus acessórios, conforme dispuser a legislação competente. Portanto, é perfeitamente defensável a tese de que só após a notificação do contribuinte do teor da decisão definitiva, proferida no processo administrativo fiscal, é possível a representação fiscal para fins penais. Todavia, promover representação (legalmente vedada) não é o mesmo que atender à requisição de autoridade competente. Representar significa ato voluntário de iniciativa da autoridade administrativa fiscal. Já no encaminhamento de cópias de auto de infração, por requisição do órgão ministerial, não há iniciativa da autoridade fiscal no desencadeamento de eventual procedimento penal contra o contribuinte autuado. Cabe à autoridade fiscal, neste caso, atender ou deixar de atender à requisição por motivo de ilegalidade, devidamente fundamentado. Daí a necessidade de aprofundar a interpretação desse artigo 83. A segunda interpretação cabível é no sentido de que, vedando a representação fiscal antes do encerramento da discussão na esfera administrativa, estaria igualmente proibindo a instauração da ação penal antes dele. A leitura conjugada do caput do art. 83 e de seu parágrafo único, bem como, a consideração do fato de que os crimes tributários, pelo menos os definidos no art. 1º da Lei nº 8.137/90, configuram crimes de dano, que pressupõem efetiva supressão parcial ou total do tributo devido, direciona o entendimento no sentido da inibição da ação penal antes da verificação da eventual situação de sua prejudicialidade. Se é verdade que a ação penal pública independe de representação fiscal, não é menos verdade que se deve evitar o critério interpretativo que importe em frustrar, por vias oblíquas, os efeitos jurídicos da norma. Dúvida não pode restar de que, com a proibição de representação fiscal intempestiva, a norma sob exame objetivou impedir a instauração de procedimento penal antes de julgado definitivamente, na esfera administrativa, o crédito tributário em discussão. Não teria menor sentido eventual condenação criminal se, ao depois, sobreviesse decisão administrativa em caráter definitivo, afirmando a inocorrência da hipótese de supressão total ou parcial do crédito tributário. Outrossim, o art. 83 em questão veio conferir condições para o efetivo exercício do direito previsto no art. 34 da Lei nº 9.249/96, que assegura ao contribuinte autuado a faculdade de elidir o crime mediante pagamento do tributo questionado antes do recebimento da denúncia. A norma sob comento afasta o poder intimidatório da sanção penal, antes da constituição definitiva do crédito tributário na esfera administrativa.

Pela primeira interpretação literal do texto configura ilegalidade da Portaria em questão. Pela segunda interpretação lógica e sistemática não só a Portaria, como também, as próprias requisições do Ministério Público, que ensejaram a edição da indigitada Portaria, seriam ilegais.

Entretanto, para demonstração dessa ilegalidade é preciso examinar o alcance da norma do art. 83 da Lei nº 9.430/96, que condiciona a representação fiscal de natureza penal ao prévio esgotamento da instância administrativa na discussão do crédito tributário.

A lei nº 9.430/96 contém disposições de naturezas diversas. Fundamentalmente destina-se a disciplinar tributos federais, bem como o processo administrativo de consulta no âmbito da Secretaria da Receita Federal. Porém, ela contém pelo menos um dispositivo, precisamente o do art. 83, que extrapola da esfera de interesse exclusivo da União. Esse artigo regula a representação fiscal da natureza penal com relação aos crimes tributários definidos nos artigos 1º e 2º da Lei 8.137/90.

Inquestionável, pois, a aplicação no âmbito nacional – esferas da União, dos Estados e dos Municípios – desse estatuto penal tributário. E aqui é preciso afastar aquele posicionamento, defendido por alguns estudiosos de que a lei complementar é aquela que tem aplicação no âmbito nacional, pois, pode levar à equivocada conclusão de que só a lei complementar teria o condão de obrigar as três esferas impositivas, a exemplo das normas do Código Tributário Nacional. Na verdade, leis complementares não formam uma categoria legislativa unitária, pois, algumas delas atuam no campo privativo da União (arts. 148, 154, I etc. da CF), enquanto que outras, no âmbito nacional ( arts. 146, I a III, 155, § 2º, X, a e XII, 156 III e § 3º I e II etc). Não há hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, extraindo cada qual a sua validade diretamente da Contribuição Federal. A Carta Política enumera matérias que devem ser veiculadas por lei complementar que, para sua aprovação, é exigido o quorum qualificado (art. 69). Por exclusão, as demais matérias ficam sujeitas à disciplinação por lei ordinária.

Poder-se-á argumentar que o art. 83 da Lei 9.430/96 não cuida de definição de crime tributário, isto é, do aspecto material, mas, de aspecto administrativo de natureza processual, o que deslocaria a competência para o âmbito interno de cada entidade política. Em princípio isso é correto. Ocorre que, aqui, cuida-se de norma administrativa processual, mas de cunho penal, o que basta para tornar cogente a sua aplicação no âmbito nacional.

Por derradeiro, cumpre registrar que o Procurador-Geral da República acolhendo a representação do Órgão Ministerial em São Paulo ajuizou perante o STF a ação direta de inconstitucionalidade, visando a suspensão liminar dos efeitos do aludido art. 83 da Lei nº 9.430/96. A medida liminar foi indeferida pelo Plenário daquela Corte, em 20-3-97, considerando constitucional e legítimo o dispositivo guerreado (Adimc nº 1571-DF, Rel. Min. Neri da Silveira, DJ 25-9-98).

Do caráter intimidatório da representação fiscal

Na verdade, a representação fiscal em tela tem caráter intimidatório, com visível desvio de finalidade. Nem se argumente que a intimidação objetiva uma rápida realização do crédito tributário, o que, aparentemente, iria de encontro ao interesse público. Mas não. É impositiva a observância, pela Administração Pública em geral, em toda sua atuação, dos princípios insertos no artigo 37 da CF, que assim prescreve:

“Art. 37 – A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ….”.

Ora, intimidar o contribuinte com ameaça de sanção penal, antes de findar o processo administrativo tributário, feriria, às escâncaras, o princípio da legalidade, porque não corresponderia à atuação da Administração conforme a lei e o Direito. Não tendo base legal essa intimidação, não haveria como motivar validamente o ato e nem perseguir um fim de interesse público que, por não se confundir com o interesse privado do poder público, só poderia ser aquele decorrente de lei. E a lei, no caso, obsta a representação fiscal intempestiva. O fim de interesse público vincula a ação do agente público impedindo a execução de atos para satisfazer interesses privados quer por favoritismo, quer por perseguição, sob pena de caracterizar abuso de poder por desvio de finalidade. Esse princípio da finalidade vem referido no texto constitucional sob a denominação do princípio da impessoalidade. Outrossim, o princípio da motivação está implícito na Carta Política. Odete Medauar discorrendo sobre o assunto diz:

“A ausência de previsão expressa, na Constituição Federal ou em qualquer outro texto, não elide a exigência de motivar, pois esta encontra respaldo na característica democrática do Estado brasileiro (art.1º da Constituição Federal), no princípio da publicidade (art. 37, caput) e, tratando-se de atuações processualizadas, na garantia do contraditório (inciso LV do art. 5º)”.

De fato, salvo na prática de atos discricionários, na execução de qualquer outro ato que afete o interesse individual do administrado impõe-se o requisito da motivação, sob pena de inviabilizar o exame de sua legalidade, finalidade e moralidade administrativa.

Logo, provocar efeito intimidatório do contribuinte, fora dos limites legais, além de configurar um ato ilegal e abusivo não encontra menor respaldo nos preceitos decorrentes do Estado Democrático de Direito, que tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, dentre outros valores, conforme artigo 1º da Constituição Federal.

Das conclusões

Inquestionável, assim, a flagrante ilegalidade da Portaria CAT-76, de 20-10-99, que merece ser imediatamente revogada. Não pode o sr. Coordenador da Administração Tributária, a pretexto de atender as requisições do Ministério Público, editar ato normativo cogente, no âmbito interno, instituindo a obrigatoriedade de formulação e encaminhamento da representação fiscal para fins penais contra expressa disposição legal, cuja constitucionalidade já restou reconhecida em exame preliminar pelo STF. Igualmente ilegais as requisições de cópias dos autos de infração, antes do encerramento da discussão do crédito tributário na esfera administrativa.

*Kiyoshi Harada
Diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de direito administrativo, tributário e financeiro, ex-procurador-chefe da consultoria jurídica da procuradoria-geral do município de São Paulo (SP)

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