Não acredito que a redução da idade -para fins de imputabilidade- acabe com as crianças criminosas ou que seja capaz de impedir que os delinqüentes maiores de idade àquelas se associem para a prática de delitos, escapando todos da pena e, eventualmente, do cárcere. O conceito do Código Penal para a imputabilidade pode ser resumido como a capacidade de entender o caráter ilícito do fato e de se determinar de acordo com esse entendimento. Qualquer ser humano pode ser imputável, salvo se incluído nas exceções previstas em lei: doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado e embriaguez completa, fortuita ou advinda de força maior. A inimputabilidade da criança deve-se ao desenvolvimento incompleto -com limite fixado pela Constituição (art. 228) e pelo próprio Código Penal (art. 27), aleatoriamente, na idade de 18 anos-, vendo-se acompanhada nessa exceção pelos silvícolas, sendo que estes dependem, para que sejam considerados imputáveis, de laudo pericial que lhes constate a capacidade, o que se mostra conveniente também para a criança.
O Estado procura, hoje, por todos os modos e meios, escapar do epíteto de benfeitor, graças ao neoliberalismo, que, apesar de vindo da União Européia, não conseguiu incluir a Suécia, que persiste numa política assistencial e acaba por se revelar uma ilha de progresso dentro daquela União, assolada pelo desemprego, pela incapacidade previdenciária e pelo abandono do trabalhador à própria sorte. Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai são exemplos de que o Mercosul poderia trazer melhores soluções e condições de vida a seus povos, porém têm sido impedidos de progredir na política comunitária pela agressiva política dos EUA com o Nafta e a Alca, para ficar nos exemplos mais gritantes. Assim, deixamos de ser aspirantes a um Estado-benfeitor para cair na armadilha do desenvolvimento, a partir de uma política patriarcalista voltada, como sempre, à proteção do latifúndio e dos bancos.
Examinemos um dos pólos do desleixo à cidadania: a criança. Sendo um país em desenvolvimento, era natural que a lei presumisse a idade do entendimento do caráter criminoso do fato, com isso evitando que os mais fracos sucumbissem à sanha criminosa dos mais fortes. Esse conceito funcionou até o momento em que os menores -excluídos pela ignorância, pelo analfabetismo e pela absoluta falta de formação profissional- foram aliciados para a prostituição, o tráfico e a prática desbragada de assassinatos ou crimes violentos. A falência do sistema estatal de segregação (proteção?), com suas “febens” e quejandos, demonstra a mesma incompetência que se observa com relação aos presídios.
Morar em favelas, ser egresso de famílias destruídas, conviver com um pai embriagado e sem emprego e com uma mãe que se esfalfa para ir e voltar do emprego e que ainda se dedica aos afazeres do lar, ser agredido em casa (?) e na rua, sem ter, na maior parte das vezes, nem mesmo o que comer não se constitui em situação muito diferente daquela que atinge a classe média ou a alta. Os filhos destas também estão sendo cooptados pelos traficantes para servir de “mula” no transporte do entorpecente, apesar da “boa formação” e dos bons colégios, que também estão sendo tomados.
Ao cabo, os primeiros deificam o traficante, pois lhes oferece uma oportunidade para não morrer de fome, enquanto estes são atraídos pelas facilidades do carrão ou da moto importados e de mais dinheiro no bolso.
Ora, a partir do momento em que a sociedade está infestada de grandes traficantes -jamais alcançados por polícia ou Justiça-, em que o Estado vira as costas a toda e qualquer espécie de segurança e garantia ao cidadão, ao emprego e à aposentadoria, de que servirá diminuir a idade para a responsabilização criminal, como pretende movimento iniciado pela Assembléia Legislativa de São Paulo (deputado Campos Machado, do PTB)?
O espaço é curto, mas nossa resposta pode ser esboçada: a reforma de que necessita o país, nesse âmbito, não pode ser resolvida apenas com abaixo-assinados. Trata-se de questão vital ao desenvolvimento do Brasil, ou seja, o futuro de suas gerações, não podendo prescindir de enfoque técnico-jurídico. O que se apresenta mais próximo de efetiva e justa prevenção será considerar -a exemplo dos EUA e de outros países- que qualquer ser humano deve ser responsabilizado por seus atos, desde que tenha capacidade para entendê-los, e ser julgado pela população, ou seja, por júri popular.
Aqui também haverá resistência: o julgamento democrático nunca é bem aceito pelas elites. Mas isso não é tudo: assim como o juiz, isoladamente, não deve julgar crimes tentados ou consumados contra a vida, porque existe uma carga emocional que dificilmente permite atingir o justo, assim deveria ser também no caso dos menores imputáveis: o julgamento será por júri popular. Ao juiz estará reservada a dosagem da pena e a forma de seu cumprimento. Acresce que, no atual sistema, o juiz não tem conseguido a melhor solução -ou acaba sendo conivente com o delito da criança ou abarrota os reformatórios inutilmente.
* Caetano Lagrasta Neto
Juiz do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de SP e Secretário Executivo do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais