Breves notas acerca do conceito de infração de menor potencial ofensivo frente à lei n. 10.259/2001

Fábio Ramazzini Bechara

A Lei Federal n. 9.099/95, regulamentando o disposto no art. 98, I, da Constituição Federal, definiu como infrações penais de menor potencial ofensivo os crimes aos quais a lei comine pena máxima não superior a um ano. (art. 61)

A Emenda Constitucional n. 22, de 18.3.1999, introduziu parágrafo único no aludido art. 98, estabelecendo que o legislador ordinário deverá instituir os Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal. A recente Lei Federal n. 10.259, de 12.7.2001, atendendo ao disposto no parágrafo único do art. 98, criou os Juizados Especiais Criminais na Justiça Federal e, ao mesmo tempo, prescreveu a aplicação da Lei n. 9.099/95. Estabeleceu ainda que os Juizados Especiais Criminais Federais somente julgam as infrações de competência da Justiça Federal, e desde que sejam infrações penais de menor potencial ofensivo. Tivesse o legislador se limitado a tais disposições, sem dúvida alguma a Lei em questão não suscitaria maiores indagações. O problema é que o legislador avançou – definiu como infrações de menor potencial ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa.

A questão que se coloca é a seguinte: o parágrafo único do art. 2.º da Lei n. 10.259/01 revogou o art. 61, caput, da Lei n. 9.099/95?

Antes de responder a essa indagação, relevante parece analisar a natureza jurídica do art. 98, inc. I, da CF. Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada, cuja aplicação depende da edição de uma lei ordinária que vise a sua regulamentação, definindo, dentre outros aspectos, o conceito de infração de menor potencial ofensivo. Com o advento da Lei n. 9.099/95, a referida norma constitucional restou efetivamente regulamentada.

O parágrafo único do art. 98, por sua vez, delega ao legislador ordinário a tarefa de única e tão-somente dispor sobre a criação dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Justiça Federal, cujas regras e princípios elementares encontram-se delineados no inciso I do mesmo artigo, já devidamente regulamentado pela Lei n. 9.099/95. Isso significa dizer que a regulamentação desse dispositivo, pelo legislador ordinário, deveria se pautar pela instituição e estruturação dos Juizados Especiais Criminais na esfera da Justiça Federal. A Lei n. 10.259/01, no entanto, não tratou apenas da instituição dos Juizados no âmbito federal; igualmente reformulou o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, invadindo, portanto, a matéria que outrora fora objeto da Lei n. 9.099/95.

Com essa inovação, passam a existir dois conceitos de infração de menor potencial ofensivo – um para a Justiça Estadual, previsto na Lei n. 9.099/95, e outro para a Justiça Federal, previsto na Lei n. 10.259/01 –, o que é totalmente inadmissível. Em primeiro lugar porque ambas as Leis, nesse particular, regulamentam a mesma norma constitucional, qual seja, o art. 98, I, em que pese a Lei n. 10.259/01 ter sido editada com o propósito de disciplinar o parágrafo único daquele artigo. Em segundo lugar, ambas as Leis possuem a mesma hierarquia. Logo, se versam sobre a mesma matéria e disciplinam o mesmo dispositivo constitucional, resolve-se a questão pelo critério cronológico ou temporal, de tal sorte que a lei posterior revoga a lei anterior naquilo que forem incompatíveis. (lex posterior derrogat lex anterior)

Assim, tem-se que o art. 2.º, par. ún., da Lei n. 10.259/01 derrogou o art. 61, caput, da Lei n. 9.099/95, ampliando o rol das infrações de menor potencial ofensivo.

Com efeito, não se pode admitir tratamento diferenciado entre os crimes da competência da Justiça Federal e os crimes da competência da Justiça Comum, sob pena de afronta ao princípio constitucional da igualdade. Tal discriminação mostra-se odiosa, na medida em que o legislador constitucional não fez qualquer diferenciação nesse sentido, estando o legislador ordinário, assim, impedido de fazê-lo. Quando o legislador constituinte entendeu por bem excepcionar a garantia da isonomia, o fez de forma expressa no texto, porque a finalidade da exceção justifica a relativização do direito fundamental. O melhor exemplo é o serviço militar obrigatório, circunscrito única e tão somente aos homens, excluindo-se as mulheres, em que pese o direito ao tratamento paritário. Essa hipótese de justificação constitucional não se observa na questão atinente ao conceito de infração de menor potencial ofensivo, de modo a autorizar um tratamento diferenciado entre as infrações de competência da Justiça Estadual e da Justiça Federal.

A conclusão, pela ampliação do conceito de infração de menor potencial ofensivo, acarreta a incidência do disposto no art. 5.º, XL, da CF, de tal modo que a Lei n. 10.259/01, por ser mais benéfica, retroagirá para alcançar fatos anteriores à sua entrada em vigor. O conteúdo da lei sob exame é de natureza eminentemente material, em que pesem os reflexos de ordem processual. Tal assertiva tem por base o fato de que a Lei n. 10.259/01 modificou o conceito de infração de menor potencial ofensivo, viabilizando, assim, a aplicação do instituto da transação penal cujo principal efeito é a extinção do direito de punir, caso a proposta aceita seja efetivamente cumprida. Logo, por se tratar de uma norma eminentemente material e ao mesmo tempo indiscutivelmente mais benéfica ao autor da infração penal, sua incidência não se limitará aos fatos cometidos após a sua entrada em vigor, mas alcançará igualmente os fatos pretéritos, na forma do artigo 5o, XL, da CF. A incidência do dispositivo constitucional retro afirmado goza de peculiar interesse. Isso porque a aplicação da lei material mais benéfica aos fatos praticados antes da sua vigência não constitui uma regra qualquer, mas sim um direito fundamental, tanto que previsto no rol do artigo 5o da Carta Magna. Em assim sendo forçoso é admitir que a conclusão pela revogação do artigo 61 da Lei 9.099/95 pela Lei 10.259/01 traduz-se na afirmação de um direito fundamental – o direito à aplicação da lei material mais benéfica.

Pode-se afirmar, finalmente, que a inovação introduzida pela referida EC n.. 22 era absolutamente desnecessária, na medida em que na redação do caput e do inciso I do art. 98 não se observa qualquer distinção quanto à natureza da infração, de tal sorte que a incidência da justiça consensual e simplificada já poderia e deveria ter se verificado, tanto na esfera estadual como na esfera federal. A regra estabelecida no parágrafo único do mencionado artigo não tem o condão de inovar o instituto dos juizados especiais criminais, até porque versa única e exclusivamente sobre matéria de organização judiciária.

Em suma, considerando os fundamentos acima expostos, tem-se que o art. 61 da Lei n. 9.099/95 foi revogado pelo artigo 2.º da lei 10.259/01.

Fábio Ramazzini Bechara é Promotor de Justiça do Estado de São Paulo e
Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal no Complexo Jurídico Damásio de Jesus

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