Damásio de Jesus
Fábio Ramazzini Bechara
I – Colocação do problema
A Lei n. 9.034/95, denominada Lei do Crime Organizado, prevê em seu art. 2.º, V, a possibilidade de infiltração de agente nas organizações criminosas mediante prévia e circunstanciada autorização judicial. Essa inovação, introduzida em 2000, suscita alguns relevantes questionamentos. O primeiro refere-se à auto-aplicação da norma, o segundo, à responsabilidade penal do agente infiltrado, e o terceiro, ao valor da prova provocada.
II – Aplicação da norma
Apesar da redação lacunosa da lei que introduziu a figura do agente infiltrado, não há necessidade de regulamentação dela por meio de outra espécie normativa. A principal exigência para sua aplicação, que constitui o standard mínimo para o deferimento da medida, está expressamente reconhecida. Assim, há as exigências de se tratar de associação criminosa e de decisão judicial fundamentada. Não se fez qualquer alusão quanto ao procedimento ou ao prazo da medida. É possível, contudo, afirmar a intencionalidade dessa omissão legislativa, uma vez que a determinação do prazo deve se orientar pela necessidade do caso concreto e pelo bom senso e responsabilidade do juiz. Por outro lado, a iniciativa de provocação é do Ministério Público e da autoridade policial. Por se tratar de uma providência indiscutivelmente de caráter cautelar, o pedido deve ser autuado em apartado, mantido o absoluto e irrestrito sigilo ao longo da infiltração. É razoável admitir, ainda, que essas omissões legais possam ser perfeitamente supridas por meio do emprego da analogia da Lei n. 9.296/96, que regulamenta o procedimento das interceptações telefônicas.
É fundamental salientar que a adoção desse mecanismo de investigação, tratando-se de crime organizado, implica o cumprimento pelas autoridades brasileiras do compromisso internacional assumido por ocasião da assinatura da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, denominada Convenção de Palermo, já devidamente ratificada por meio do Decreto n. 5015/2004.
III – Responsabilidade penal do agente infiltrado
A conduta do agente infiltrado pode se manifestar de diversas formas na organização criminosa. Ele pode simplesmente ter o papel de informante, transmitindo as informações das quais tem conhecimento para a autoridade que investiga a associação criminosa, de modo a possibilitar o desmantelamento da organização ou a identificação e punição de seus integrantes.
Por outro lado, caso o agente infiltrado provoque a ação ou omissão de uma ou mais pessoas que integram a organização criminosa, induzindo e interferindo diretamente no ânimo decisivo delas, a hipótese, nesse caso, seria de flagrante preparado ou delito provocado, e o agente infiltrado seria responsabilizado penalmente pelo abuso cometido, mas ninguém responderia pela infração penal pretendida. Aqui é manifesta a conduta determinante do agente para a prática do crime.
Poderia ocorrer igualmente uma terceira situação, em que o agente infiltrado atuasse conjuntamente com um ou mais integrantes da organização numa determinada empreitada criminosa. Da mesma forma, se o agente ingressa numa organização criminosa a qual já vinha praticando determinado tipo de delito, antes da sua entrada, sua intervenção não significa a criação indutora da vontade do sujeito provocado, que já preexistia, de sorte que a atuação do agente visa simplesmente facilitar o cometimento do delito, não induzir a sua prática. Nesse caso, verifica-se a anterioridade da ação criminosa em relação à intervenção do agente. Trata-se de hipótese clássica de concurso de agentes, seja por participação ou co-autoria. O agente infiltrado não responderia pelo crime cometido.
Discute-se, entretanto, qual seria a natureza jurídica da exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado. É possível identificar as seguintes soluções:
1.ª) trata-se de uma causa de exclusão de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa. Isso porque, se o agente infiltrado tivesse decidido não participar da empreitada criminosa, poderia ter comprometido a finalidade perseguida com a infiltração, ou seja, não havia alternativa senão a prática do crime;
2.ª) escusa absolutória: o agente infiltrado age acobertado por uma escusa absolutória, na medida em que, por razões de política criminal, não é razoável nem lógico admitir a sua responsabilidade penal. A importância da sua atuação está diretamente associada à impunidade do delito perseguido;
3.ª) trata-se de causa excludente da ilicitude, uma vez que o agente infiltrado atua no estrito cumprimento do dever legal;
4.ª) atipicidade penal da conduta do agente infiltrado. Essa atipicidade, todavia, poderia decorrer de duas linhas de raciocínio distintas. A atipicidade poderia derivar da ausência de dolo por parte do agente infiltrado, uma vez que ele não age com a intenção de praticar o crime, mas visando auxiliar a investigação e a punição do integrante ou dos integrantes da organização criminosa. Faltaria, assim, imputação subjetiva. De outro lado, a atipicidade poderia derivar da ausência de imputação objetiva, porque a conduta do agente infiltrado consistiu numa atividade de risco juridicamente permitida, portanto, sem relevância penal.
Seja lá qual for a interpretação que se faça em relação à natureza jurídica da isenção da responsabilidade penal do agente infiltrado, para que essa efetivamente se ultime, devem concorrer algumas exigências: a) a atuação do agente infiltrado precisa ser judicialmente autorizada; b) a atuação do agente infiltrado o qual comete a infração penal deve ser uma conseqüência necessária e indispensável para o desenvolvimento da investigação, além de ser proporcional à finalidade perseguida, de modo a evitar ou coibir abusos ou excessos; c) o agente infiltrado não pode induzir ou instigar os membros da organização criminosa a cometer o crime, o que configuraria um delito provocado, o qual, devido à sua impossibilidade de consumação, é impune tanto em relação ao sujeito provocado como ao provocador. O provocador poderia responder pelo crime de abuso de autoridade.
IV – Valor da prova provocada
A medida do agente infiltrado constitui uma diligência de natureza instrutória, que tem como finalidade a obtenção de informações para sua utilização como prova em vista de uma sentença condenatória, mostrando-se restritiva a direitos fundamentais, tanto que necessária a autorização judicial. Os direitos fundamentais os quais sofrem restrição a partir da infiltração do agente são: a) direito à autodeterminação informativa, que consiste no direito de saber quem, como e quando se tem informação de si mesmo, ou seja, de se eleger livremente o destinatário da conversa na esfera privada; b) direito à intimidade em sentido amplo e em sentido estrito, assim compreendidas as esferas privada e íntima.
A princípio, segundo a concepção doutrinariamente aceita em relação à prova ilícita, a prova produzida a partir da infiltração do agente seria ilícita, porque incide sobre direitos fundamentais. É evidente que essa conclusão é demasiadamente formalista e inflexível, na medida em que desconsidera as características da sociedade atual, pós-industrial, a qual tem como um dos principais efeitos o fenômeno da criminalidade organizada. Não foi sem razão que o legislador introduziu a figura do agente infiltrado na Lei do Crime Organizado, justamente por partir do pressuposto que, em certos casos, é indispensável socorrer-se de recursos extraordinários de investigação, os quais, por sua vez, são mais restritivos a direitos fundamentais. A questão reside exatamente em definir os limites dessa restrição, a fim de evitar o esvaziamento dos direitos fundamentais a pretexto da necessidade de se salvaguardar a eficiência na persecução.
Assim, considerando os diversos tipos de comportamento que o agente infiltrado pode ter em uma organização criminosa, é possível concluir que a prova somente poderá ser considerada ilícita nos casos nos quais o agente induz o sujeito provocado a praticar a infração penal, ou seja, quando o seduz enganosamente para o cometimento do delito. A violação de direitos fundamentais nesse caso não constitui restrição legítima como antes afirmado, mas implica, sim, total esvaziamento do seu conteúdo essencial, mostrando-se absolutamente desproporcional e igualmente intolerável qualquer aceitação.
Nos demais casos, a prova provocada é perfeitamente válida, já que não se verifica nenhum comportamento decisivo ou determinante do agente em relação à vontade do integrante ou dos integrantes do grupo criminoso.
V – Conclusão
O tratamento penal e processual da atuação do agente infiltrado demanda por parte do intérprete uma leitura mais adequada de determinados institutos dogmáticos, justamente com o propósito de promover uma maior aproximação conceitual, tendo em conta o fenômeno da criminalidade organizada.