O que tinham em comum Napoleão e Shakespeare?
Resposta: o desprezo pelos advogados e pela defesa jurídica. Shakespeare foi quem escreveu a peça Henrique IV, cujo protagonista ponderava: “A primeira coisa que devemos fazer é matar todos os advogados”. Assim, percebe-se que há muito tempo a atuação do advogado não é bem compreendida no tocante à amplitude defensória. Muitos entendem que seria melhor que não existissem advogados; há os que pensam que a informática poderia englobar até as atividades advocatícias e judiciárias, como vem ocorrendo nos Estados Unidos. Para combater essas afirmações, mostraremos que a presença do advogado é indispensável em qualquer setor jurídico.
No Tribunal do Júri, especialmente, nada é mais equivocado do que o entendimento segundo o qual o advogado é dispensável. O dia do julgamento, perante os senhores jurados, é o momento em que o causídico exerce o seu mister com grande talento e responsabilidade, é como se fosse uma microcirurgia de cérebro. Uma falha, um erro, um esquecimento, uma falta de suscitação de um quesito ou de uma nulidade no momento certo, e tudo redundará num resultado negativo.
A Constituição anterior falava em ampla defesa. A atual também trata do assunto, mas atribui, de forma extraordinária, exclusivamente para o Júri, a figura da “plenitude de defesa” (art. 5.º, XXXVIII, “a”), e este é o ponto nodal a frisar neste artigo: há uma diferença enorme entre “ampla defesa” e “plenitude de defesa”, sendo a última muito mais ampla e complexa.
A explicação é simples: a plenitude de defesa é admitida somente no Tribunal do Júri, pois é usada para conscientizar os jurados. Os juízes de fato não decidem por livre convicção, e, sim, por íntima convicção, sem fundamentar de forma secreta e respondendo somente perante a consciência de cada um.
É por causa disso que existe, só no Júri, plenitude de defesa, pois o defensor poderá usar de todos os argumentos lícitos para convencer os jurados.
No Tribunal do Povo, todas as ponderações, indagações e atitudes do advogado estão ligadas umbilicalmente à plenitude defensória exercida no Júri. Esse princípio constitucional se materializa no momento em que o advogado adentra o tribunal, antes mesmo do sorteio dos jurados. Pelo princípio da plenitude defensória, o advogado pode, com todo o respeito, saber mais sobre os senhores jurados – e não apenas o que consta da lista dada às partes –, indagando maiores detalhes da profissão deles, grau de instrução etc., detalhes esses que muitas vezes são preciosos para a escolha do jurado.
O jurado é a peça principal desse complicado jogo de xadrez que é o Júri, por isso, deve ser tratado sempre com o maior respeito e com muita humildade por parte do advogado; saber mais sobre o senhor jurado é imprescindível, pois este é o representante do povo na Justiça – e, afinal, é ele quem decide a causa.
A plenitude defensória continua fluindo no decorrer do julgamento, no qual o advogado poderá formular reperguntas ao réu no interrogatório.
Outro momento importante em que o advogado faz uso da plenitude defensória é o da inquirição das testemunhas em plenário, postulando que elas respondam às reperguntas voltadas para os juízes de fato, que são os jurados. Assim, eles poderão visualizar expressões das testemunhas e sentir a veracidade de cada depoimento.
De fundamental importância para esse tema, é a questão da inquirição direta da testemunha e não pelo sistema presidencial (também chamado de presidencialista). São estremes dúvidas que é defeso ao magistrado impedir a inquirição direta, existindo até um importante aresto do Tribunal de Justiça carioca que entende como nulo o julgamento por ter o magistrado feito a inquirição no caminho presidencial, apesar da impugnação da parte.
Importante destacar a demonstração também na fase de inquirição das testemunhas, podendo tanto o advogado demonstrar determinada situação no momento de repergunta, quanto a testemunha, ao responder, fazer uso da demonstração para que os jurados se transportem para a época dos fatos, a fim de tomar a melhor decisão.
Isso é plenitude defensória!!!
Na ampla defesa, em seus limites, ao juiz singular não há possibilidade de demonstrações, como as acima mencionadas, pois exorbitam a amplitude defensória.
Voltando ao Júri, na leitura de peças, tema polêmico, o objetivo não é de forma alguma cansar os jurados, e, sim, dar-lhes subsídios para fazer reperguntas às testemunhas. E aqui vale destacar a importância de não se inverter a ordem processual: ouvindo primeiro as testemunhas, depois, efetuando a leitura de peças, pois um dos objetivos maiores é dar ao jurado conhecimento total da causa para fazer reperguntas; com a inversão, a leitura de peças extensa perde um de seus grandes objetivos.
A leitura de peças, sem dúvida, é favorável à pesquisa da verdade real, mesmo porque, durante a leitura, o advogado poderá orientar o escrivão do Júri a ler ou não certos trechos de reportagens, depoimentos ou documentos, suprimindo na hora algo excessivo, sem lesar a parte contrária; mostrar aos jurados fotografias; enfim, demonstrar aos juízes interesse e responsabilidade com tudo isso, fazendo uso da plenitude defensória.
Há quem diga que com uma defesa tão complexa o advogado corre o risco de perder a causa. E entendo ser melhor, entretanto, correr risco por excesso do que por falta.
Certa vez, num Júri, um juiz-presidente formulou um quesito sobre uma tese, com base na plenitude defensória, por conta e risco da defesa. Sua Excelência entendia que era uma causa supralegal e que a defensoria até se arriscaria naquela argüição.
Muito bem, não só a defesa ganhou o julgamento, mas também o Promotor de Justiça apelou. Na sustentação oral, a defesa ganhou, por unanimidade, com a tese suscitada no Júri.
Muitas vezes, para uma defesa plena, o advogado acaba tendo de correr riscos, porém sempre de uma forma lícita e ponderada.
O princípio da plenitude defensória faz com que o causídico assuma uma certa margem de risco, mas, no final, independentemente do resultado, o advogado sempre terá garantido um trabalho em que todas as possibilidades lícitas de defesa tenham sido esgotadas; certamente, com um bom trabalho executado, o resultado será o mais positivo para o constituinte.
De todos os livros que li sobre o Júri, o que mais me impressionou foi a obra A Defesa Tem a Palavra, do grande e saudoso advogado de Júri, Evandro Lins e Silva, nascido em 1912 e, hoje, considerado o “advogado do Brasil”. Esse epíteto deve-se ao fato de que o Dr. Evandro, em 1992, foi contratado para fazer a acusação do ex-Presidente Collor, em Brasília; entrevistado, o nobre advogado disse que já tinha tido causas muito importantes, mas agora estava defendendo o seu cliente mais querido: o Brasil.
Na obra referida, na página 18, encontro uma ponderação do jurista que tem elo com o assunto aqui tratado. Diz ele: “Para o advogado que adquiriu certa notoriedade, não há pequenas causas, breves audiências, rápidos debates no Tribunal popular. É a discussão que se alonga, cada um esgota o seu tempo. A sina do advogado de algum destaque é falar pela madrugada”.
Para falar durante a madrugada, logicamente, a defesa se alongou, com alguns dos detalhes aqui levantados. Quando o Dr. Evandro escreveu o referido livro, em 1984, ainda não estava em vigor o novel dogma da plenitude de defesa, estabelecido somente quatro anos depois. Se naquela época a defesa era assim feita, com maior amplitude deve ser vista nos dias atuais. O Dr. Evandro tinha autoridade para falar de uma defesa longa e eficiente. Se ele, que era mestre, insistia nessa grande plenitude, quem poderia contradizê-lo? Na verdade, mesmo antes da Constituição atual, o mestre já aplicava a plenitude, tendo sido pioneiro numa medida advocatícia que, até hoje, causa polêmica: a entrega de memoriais aos 21 jurados, dias antes do julgamento.
Como já foi dito, perante o juízo singular, a amplitude de defesa tem limites, pois o magistrado é o presidente do processo, devendo empenhar-se em escoimar as provas impertinentes para a Justiça togada.
Ao contrário, na plenitude de defesa, o magistrado não deve retirar e desentranhar dos autos documentos juntados para os jurados, pois o que parece impertinente ao juiz, pode ter grande relevância aos jurados, uma vez que estes decidem por íntima convicção e darão aos documentos o valor necessário. No final das contas, tudo poderá prejudicar ou beneficiar o réu, sempre por conta e risco da defesa.
O Tribunal de Justiça paulista num julgamento de mandado de segurança criminal, no qual se pesquisava essa matéria, decidiu e entendeu que, para os jurados, salvo provas ilícitas, nada pode ser sonegado, mesmo que o magistrado imagine certo documento não ter ligação umbilical com a causa. Aliás, quero consignar o caminho dos repositórios jurisprudenciais para essa hipótese: cabe mandado de segurança criminal quando o juiz determina o desentranhamento de algo de interesse à parte.
Ao encerrar, volto a falar de Napoleão e de Shakespeare. Eles achavam que o advogado atrapalhava a distribuição da Justiça. Não tiveram, porém, pessoa querida processada perante a Justiça criminal. Se esse fato tivesse ocorrido, sem dúvida, as figuras históricas referidas teriam procurado, humildemente, um advogado especializado, dizendo: “Doutor, por favor, faça tudo por ela!”.
E, finalizando, quero aditar o seguinte: aqueles que entendem que o computador e a informatização podem fazer tudo o que aqui foi brevemente suscitado, devem, de fato, dispensar o advogado dos pretórios, porém, por conta e risco total do interessado.
* Elaine Borges Ribeiro dos Santos
Advogada Criminalista, Professora no Complexo Jurídico Damásio de Jesus e Professora Titular na Escola Superior de Advocacia (ESA) da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP)